domingo, 30 de dezembro de 2012

Juventude (Sommarlek – 1951)




Egresso do teatro, Ingmar Bergman sempre trabalhou em equipe, mantendo em torno de si um grupo de atores e profissionais conhecidos. É quase impossível citar os nomes de Liv Ullmann, Ingrid Thulin, Max Von Sydow, Harriet Andersson, Gunnar Björnestrand, Erland Josephson e Sven Nykvist, dentre muitos outros, sem que o de Ingmar Bergman venha a tiracolo. Com eles, trabalhou em dezenas de filmes, em um ritmo quase incessante. Mas, antes da época em que trabalhou com esses famosos profissionais, Bergman trabalhou continuamente com outros, bem menos famosos, que ajudaram a emoldurar o começo de sua carreira. Juventude é um filme desta fase da sua vida, onde seus parceiros constantes eram o diretor de fotografia Gunnar Fischer (tão brilhante como Sven Nykvist), o co-roteirista Herbert Grevenius, e atores como Maj-Britt Nilsson, Birger Malmstem, Alf Kjellin (ator principal de Hets, de 1944, filme com roteiro de Bergman, que o projetou para o Cinema) e Stig Olin (que trabalhou com Bergman em dezenas de filmes, e foi o pai da atriz Lena Olin).

Há um certo consenso geral de que Juventude seria o primeiro grande filme de Ingmar Bergman. Isto é um pouco discutível, pois o diretor já tinha feito alguns belos filmes antes, mais notadamente Prisão e Porto. Mas, de fato, Juventude representa quase que um ponto de partida para o que seria a carreira de Bergman futuramente. O próprio diretor depois reconheceu que foi a partir deste filme que ele finalmente se sentiu seguro como um diretor de Cinema, onde ele finalmente entendeu como trabalhar com todos os ingredientes do Cinema para melhor se expressar. Mas a força e o simbolismo do filme não repousam apenas nesta sensação de segurança de Bergman. Em Juventude nota-se vários temas que seriam bastante explorados no Cinema de Bergman, como a relação com a morte (há até uma inusitada cena de xadrez com de um padre com uma personagem que brinca ao se intitular como “a morte”, que, claro, remete diretamente à cena clássica de O sétimo selo), cenas envolvendo encenações (mesmo neste caso envolvendo Balé, e não o teatro propriamente dito), com personagens sofridos, que criam fachadas como defesa para si mesmos, mas quando se expressam o fazem de forma seca e audaz, além de usar como cenário uma ilha distante de tudo. Tem até personagens comendo morangos silvestres, mais um prenúncio de um futuro clássico absoluto do diretor.

Ou seja, em resumo, Juventude é puro Bergman, mesmo que em uma versão um pouco mais leve do que de costume (só um pouco, Bergman é Bergman). Um retrato do que seria o futuro dele, aliada a uma visão nostálgica de seu passado, já que ele tivera um breve romance de verão que terminara de forma abrupta, semelhante ao que ocorre no filme. Não à toa as cenas entre Marie (Maj-Britt Nilsson) e Henrik (Birger Malmsten) tem todo um frescor que as outras cenas com Marie não apresentam, onde ela já é mais velha e não tem mais nenhum brilho nos olhos. O filme lida muito bem com estas transições temporais entre a Marie já bailarina, que leva a vida no automático, com uma fachada quase imperturbável, e uma quase irreconhecível Marie que perambula pela ilha aos sorrisos e beijos com seu igualmente jovem namorado. Bergman mostra o que aconteceu com Marie para mudar tanto em poucos anos, mas sabe também deixar nas entrelinhas sua bizarra relação com seu tio (com um incômodo teor sexual, principalmente por parte dele), assim como a satisfatória (mas não muito mais do que isso) relação contemporânea dela com David (Alf Kjellin), tão diferente da que tivera com Henrik. As atuações de todo o elenco, sem exceção, são de primeiro nível, dos atores principais aos coadjuvantes. Bergman não agregava pessoas ao seu redor sem motivo, trabalhar com ele era praticamente a garantia de se ter uma bela atuação em tela. A mesma excelência se verifica na sublime fotografia de Gunnar Fischer. Seu trabalho enobrece a obra de qualquer diretor, a atuação de qualquer ator, e o prazer de qualquer cinéfilo.

O filme tem uma leve escorregada em uma breve (e bem tola) cena de animação, que nem parece fazer parte do filme, mas logo se levanta e caminha para a estrada das grandes obras, uma estrada que tantos filmes de Bergman caminharam com louvor. Juventude é um filme à primeira vista simples, mas que recompensa o espectador que o assiste mais de uma vez, para ver alguns detalhes que podem passar despercebidos em uma única análise. O que já dá para se ver de primeira é que se trata de um belíssimo filme, com uma tocada suave e decidida, de um diretor que encontrara sua voz, e que não a calaria nas décadas seguintes, marcando a história do Cinema, do teatro e até da televisão neste período. A câmera e a caneta de Bergman sempre souberam encontrar o calor na gélida Suécia, mesmo que ele estivesse escondido no passado de uma personagem, ou disfarçado em semblantes frios e impassíveis, assim como ver a frieza por trás de alguns sorrisos falsos e educados. Um diretor perfeito para o Cinema, que sabia quando iluminar a sombra, e escurecer a luz.  

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

As aventuras de Pi (Life of Pi – 2012)




Ang Lee continua sua peregrinação multinacional com As aventuras de Pi, um filme que cruza fronteiras, culturas e religiões sem nenhum embaraço. A história de um rapaz indiano, que trabalhou toda a sua infância em um zoológico na Índia, que procurou seguir todas as religiões que travou contato (dirigindo preces para Deus, Vishnu e Alá, entre outros), e sofre um naufrágio enquanto seguia com um barco japonês rumo ao Canadá, de fato necessitava de um diretor como Ang Lee. Apenas um chinês que emigrou para os EUA e que fez filmes os mais variados possíveis, como uma tradicional de saga de artes marciais (O tigre e o dragão), um romance gay no Oeste americano (O segredo de Brokeback mountain), uma adaptação de um texto inglês clássico de Jane Austen (Razão e sensibilidade), dois filmes sobre os rebeldes anos 60 e 70 americanos (Tempestade de gelo e Aconteceu em Woodstock), e mais um sobre um super-herói dos quadrinhos (Hulk), poderia casar tão bem com um projeto tão intercultural.

Desta vez, porém, Ang Lee lida com uma trama de realismo mágico, que inclusive se assemelha a uma parábola de um texto sagrado, pelas mensagens e leituras possíveis a serem formuladas sobre algumas situações apresentadas. O roteirista David Magee adaptou o livro de Yann Martel, que ganhou o prestigiado Booker Prize na Inglaterra, que manteve aberta no filme a porta entre a dura realidade e a imaginação permeada pela fé. Ang Lee transita sobre estes dois mundos no filme, e não disfarça muito qual a sua preferência, ilustrando com algumas belíssimas sequências a (longa) passagem do garoto em um pequeno barco no meio do Oceano Pacífico, onde tem que conviver com uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre, este último chamado de Richard Parker. Visualmente o filme é lindíssimo e irretocável, uma festa para os olhos, um trabalho excelente de Claudio Miranda, o diretor de fotografia (de O curioso caso de Benjamin Button e Tron: O legado). E os efeitos especiais são muito convincentes (nenhuma vez Suraj Sharma, que interpreta o jovem Pi Patel, de fato teve que interagir com um tigre no pequeno barco durante as filmagens, mas o filme nos ilude totalmente quanto a isso), e essa parceria de fotografia trabalhada com efeitos especiais ressalta todo o tom de realismo mágico para o espectador.

Em relação ao texto e ao ritmo, porém, o filme tem seus pequenos tropeços. Toda a passagem no barco, ainda que marcante (com certeza é do que muitos se lembrarão do filme, passados alguns anos), é um pouco longa demais, e uma ruptura com a trajetória do garoto, que até então se demonstrava muito interessante, pela forma com que ele abraçava todas as religiões que travava contato, e também pelas relações dele com seus pais, com uma breve namorada, e com a própria Índia, que ele é obrigado a abandonar, já sentindo saudades desde a partida. O ator Irrfan Khan (O espetacular homem-aranha, Quem quer ser um milionário?, Um guerreiro solitário), que interpreta o Pi Patel já adulto (e que é quem narra a história), tem uma atuação muito rica e complexa, mas o mesmo não se pode dizer do resto do elenco. Gérard Depardieu, que atua apenas em uma curta cena, é o único rosto mais conhecido do elenco, cuja maioria se ressente de ter pouco tempo de tela. Suraj Sharma e Rafe Spall (este, no papel do escritor que entrevista o Pi adulto), porém, não têm essa desculpa, e apresentam atuações mais rasas, em um filme que justamente pedia algo mais complexo por parte destes dois atores. Se o filme impressiona em vários momentos, é apesar deles, e não por causa deles.

As aventuras de Pi tem em seu cerne esta escolha entre uma vida mais cínica, objetiva e de pouca ou nenhuma religiosidade, versus uma lírica, emotiva e carregada de fé. Não surpreende que um escritor, um roteirista e um diretor escolham a segunda forma enxergar o mundo, mas há que se registrar que estes três artistas deixaram aberta a opção para que os que preferem a primeira escolha de vida tenham também uma visão da situação que não afronte com suas filosofias individuais. Algumas pessoas ficaram irritadas com a parte final do filme justamente por causa disso, por essa possibilidade de dupla leitura, que nem sempre agrada a todos. Mas As aventuras de Pi é o típico filme que faz o próprio espectador olhar para dentro e pensar qual é a sua própria forma de ver a vida. Como ele vê o personagem de Pi Patel diz muito sobre quem ele é, o que deseja e o que receia. E nem sempre é fácil se fazer isso. O filme tem uma certa semelhança com Don Juan de Marco (com Johnny Depp e Marlon Brando), pois são filmes que lidam com a tênue fronteira entre fantasia e realidade, deixando espaço para as duas leituras (mesmo que, claro, privilegiando a narrativa mais lírica), e também relatam a auto-construção de um personagem. Pi Patel não tem nada de Don Juan, mas é um garoto que descobre uma forma de deixar em segundo plano seu estranho nome (Piscine Molitor Patel), sempre alvo de piadinhas no colégio, ao criar para si seu apelido Pi, que é ligado ao próprio símbolo matemático tão conhecido. Este espírito ativo e autônomo também se faz presente na forma com que lida com as religiões e os bichos do zoológico, para consternação de seu pai. E, claro, tudo isso desemboca na louca aventura dele no meio do mar, tendo que se virar em um barco com aqueles animais. Um barco onde ele atende pelo singelo apelido de Pi, e um tigre se chama Richard Parker, e o humano e o bestial se confundem na narrativa.

O livro de Yann Martel conseguiu conquistar um bom público, e foi alvo de uma grande polêmica, curiosamente envolvendo o escritor brasileiro Moacyr Scliar (falecido em 2011). Segundo Martel, sua inspiração teria surgido ao ler uma resenha negativa de John Updike para o livro Max e os felinos de Scliar, onde teria lido sobre a convivência de um homem com um jaguar em um pequeno barco. Apesar de John Updike não ter escrito nenhuma resenha sobre o livro, e de Martel ter sido indelicado com Scliar, dando a entender que uma boa ideia tinha sido desperdiçada por um talento menor, o escritor brasileiro foi elegante e, após ler o livro de Martel, concordou que houve uma narrativa diferente por parte do escritor espanhol, não se configurando assim nenhum plágio em relação à sua obra, e declinou qualquer tentativa de se ir aos tribunais por conta disso. Ao se assistir ao filme As aventuras de Pi, é fácil imaginar que o personagem Pi Patel teria feito o mesmo, pois é um personagem que acredita em gentileza e humildade, mesmo que em confronto com algumas realidades difíceis. Ele quer continuar vendo bondade nos olhos do tigre, mesmo contra todos os prognósticos. Nem que tenha que criar uma narrativa para si mesmo, assim como se cunhou um novo apelido. A maior aventura de Pi sempre foi contra si mesmo. 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Um evento feliz (Un heureux événement – 2011)




Um evento feliz começa como uma bela comédia romântica, onde um atendente de locadora tenta se comunicar com uma cliente através dos títulos dos filmes (lhe exibindo as caixas de DVD, e ela respondendo da mesma forma). É engenhoso e charmoso, mas aponta para um caminho que o filme não vai seguir, a partir de quando ambos realmente se conhecem. O filme então abandona qualquer ilusão ou romantismo e abarca toda aquela relação com riqueza de detalhes, sem deixar de focar em nenhuma questão mais delicada. Primeiro a direção de Rémi Bezançon (Le premier jour du reste de ta vie (2008), O amor está no ar (2005)) expõe o tórrido romance entre eles, com direito a cenas de nudez e sexo praticamente explícito (os atores não devem ter transado de fato, mas chegaram bem perto disso). Tudo só começa a se complicar mais quando Barbara (Louise Bourgoin) engravida, e a relação entre eles começa a se alterar, assim como a forma que cada um se vê no mundo.
                             
O filme de Rémi Bezançon é baseado em um romance de Éliette Abécassis (co-roteirista de Kadosh, de Amos Gitai, que curiosamente trata de uma judia que não consegue engravidar), onde a escritora praticamente expôs o que ela mesma passou quando engravidou, de forma bastante detalhada. O roteiro adaptado desta obra ficou por conta do próprio Rémi Bezançon e de Vanessa Portal. Ou seja, o livro foi escrito por uma mulher, roteirizado por um homem e uma mulher, e o filme dirigido por um homem. Com certeza isso ajudou para que o filme não tivesse um viés por demais feminista ou machista. O marido de Barbara, Nicolas (Pio Marmaï), não é uma espécie de “vilão” da história, não carrega necessariamente a “culpa” por nada (é nítido que ama e aceita o filho, por exemplo), ou seja, o filme não tenta atrair apenas a simpatia fácil e rápida das mulheres botando toda a culpa no marido. Um evento feliz não é propriamente um documentário, e nem uma espécie de “auto-ajuda”, ele é um filme de ficção, mas um filme sério em sua abordagem, e não um “chick flick” para ser visto de forma leve, em um Sábado à tarde, por um grupo de colegiais. Longe disso. É um filme adulto como poucos, que visa ao público masculino também, e que analisa até algumas questões que são tabus ou semi-tabus, como o aumento da libido na mulher que engravida, o receio do marido em machucar o feto enquanto transam (que faz com que evite transar com ela), a diminuição da sensibilidade física de Barbara após dar a luz, o medo dela de ser vista como uma “má mãe” pelos outros, etc. (este temor foi fundamental para que Éliette Abécassis escrevesse sua história, pois sentia que muitas mulheres se culpavam por isso, no seu entender desnecessariamente).

Os atores coadjuvantes como Josiane Balasko (que interpreta a mãe de Barbara) e Thierry Frémont (Tony) acrescentam complexidade à história, mas o centro do palco é inevitavelmente da dupla principal. Pio Marmaï (que também esteve em Le premier jour du reste de ta vie, além de A delicadeza do amor (2011), entre outros) interpreta muito bem um Nicolas meio perdido, que é um pouco imaturo já desde o começo e não sabe muito lidar com o turbilhão de emoções que é a nova Barbara. E a bela Louise Bourgoin (O pequeno Nicolau, As múmias do faraó, A garota de Mônaco) é o centro nevrálgico do filme, por onde tudo gira em torno. Uma estudante de Filosofia que logo se vê mais interessada e preocupada em algo terreno e concreto, como por exemplo fazer a criança mamar, do que em analisar a obra de Kant ou Hegel. Sua personagem chega a perguntar o porquê de não a terem explicado antes o tanto que um filho muda a vida de uma pessoa, tanto externamente como em relação à sua própria identidade no mundo. Seria besteira achar que um filme poderia responder de forma completa tais questões, elas são pessoais e intransferíveis. Mas Um evento feliz talvez seja o que chegue mais ao fundo neste sentido, no Cinema moderno.

O filme não só não evita nenhum assunto difícil ou incômodo, como bota a câmera bem de perto mesmo, para que nem os espectadores possam deixar de ver o lado mais difícil do que acontece com os novos pais. A própria direção de Bezançon se altera, saindo de um tom mais clássico para uma câmera mais nervosa, conforme os eventos se desdobram. No meio deste turbilhão, os novos pais mudam, a relação de poder entre eles se altera, e eles têm que começar a criar um bebê indefeso para uma vida que, de certa forma, ambos mesmos estão, naquele momento, despreparados. Ser apenas namorado de Barbara é uma coisa, mas Nicolas estaria pronto para ser um marido e um pai? Barbara teria condições de criar bem sua filha? Ela conseguiria ser mãe e esposa, ao mesmo tempo? E sua carreira, como fica? As famílias de ambos também metem o bedelho, de um jeito ou de outro, causando ainda mais faíscas na relação. Estas questões são a de qualquer casal que têm filhos, e também de qualquer casal que planeje ter filhos, por isso mesmo o público-alvo é amplo para o filme de Bezançon. Um evento feliz não apresenta nada de absurdamente original, ele trata de questões bem cotidianas até. A sua singularidade é exatamente analisar tudo frontalmente, sem rodeios, desde o sexo até às dúvidas, culpas e rejeições. Se os personagens fizessem, ao final do filme, uma nova cena com títulos de filmes em capas de DVDs, com certeza não seria engraçadinha, e nem o próprio título Um evento feliz seria mostrado. A realidade já teria demonstrado o quanto de angústia também existe dentro da felicidade deste evento.  

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O Hobbit: Uma jornada inesperada (The Hobbit: An unexpected journey - 2012)




Em um mundo perfeito, Peter Jackson, junto com toda a sua talentosa equipe, teria feito primeiro a adaptação do livro O Hobbit, de Tolkien, em um filme apenas, nem que fosse de quatro horas de duração. Receberia elogios mil, e ganharia dinheiro suficiente para, aí sim, vir com tudo para adaptar a trilogia de O senhor dos anéis, em 3 filmes grandes mesmo, como fez entre 2001 e 2003. A história seguiria uma certa cronologia, e a trilogia é mesmo mais complexa que O Hobbit, o que garantiria que superaria as expectativas do público. Mas, claro, o mundo não é perfeito. Peter Jackson fez a trilogia antes de partir para adaptar a história de O Hobbit. Uma escolha muito inteligente do ponto de vista financeiro, evidentemente, pois a trilogia tinha mesmo mais apelo junto ao público, e fica difícil querer fazer graça com investimentos da casa de centenas de milhões de dólares. Mas, do ponto de vista de todo o resto, uma escolha que trouxe seus obstáculos, alguns praticamente intransponíveis.

O maior destes obstáculos complicados era exatamente a altíssima expectativa do público depois do sucesso incrível de crítica e público com a primeira trilogia (bilheterias de bilhões de dólares mundo afora, e dezessete Oscars recebidos, dentre muitos outros prêmios). Peter Jackson sabia disso, e tentou manter-se como apenas um produtor desta nova aventura cinematográfica. Por alguns anos, o diretor seria Guillermo Del Toro (Hellboy, O labirinto do fauno). Mas a produção de O Hobbit: Uma jornada inesperada foi tumultuada, com falência da MGM no meio do caminho (que atrapalhou por anos também 007 – Operação Skyfall), brigas entre a produtora New Line Cinema e Peter Jackson, e até uma úlcera deste último. Guillermo Del Toro partiu para outros projetos, e o anel voltou ao dedo de Peter Jackson. Só que este anel, ao invés de o fazer desaparecer, o faz ficar totalmente na berlinda. Foi como se a Terra-Média o estivesse chamando de novo. De certa forma, Peter Jackson sempre se pareceu mesmo com um Hobbit fisicamente, talvez este seja seu destino, no fim das contas.

Com esta nova missão nas mãos, o que fez Peter Jackson? Auxiliado no roteiro pelas mesmas Fran Walsh e Philippa Boyens da trilogia (e mais a participação de Guillermo Del Toro, significativa mesmo com ele abandonando o leme antes das filmagens), é nítido que a tentativa aqui foi de encorpar a história. Não há como negar que o livro O Hobbit é muito mais infantil e despretensioso do que os três que compõem a trilogia de O senhor dos anéis. Não é muito mais do que uma aventura leve de Bilbo, Gandalf e um grupo de anões em busca de um tesouro guardado por um dragão. Assim sendo, o diretor, junto com sua equipe, fez o possível e o impossível para adicionar grandeza e importância à esta simples história em todas as oportunidades possíveis. Sempre que pode, surge um personagem da trilogia que invariavelmente demonstra as implicações (por vezes muito indiretas) que aquela aventura pode ter no futuro de todos os povos habitantes da Terra-Média. A trilha sonora também se utiliza dos temas da trilogia, o que agrada ao público e o ajuda a comprar a ideia de toda esta nova aventura. Pescando detalhes e informações de O Silmarillion, e de apêndices de O senhor dos anéis, a equipe do filme valoriza mais a história e tenta ressaltar que tudo aquilo é muito mais do que uma simples aventura. Consegue um certo resultado, mas não faz milagres, continua óbvio que O senhor dos anéis é muito mais relevante, e o lado mais infantil do livro O Hobbit acaba transparecendo em O Hobbit: Uma jornada inesperada. É como se o filme fosse uma criança vestida de fraque e cartola. Está muito bem vestida e adquire um ar mais solene e menos brincalhão, mas continua sendo uma criança.

A decisão de se fazer uma nova trilogia em cima de um livro nem tão grande assim é parte dessa estratégia de valorizar o enredo, assim como a de filmar em 3D e com 48 fotogramas por segundo, ao invés dos usuais 24 (claro que muitos cínicos dirão que foram estratégias para ganhar mais dinheiro nas bilheterias, o que não deixa de ser também verdadeiro). Uma trilogia parece naturalmente mais “importante” do que apenas um filme sozinho, e o ineditismo dos 48 fotogramas não deixa de botar o filme na “História do Cinema”. O resultado, claro, mesmo levando-se em conta tudo o que foi encorpado na história, trazido de outros livros e apêndices, é que o filme fica mesmo um pouco esticado (e os 48 fotogramas não trazem tanto assombro assim). Essa esticada, curiosamente, acaba aproximando mais O Hobbit: Uma jornada inesperada do universo de J. R. R. Tolkien do que a própria trilogia de O senhor dos anéis. Como a trilogia abarcava muitos elementos e tramas, a preocupação ali era cortar o que não fosse estritamente necessário, e acelerar o possível quanto à ação. Não havia muito tempo a perder. Desta vez, tempo não é o problema, muito pelo contrário, há tempo de sobra. E desta feita sente-se, enquanto se assiste este primeiro filme da nova trilogia, mais ou menos como se sente um leitor de Tolkien, ao ler sobre todas aquelas caminhadas, as cantorias, a camaradagem entre aqueles personagens. Não é raro encontrar pessoas que abandonam os livros de Tolkien no meio justamente por acharem tais passagens muito longas. Não por acaso, muitos acham este filme aqui arrastado. Para o padrão de um blockbuster, é mais arrastado mesmo. Mas é adequado ao ritmo dos livros, é muito mais verdadeiro neste sentido.

O filme, após um belo prólogo (que enfatiza a importância da história, e ainda remete também ao começo de O senhor dos anéis: A sociedade do anel), e uma cena-fetiche entre Ian Holm e Elijah Wood (Bilbo velho e Frodo, respectivamente), apresenta um começo mais lento mesmo, com a chegada de cada personagem (apesar de ser difícil diferenciar os anões entre si, um problema também do livro), sem se apressar. Gandalf capitaneia o grupo, e somos apresentados aos dois personagens mais importantes desta nova trilogia, o próprio Bilbo mais novo (Martin Freeman) e Thorin, o Rei dos anões (Richard Armitage). Ambos os atores foram escolhas acertadas. Martin Freeman, o Dr. Watson da série Sherlock, da TV inglesa (onde contracena com Benedict Cumberbatch, que curiosamente também participa deste filme, em um pequeno papel como o Necromante) está muito bem com todos os seus temores e dúvidas, que parece um pato fora d’água no meio daqueles perigos todos. Richard Armitage é o personagem mais sofrido deste filme, um emblema de um povo que perdeu tudo (os outros anões parecem muito mais joviais e alegres do que ele, que nunca brinca). Tenta resgatar o que seu povo perdeu, e mal atura o amadorismo de sua equipe. Ian McKellen de novo é Gandalf, e repete a excelência de suas performances anteriores. Desta vez Gandalf pisa mais em ovos, tem que o tempo todo apartar brigas e controlar egos, não só dentro do grupo mas também fora, com elfos e magos (com isso, vemos breves retornos de Hugo Weaving, Cate Blanchett e Christopher Lee). Quando o filme aquece, porém, as cenas de ação são do mesmo nível das vistas na trilogia (talvez até um pouco superiores), mostrando a experiência da equipe após os três filmes realizados. E temos a clássica cena de Bilbo com o Gollum, talvez a melhor do filme (essa sim, egressa do livro mesmo, e que tem tudo a ver com a trilogia de O senhor dos anéis). E, com história esticada e tudo o mais, Peter Jackson consegue deixar o gostinho de “quero mais” em boa parte do público, que esperará por The Hobbit: The desolation of Smaug (previsto para final de 2013, e cujas filmagens já se encerraram), e The Hobbit: There and back again (a ser lançado em 2014).

O resultado é muito satisfatório, uma bela aventura, de sentir inveja de quem é criança ou adolescente nos dias atuais (há 30 anos atrás, tinha-se Krull e Flash Gordon, por exemplo, e a rapaziada lambia os beiços mesmo assim). Por muitos anos, os livros de Tolkien eram considerados “infilmáveis”, tanto pelos efeitos especiais que exigiriam, como pela opulência das histórias. Peter Jackson, muito bem auxiliado por uma enorme equipe de experts, mostrou no começo do Século XXI que tinha chegado a hora de fazer justiça à imaginação de Tolkien nas telas. E, agora, paga pelo seu sucesso anterior. Enquanto com a trilogia de O senhor dos anéis o Peter Jackson tinha um carrão em mãos, largando na Pole Position, e ganhou suas três corridas com autoridade, com direito a champagne no pódio, gritos de fãs e milhares de entrevistas, com O Hobbit: Uma jornada inesperada ele está numa equipe nova, com um carro bem mais modesto em mãos, e tendo que largar no meio de um monte de carros, disputando freadas com uns garotos alucinados. Tem que se superar a cada curva, conduzindo o carro no limite, e termina num bem honroso quinto lugar. Chega ao seu Box suado, exausto, e de longe vê a festa no pódio de outros pilotos. No dia seguinte, lê nos jornais que “Peter Jackson chega apenas em quinto”. Ele sabe que fez um corridão, que tirou do carro tudo o que podia tirar (até mais). Mas quase ninguém vê sua performance assim.  A visão da maioria é de que está decadente, que seus melhores dias estão atrás de si. É muito complicada a vida de quem sai do Condado. Bem o sabem Bilbo, Frodo e Peter.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Tempestade sobre Washington (Advise & consent – 1962)




Em um período delicado da história americana, no auge da Guerra Fria, um presidente já doente (Franchot Tone) tenta empurrar goela abaixo do Congresso americano um nome visto como um tanto “perigoso” para o importante cargo de Secretário de Estado, na figura de Robert Leffingwell (Henry Fonda). O Senador que é o líder da maioria (Walter Pìdgeon) tenta, assim, articular que este homem, visto como “liberal demais” tanto pela maioria como pela oposição, consiga ser aprovado pelo Congresso, mesmo com a oposição virulenta orquestrada pelo Senador Cooley (Charles Laughton), que não tolera que tal homem ocupe cargo tão importante. É nos meandros desta política que respira o roteiro de Wendell Mayes (O destino de Poseidon, Anatomia de um crime), adaptado do texto de Allen Drury, vencedor do prêmio Pulitzer. Drury trabalhou como repórter do New York Times no Congresso americano, logo ele conhecia bem aquele meio, e o filme exala esta intimidade.

O filme tem um elenco de um peso absurdo. Além dos já citados Henry Fonda, Charles Laughton, Walter Pidgeon e Franchot Tone, o diretor Otto Preminger ainda contou com Lew Ayres, Peter Lawford, Gene Tierney, Burgess Meredith, Don Murray, e mais até algumas presenças de reais senadores da época, que acrescentam veracidade à trama (reza a lenda que Preminger convidara até Martin Luther King e Richard Nixon para participarem do filme, mas estes teriam recusado). E o diretor conseguiu distribuir, ironicamente, estes grandes atores de forma democrática, ninguém “domina” o filme, todos têm sua oportunidade de brilhar. É quase que uma vitória da Democracia dentro de um filme. Aliás, o filme tem a peculiaridade de mostrar que um Presidente não tem essa força toda que muitos imaginam, muitas vezes dependendo de ajuda de diversos políticos para conseguir (ou não) efetivar Leis, Decretos e nomeações. É inusitado que tenha sido Otto Preminger, um diretor muitas vezes visto como brutal e tirânico (e odiado pela quase totalidade de atores que trabalharam com ele), o homem a focar em algo tão democrático em sua natureza, como o dia-a-dia de senadores que precisam se relacionar o tempo todo, e formar alianças cotidianamente. É possível que Preminger, como diretor já rodado (de clássicos como Laura, O homem do braço de ouro, Exodus, Anatomia de um crime, Carmen Jones e Anjo ou demônio?), apesar de suas características inatas, tenha entendido essa estranha correlação entre Presidentes e Diretores de filmes, vistos como poderosos pelo público em geral, mas muito dependentes de suas respectivas equipes quando se analisa suas funções com mais proximidade.

Tempestade sobre Washington tem este charme de mostrar a política por dentro, e se o filme remete bastante ao clássico de Frank Capra, A mulher faz o homem (de 1939), isto não é uma mera coincidência, e não só quanto ao tema, porque a Columbia de fato reutilizou alguns dos cenários daquele filme, mais notadamente o grande Congresso onde tudo se decide. O filme de Capra é superior, porém. É mais ingênuo, claro, apesar Tempestade sobre Washington também apresentar uma certa honestidade absoluta de alguns membros, algo um pouco difícil de engolir no cínico Século XXI (mesmo em 1962, com todo o respeito...). Porém, A mulher faz o homem tem a mágica que o filme de Preminger não tem, e algumas cenas muito marcantes que igualmente o filme de 1962 não apresenta. Aqui o resultado é mais redondo e uniforme, e muito interessante, deve-se dizer, até por retratar a paranoia americana com os comunistas, ainda mais no próprio ano em que aconteceu a crise dos mísseis em Cuba, um evento que tornou tão perigosamente palpável uma 3ª Guerra Mundial. Preminger mal disfarça uma crítica ao Macarthismo e sua consequente caça às bruxas, algo que ele tanto brigou para derrubar (inclusive contratando Dalton Trumbo para Exodus, e ajudando a demolir a funesta “lista negra”). E ainda se arrisca a lidar com o homossexualismo de um dos senadores. O filme pisa em um milhão de ovos neste sentido, mas não deixou de ser um tímido primeiro passo para Hollywood começar a lidar com este tema então considerado um tabu completo.

O elenco funciona muito bem tanto individualmente, quanto com um todo. Mesmo atores erráticos, como Franchot Tone, Don Murray e Peter Lawford, estão perfeitos no filme, e em alguns de seus melhores momentos. Henry Fonda está num papel menor ao qual estamos acostumados (ele “some” de vários trechos do filme), mas é o Fonda que conhecemos, honesto, resoluto, de fala mansa, mas decidida. Gene Tierney, sempre marcada como a eterna Laura, faz aqui seu último filme com Otto Preminger, em um papel discreto, mas honroso. Walter Pidgeon mostra mais uma vez que envelheceu muito bem na profissão, conseguindo mais contundência nos anos 50 e 60 do que em seus papéis mais famosos (muitos deles com Greer Garson) da década de 40. Ele é o braço direito perfeito para um Presidente em posição tão frágil. E Charles Laughton, no último papel de sua carreira, está ótimo como de costume, e só não rouba a cena porque todos estão afiados. Morreria poucos meses depois de terminadas as filmagens, de câncer.

O filme tem algumas curiosidades que chamam a atenção. Burgess Meredith, tão hostil ao Macarthismo, a ponto de também sofrer certo ostracismo por isso durante anos de sua carreira, no filme interpreta justamente um dedo-duro, que acusa um colega de ser comunista. O personagem de Peter Lawford, Lafe Smith, foi baseado em John Kennedy, que era um Senador durante o tempo em que Allen Drury escrevia seu livro. Quando o filme foi lançado, ele já era o Presidente, e Peter Lawford era justamente seu cunhado, pois estava casado com Patricia Kennedy, a irmã dele. E Gene Tierney fora amante de John Kennedy (enquanto ainda casada), e só não casou com ele porque Kennedy não queria casar com uma divorciada, e matar seu futuro político com o público conservador americano. Oleg Cassini, o ex-marido dela, depois trabalhou junto com Jacqueline Kennedy, desenhando os seus vestidos. Dentro e fora das telas, Hollywood se misturou com a política, e Tempestade sobre Washington é uma prova em celuloide disso. Uma das melhores, diga-se de passagem. Era fundamental saber ser político em Hollywood, e ser um bom ator em Washington. Aliás, continua sendo, mais do que nunca.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Todos os homens do Presidente (All the President’s men – 1976)




Todos os homens do Presidente é um tipo de filme que não é mais feito. Não tanto em relação ao seu gênero, pois vários outros filmes de viés político foram realizados desde então. Muitos, inclusive, assim como ele, baseados em fatos reais. Mas enquanto 99,99% dos filmes políticos usam e abusam da elasticidade do conceito de serem baseados em fatos reais, o filme de Alan J. Pakula cumpre o prometido. Não se tem aqui personagens inventados, e exagero nas situações, para “aumentar a dramaticidade”. Todos os homens do Presidente não tem um tiro sequer, aliás nem aparece uma arma no filme inteiro. Não há sombra daquelas cenas de sempre, dos personagens principais tendo que aturar a ladainha de esposas ou namoradas, que imploram para que abandonem um projeto tão perigoso. Ou então das igualmente batidas cenas onde um personagem resume em algumas frases tudo o que aconteceu até então, para dar uma mãozinha ao espectador mais distraído. Nada disso. O filme acompanha com veracidade a dura e exaustiva vida de dois repórteres investigativos do Washington Post, Bob Woodward (Robert Redford) e Carl Bernstein (Dustin Hoffman), no percurso de perscrutar todo o caso Watergate, que ao cabo de alguns anos acarretaria na renúncia ao cargo do Presidente Richard Nixon. E o espectador tem que ralar um pouco também, se lembrando de vários nomes citados, e mantendo a atenção o tempo todo, para não perder o fio da meada.

O filme já presume de cara, inclusive, que o espectador tenha um mínimo de familiaridade com o assunto. Na época isso foi facilitado, por o filme ter surgido apenas dois anos após a renúncia de Nixon, com o assunto ainda quente na cabeça do público (um caso de bater no ferro enquanto ele ainda estava quente). Ao contrário do que queria o diretor, e o próprio Robert Redford (também produtor do filme, de forma muito atuante), eles não puderam filmar no próprio Washington Post, não porque o jornal tenha criado empecilhos (longe disso, e no final das contas todos adoraram o filme, que exalta a atuação do jornal), mas porque curiosamente os jornalistas ficam se maquiando e “atuando” para a câmera, mesmo em segundo plano, atrapalhando o filme. Mas a reconstituição daquele local foi tão bem-feita em estúdio, que até impressionou quem trabalhava lá. O filme tem mesmo esse esmero, e, ainda mais, o respeito pela verdade dos fatos, sem querer romancear uma situação por si só tão marcante. Todos os componentes do filme funcionam bem, como a fotografia de Gordon Willis (as cenas onde aparece o “Garganta profunda” de Hal Holbrook demonstram o típico uso de sombras adorado por ele), a direção de arte, o som, a edição (todas essas categorias foram indicadas ao Oscar, e direção de arte e som ganharam), mas estão claramente a serviço, assim como os atores, do bom funcionamento do roteiro de William Goldman, uma adaptação do livro homônimo dos próprios Bob Woodward e Carl Bernstein, que viraram lenda no jornalismo americano e mundial por suas atuações neste caso.

O roteiro é empolgante, e demonstra com presteza a constante frustração dos jornalistas lidando, o tempo todo, com portas fechadas em suas caras e gente que não quer falar nada com eles. Eles vivem de encontrar pequenas brechas, e de aproveitar insinuações ou hesitações de seus entrevistados, para seguir adiante. É uma vida inglória, ainda mais sendo constantemente aconselhados a abandonarem toda aquela história por jornalistas graduados, como os interpretados por Martin Balsam e Jack Warden. O que os incentiva, e mesmo assim não muito, é Ben Bradlee (Jason Robards), o chefão do jornal, que aos poucos começa a entender o potencial de tudo aquilo. O elenco do filme é especial, contando ainda com pequenas participações de Ned Beatty e Jane Alexander (que foi indicada ao Oscar de coadjuvante por seu breve papel), e uma pontinha de F. Murray Abraham no começo da carreira. Todos atuam de forma muito competente e valorizam o enredo. Jason Robards, inclusive, ganhou seu primeiro Oscar de coadjuvante pelo filme (ganharia outro no ano seguinte, por Júlia). Um pouco injusto, pois competiu com Burgess Meredith (Rocky) e Laurence Olivier (Maratona da morte), que estavam mais inspirados, mas sua atuação é muito sólida, assim como de Hal Holbrook e dos dois atores principais, astros de primeira grandeza. Mas, mesmo com elenco tão estelar, é o roteiro quem mais brilha, tudo gira em torno dele (esse sim, um Oscar indiscutível que o filme recebeu). Se ele não funcionasse, o filme teria sido logo esquecido. Felizmente, porém, ele é muito eficiente, ajudou a tornar o filme um sucesso (inclusive popular, algo raro para um filme político), e a tornar Todos os homens do Presidente um marco para o cinema americano.

O filme teve o mérito também de mostrar que o caso Watergate não se relaciona só com o que aconteceu no hotel Watergate, com a invasão de um escritório do partido Democrata por Republicanos incautos. Os repórteres souberam seguir um dos lemas do filme, “follow the money” (sigam o dinheiro). Pelos pagamentos efetuados, logo descobriram conexões que os permitiram seguir adiante nas investigações, descobrindo que na verdade os Republicanos foram “invasivos” bem mais do que apenas uma vez. Não é todo dia que o trabalho incansável de dois jornalistas, então desconhecidos, muda tanto os rumos de um país. Também não é todo dia que se faz um filme como Todos os homens do Presidente. Um filme que não alivia a barra de ninguém (nem do público, que não tem vida fácil o assistindo). Que se baseia nos fatos sem querer ficar reescrevendo-os para que pareçam ainda mais “emocionantes”. Há que se ter coragem e disposição para continuar insistindo neste caminho, mesmo com tantos conselhos em contrário. Bob Woodward e Carl Bernstein fizeram escola, assim como os produtores, o diretor e o roteirista do filme inspirado nos esforços deles. Se hoje quase não existem mais repórteres investigativos, ou filmes tão honestos em seus propósitos, daqueles que teimam em seguir até o fim suas filosofias mesmo contra todos os prognósticos, não é culpa de nenhuma dessas pessoas. Elas fizeram suas partes, e obtiveram grande sucesso, com a renúncia de um Presidente reeleito (e hoje vilipendiado), e um clássico do Cinema americano para comprovar isso.  

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Armadilha mortal (Deathtrap – 1982)




O escritor Ira Levin foi autor de livros que posteriormente viraram sucessos no Cinema, como O bebê de Rosemary, As esposas de Stepford, Os meninos do Brasil e Invasão de privacidade. Todos os citados viraram filmes de sucesso popular. Mas o maior sucesso de sua carreira foi mesmo a peça Deathtrap, que seguiu anos a fio sendo encenada na Broadway (1793 vezes, um recorde ainda vigente para peças de mistério), e que o tornou rico de vez. Um texto inteligente, dinâmico, tenso e envolvente, que tinha mesmo tudo para dar certo no Cinema. Com uma adaptação de Jay Presson Allen (roteirista de A primavera de uma solteirona, Cabaret e Marnie, confissões de uma ladra), a direção de Sidney Lumet (completaria-se este texto inteiro só com citações de sucessos dele), e com Michael Caine e Christopher Reeve no elenco (este, durante sua enorme fama por incorporar o Super-homem nos cinemas), e tinha-se um crime perfeito, onde o espectador não tinha como escapar.

E não escapa mesmo. A trama básica é a de que o dramaturgo Sidney Bruhl (Michael Caine), que já teve grandes sucessos mas que anda numa fase de amargar, planeja com sua mulher (Dyan Cannon) convidar um jovem escritor (Christopher Reeve) que quer a ajuda de Bruhl com sua primeira peça, que Bruhl considera genial. O objetivo é justamente o casal matar este jovem e se apropriar da peça, como se fosse do próprio Sidney Bruhl. Mas este é só o pontapé inicial. O filme é como que um irmão de Trama diabólica, onde o próprio Michael Caine atuava, naquele caso com Laurence Olivier (caso único onde o elenco inteiro foi indicado ao Oscar de melhor ator, pelo simples fato de que só os dois atuaram no filme). Tudo bem, em Armadilha mortal não se tem Laurence Olivier, perde-se um pouco de classe com isto, inevitavelmente, mas Christopher Reeve dá conta do recado. Não é para qualquer um contracenar com Michael Caine, mas Reeve prova que não era nenhum Clark Kent perto dele. No auge da carreira, curtindo o enorme sucesso da série do Super-homem, e apenas dois anos depois de atuar no clássico romance Em algum lugar do passado (onde fez uma bela parceria com Jane Seymour), Reeve encarou e venceu mais este desafio e acrescentou uma certa dose de vitalidade e perigo à trama, que fazem muito bem ao filme Armadilha mortal. A parceria entre estes dois atores é o prato principal do cardápio, e é de se lamentar apenas que os outros atores coadjuvantes não estivessem à altura. Dyan Cannon, apesar de seus hilários gritos, já esteve melhor, e os outros personagens, Henry Jones à parte, mais atrapalham do que contribuem com a trama. Mas não prejudicam muito. Os holofotes estão mesmo em Michael Caine, Christopher Reeve e no envolvente roteiro, que puxa o tapete, como poucos, dos espectadores. Muitos filmes prometem, a cada semana de lançamento, surpreender os espectadores, mas quase nunca conseguem, com o público prevendo tranquilamente o que vai acontecer em seguida. Armadilha mortal consegue, e quem o vê não se esquece dele.

Sidney Lumet e Jay Presson Allen correram alguns riscos com este filme. Claro, mantiveram quase tudo em apenas em uma locação, e boa parte do enredo. Mas poderiam ter jogado com o time todo na defesa e garantido a vitória, sem mudar nada, só fazendo uma transposição automática para a tela grande. Mas, confiantes da força da peça original, acrescentaram alguns novos temperos à ela, como um leve tom homossexual (que chocou na época, mas hoje parece até ingênuo) e uma alteração no final (um pouco superior ao da peça, apesar de não agradar a todos). Mas o grosso, claro, já estava lá, na peça de Ira Levin, um claro co-autor deste filme, cujo trabalho Sidney Lumet teve a inteligência de não querer subverter por demais para querer aparecer. Já tinha provado antes, e continuaria provando depois, que era um grande diretor, e manteve seu ego controlado, confiando no grande texto e no bom trabalho dos dois atores principais. Aliás, neste filme ele finalmente pôde dirigir Michael Caine, que já deveria ter trabalhado com ele em A colina dos homens perdidos, de  1965, mas que foi obrigado a largar o filme em cima da hora, para estrelar Como conquistar as mulheres (o que foi uma ótima decisão, pois alavancou a sua carreira). Caine, porém, se sentiu em dívida com o diretor, apesar da compreensão de Lumet, e só conseguiu mesmo trabalhar com ele neste filme aqui. 

Armadilha mortal é um pouco um retrato de uma época, em que filmes de mistério, com leves tons de comédia, faziam sucesso. Onde escritores como Agatha Christie, Arthur Conan Doyle e Maurice Leblanc, entre outros, ainda vendiam bastante e tinham um grande público cativo, mesmo anos ou décadas depois de suas mortes. Seja lá porque motivo for, eles parecem ter saído um pouco de moda, mesmo tendo a princípio um alcance tão atemporal. Tais obras, na Literatura e no Cinema, podem ter seus defeitos e vícios, por vezes seguem certas fórmulas mesmo, mas sempre conseguem prender a atenção do leitor ou espectador com muita competência, talvez como nenhum outro gênero ou sub-gênero consiga. Quem começar a ver Armadilha mortal, por exemplo, não o vai largar de jeito nenhum. Vai se sentir com se estivesse naquela afastada casa, tentando entender o que está realmente acontecendo, e rindo de si mesmo quando perceber que estava trilhando a estrada errada. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Entre o amor e a paixão (Take this waltz – 2012)




Sarah Polley é uma atriz canadense já de certo renome (atuou em filmes como A vida secreta das palavras, Madrugada dos mortos, Minha vida sem mim e O doce amanhã), que recentemente tem se dedicado também a roteirizar e dirigir filmes. Conseguiu um certo impacto em 2006, com Longe dela, um tocante drama onde Julie Christie tinha que lidar com a doença de Alzheimer, juntamente com seu abnegado marido (Gordon Pinsent). Em 2012 ela volta a atuar nesta frente dupla, sendo que desta vez adaptando uma peça de sua própria autoria. E, assim como tinha feito questão de Julie Christie daquela vez (pelo talento e por ser grande amiga e admiradora dela), desta vez o projeto só faria sentido, para ela, com Michelle Williams e Seth Rogen nos papéis principais.

O que causa certa consternação é que justamente este parece ser um casal muito improvável, numa história idem. Se tem um filme que demora a embalar, este é Entre o amor e a paixão. Por quase uma hora do filme, a impressão é que o barco vai naufragar e que não haverá salvação. Margot, a personagem de Michelle Williams, é casada com Lou (Seth Rogen), e ambos vivem em Toronto (cidade natal da diretora, aliás) uma estranha, e plácida, felicidade. Por várias vezes se comportam como crianças ou adolescentes, e parecem ter uma certa sintonia em comum, apesar de suas diferenças. Mas ela logo conhece Daniel (Luke Kirby), o seu vizinho de rua, durante uma viagem, e cria com ele uma estranhíssima relação, nada carnal, que a faz balançar sobre o seu futuro. Sim, temos aqui mais um triângulo amoroso. Mas é um diferente, bizarro, difícil de precisar. Parte dos problemas do começo do filme é que Daniel não parece nada crível. Ele é um artista que não se projeta, um romântico inveterado, um possuidor de um riquixá (?!?) que misteriosamente consegue viver sabe-se lá como, sem nenhuma renda visível. Parece exatamente o que ele é: Um personagem criado pela mente de um(a) escritor(a), uma fantasia, e não uma pessoa real, com problemas e questões reais. E isso tira força do filme, ainda mais em comparação com a relação de Margot e Lou, que convence mais, até porque as brincadeiras deles de cada dia remetem ao que acontece na vida de muitos espectadores também. Este desnível no triângulo amoroso, tão vital para o filme, quase que sentencia o filme ao abismo.

Quase. Milagrosamente, o filme vai se sustentando, o tempo vai passando, e o espectador mais tolerante recebe a chance de se acostumar com aqueles estranhos personagens. Alguma cena de nudez frontal incomoda aqui e ali pela absoluta gratuidade (sem moralismo algum, pode-se dizer que poucas foram mais desnecessárias no Cinema recente), outras cenas parecem não chegar a lugar nenhum... Mas muito aos poucos, quase sem se notar, o filme vai encorpando. A eterna sensação de vazio de Margot torna-se cada vez mais latente, a ponto de incomodar até a Geraldine, sua cunhada alcoólatra (um raro papel dramático para Sarah Silverman). E a surreal atração dela por Daniel vai ganhando mais vida, apesar do pouco convincente começo. Chega-se a ter uma interessante cena erótica, entre os dois, só com o uso de diálogos, com ambos inteiramente vestidos, e sem trocar um beijo sequer. É como se o calor úmido do verão de Toronto aos poucos também atordoasse o público, ainda mais como foi captado por Luc Montpellier, o diretor de fotografia (também egresso de Longe dela). E o espectador fica tão perdido quanto Margot, no seu dilema do título em português do filme (brega, mas ao menos coerente com o enredo do filme).

Michelle Williams e Seth Rogen, apesar da estranheza inicial, de fato foram boas escolhas de Sarah Polley. Funcionam como casal, e Seth Rogen demonstra que tem capacidade para papéis dramáticos, o que todo comediante, mais dia menos dia, precisa provar para um público sempre incrédulo (e raro é o comediante que não vence como ator dramático, quando se propõe a isso, mas a desconfiança inicial do público sempre acontece). Curiosamente, em Entre o amor e a paixão, ele e Sarah Silverman tem que se provar em papéis mais dramáticos do que estão acostumados, e Michelle Williams o faz para um papel mais leve e cômico do que costuma representar. Porque o filme fica mesmo no meio do caminho entre a comédia, o drama e o romance, e os atores necessitam se virar para se equilibrar neste constante desequilíbrio (só Luke Kirby não consegue muito sucesso, apesar de que o roteiro não o ajuda). É muito difícil catalogar o filme, ele não se parece muito com outros filmes, apesar de na superfície ser só mais uma comédia romântica. Há algo de complexo debaixo daquelas piadinhas, da nudez banal, e de personagens esquisitos em situações idem. Sarah Polley erra no contexto geral, mas acerta nos detalhes, nas minúcias das vidas daqueles canadenses em tese tão banais. Logo no começo do filme, Margot ressalta seu medo de ficar presa entre conexões (se refere a vôos em aeroportos, mas é nítido que o escopo deste medo é bem mais abrangente). E é exatamente o que acontece com ela e o próprio filme em si. Sarah Polley, pelo visto, não partilha deste medo (ou, se partilhava, parece tê-lo vencido). Pois é exatamente nesta zona indefinida entre o riso e o drama (ou o amor e a paixão, se preferir) que ela insere seu filme, e de onde extrai seus melhores momentos. Fica à mercê, porém, de que o espectador tenha paciência para não desistir do filme até ela conseguir atingir isso.  

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O homem da máfia (Killing them softly – 2012)




Cinco anos após O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford, o astro Brad Pitt e o diretor Andrew Dominik voltam a trabalhar juntos, em um filme que igualmente reúne todas as condições para dividir crítica e público. Desta vez o diretor desta vez abandona o velho Oeste para se debruçar sobre o velho submundo, o dos gângsters de baixa renda, como os retratados em Os bons companheiros. Mas as semelhanças com o clássico de Scorsese praticamente param por aí. O homem da máfia é um filme lento, atmosférico, que confia mais em estabelecer um certo clima de noir moderno (sem femme fatale, deve-se dizer, aqui os homens caem sozinhos) do que em trazer uma ação empolgante. É um filme mais focado em diálogos, mas não em aqueles ágeis, cortantes e envolventes, como em um Pulp fiction da vida, ou daqueles de se citar toda hora, como os da trilogia O poderoso chefão. Os diálogos do filme de Andrew Dominik são daqueles pouco brilhantes, mundanos mesmo, mas são críveis porque os personagens que os emitem também são assim. Praticamente todos fazem besteiras no filme, e depois passam a vigiar a própria sombra com medo do castigo.

O homem da máfia guarda semelhanças, no tratamento melancólico e fatalista, com Os amigos de Eddie Coyle, um filme de 1973, dirigido por Peter Yates, com Robert Mitchum. E isso não surpreende, pois ambos foram baseados em livros de George V. Higgins. Andrew Dominik, porém, atualizou a história e a trouxe para o ano de 2008, justamente o da crise financeira e o da disputa eleitoral que levou Barack Obama ao poder. A campanha política em si está sempre em segundo plano, geralmente em uma TV em que nenhum dos personagens presta atenção. Aqueles marginais claramente não acreditam nem um pouco nas palavrinhas bonitas de todos os políticos. Eles conhecem a vida dura deles, e sabem que não vai ser um partido republicano ou democrata no poder que vai mudar muita coisa, ainda mais para quem vive à margem da sociedade. Mas a crise financeira, esta sim os incomoda. E o diretor faz uma estranha, mas pertinente, analogia da vida dos gângsters com o que seria a vida de economistas e altos investidores. Uma aposta de alto risco, no filme, que conduz a um roubo oportunista, de certa forma espelha no que resultou a escalada da venda de dívida podre com o disfarce de dívida boa das hipotecas americanas. Era o mundo financeiro desabando por falta de fé no sistema em 2008, e o pequeno mundo dos insignificantes gângsters do enredo também sofrendo, pois ninguém mais quer arriscar seu patrimônio em jogos arriscados (jogos de cartas, e não de ações ou debêntures), e tudo por causa da ambição temerária destes tais ladrões, e do homem que pensou toda a operação.

Como não poderia deixar de ser, isto é um trabalho para o personagem de Brad Pitt resolver. Ele aparece apenas depois de bons minutos, mas toma conta do filme a partir daí. Ele está pronto para matar, mas não de forma atabalhoada. Ele gosta de matar suavemente, de forma quase indolor (o que explica o título original, “matando-os suavemente”, em uma tradução livre). Até prefere que um colega seu (James Gandolfini, o inesquecível Tony Soprano da famosa série de TV Os Sopranos) tente matar um dos “condenados”, por o conhecer e não querer misturar sentimentos durante o seu serviço. Mas mesmo neste mundo há uma certa burocracia, e ele deve seguir o que sugere/ordena o personagem de Richard Jenkins (O visitante, Queime depois de ler), e tentar improvisar com os erros que surgirem pelo caminho, na procura pelos ladrões.

Este filme registrou algumas pessoas saindo no meio das sessões nos EUA. Não é difícil de entender, inclusive quando se analisa o trailer dele, que promete um filme ágil, alucinante, e de diálogos marcantes. O homem da máfia não é este tipo de filme, apesar de estar sendo vendido assim. Trailers visam vendas, trazer o máximo de pessoas possível para dentro dos Cinemas. Não à toa, costumam gerar muitas decepções no público, por prometerem melancias e entregarem laranjas. Para o bem ou para o mal, Andrew Dominik não é Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Quentin Tarantino ou mesmo Guy Ritchie. O homem da máfia, apesar do tema, tem seu DNA egresso de O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford, apresentando algumas melhoras quanto à sua menor duração, e com atores um pouco mais tarimbados no seu leme (Ray Liotta e o ator/dramaturgo Sam Shepard também estão no elenco, em papéis menores). Este é o estilo do diretor, e saber isso de antemão evita que se criem expectativas erradas.

Para o que se propõe, O homem da máfia é um belo filme. O clima desolador, melancólico, de poucas esperanças, e onde cada um zela por si e evita esperar grandes ajudas dos outros, é muito bem trabalhado, evocando até um certo niilismo. Duas cenas saltam aos olhos, uma pela tensão (a do assalto propriamente dito) e a outra pelo esmero visual, um assassinato em câmera-lenta que deixaria Sam Peckinpah orgulhoso (uma das grandes cenas de 2012). O final deixa um pouco a desejar, até por ser um pouco abrupto, e por trazer o único discurso destoante do filme, que soa forçado. Mas fora isso é uma obra muito bem orquestrada, que mostra a evolução do diretor, que soube trabalhar com a adaptação do texto (o roteiro também é dele) e com os atores, com todos apresentando boas atuações (apesar de que poderia ter aproveitado um pouco mais o James Gandolfini). Porém, como é quase inevitável, é um filme que vai agradar a maioria dos críticos, e desagradar à maioria do público. Porque este vai seco para ver um novo Pulp fiction, Drive ou Os bons companheiros. Se fosse preparado para ver apenas o novo filme de Andrew Dominik, sairia bem mais satisfeito. Trailers e spots de TV podem ganhar trazer ganhos a curto prazo, mas podem ser catastróficos a longo prazo. Perde-se a confiança do público, algo incomensurável. Assim como também o era a fé do público no Sistema Financeiro, antes do escândalo do sub-prime. Nem os gângsters gostaram de ver o resultado daquilo, de assistir a um sistema que sabota a si mesmo.

sábado, 1 de dezembro de 2012

The girl (2012)




Há uma parte substancial em Um corpo que cai onde Scottie (James Stewart) faz de tudo para que Judy (Kim Novak) vire a sua musa inspiradora, a ponto de exigir que ela se vista, se maquie e se comporte exatamente como ele quer. Este comportamento obsessivo foi um traço de Hitchcock que vazou para as telas, em possivelmente seu melhor filme. O famoso diretor fez isto constantemente com suas atrizes, porém sempre lidando com profissionais já de certa fama e experiência, como Ingrid Bergman e Grace Kelly, por exemplo. Com Tippi Hedren, ele pegou uma modelo sem nenhuma experiência como atriz, e fez o possível para transformá-la em uma estrela de cinema e em seu ideal eterno de uma loura fria na aparência, mas fogosa por dentro. O fracasso foi tão grande, porém, que ele jamais tentou fazer isso novamente. A situação saiu totalmente de controle, a ponto de Tippi Hedren o acusar desde então de a ter assediado o tempo todo e, consequentemente, destruir seu futuro como atriz. O filme The girl, feito para a TV pela prestigiada HBO, com Julian Jarrold na direção, tenta analisar exatamente esta explosiva situação, que tanto machucou o diretor e a novata atriz, como respingou até em Marnie, confissões de uma ladra, filme que foi terminado com desgosto por um Hitchcock que mal teve ânimo para dirigi-lo até seu final.

A ressalva que se deve fazer, desde o princípio, é que o filme é adaptado do livro Fascinado pela beleza – Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, com roteiro de Gwyneth Hughes, e que praticamente assume que apresenta a versão de Tippi Hedren para tudo o que aconteceu. The girl sofre um pouco por justamente apresentar por demais apenas uma versão dos fatos. Alguns dos eventos ocorridos foram públicos, mas vários dos retratados aconteceram entre quatro paredes, com apenas Hitchcock e Tippi Hedren presentes. A versão de Tippi Hedren está no filme e no bom livro de Donald Spoto (um conhecido pesquisador de Cinema, que já escreveu três livros sobre Hitchcock, inclusive, então não se trata de algum simples enxerido). Quanto à versão de Hitchcock, provavelmente nunca saberemos.

Que Alfred Hitchcock, como pessoa, não era fácil de se lidar, isso Hollywood toda sabia. Neurótico, irônico, sarcástico, por vezes estúpido, Hitchcock nunca teve muito traquejo social, e feriu muitas pessoas durante sua carreira (não só atores e atrizes, mas também roteiristas, compositores, fotógrafos, etc.), morrendo em 1980 praticamente sem amigos no ramo. Alguns dos fatos apresentados em The girl são indiscutíveis e foram muito testemunhados, como o tormento desnecessário que ele fez Tippi Hedren passar, em uma semana de filmagens com pássaros reais sendo jogados em seu rosto constantemente (a atriz não ficou cega por sorte). Digamos que não bastaria vestir uma roupa vermelha em Hitchcock e colocar uma barba branca nele para que o diretor virasse o Papai Noel. Do bom velhinho, ele só tinha a barriga. Segundo Tippi Hedren, Donald Spoto, e o filme The girl, porém, seu comportamento se tornou especialmente abusivo com Tippi nos dois filmes que fez com ela (Os pássaros e Marnie, confissões de uma ladra). Talvez o fato dela ser uma novata, e ter que depender mais dele do que dependeram as outras atrizes, tenha piorado o quadro. Talvez o envelhecimento de Hitchcock tenha influído, com o fim de sua vida se aproximando, e toda a sua neurose, suas fobias, a notória baixa auto-estima por sua aparência (ele se considerava grotesco) e sua repressão sexual tenham atingido o ponto de ebulição. Talvez a própria paixonite que sentiu por Tippi Hedren (uma espécie de Judy da vida real, que topou inicialmente ser moldada conforme ele queria), tenha sido maior do que sentira por outras atrizes. O mais provável é que tenha sido, inclusive, uma soma de todos estes fatores. E Tippi Hedren acabou personificando a última gota que fez transbordar a taça. Hitchcock chamava todas as atrizes de seus filmes como “The girl”. “Todos os atores devem ser tratados como gado”, costumava dizer. Mas o filme atesta que essa girl teimou em mostrar que era uma woman também.

O filme inevitavelmente cativa um pouco por mostrar os meandros da Hollywood clássica, e algo da intimidade de um de seus maiores diretores. É quase impossível que um cinéfilo não se sinta atraído pelo tema do filme, que, diga-se de passagem, não torna por demais apelativas as cenas, nem exagera o sensacionalismo do que ocorreu (dentro do que era possível de se fazer). Apesar de ser uma produção abaixo do (alto) nível que a HBO se acostumou a fazer, The girl é satisfatório, visualmente agradável, tem um bom ritmo e alguns bons momentos. Passa de ano. Mas passa raspando, com direito a choro na diretoria para ganhar mais uns décimos na nota. Imelda Staunton, como Alma, a esposa de Hitchcock (tão importante em sua vida e carreira), é praticamente desperdiçada no filme, que não lhe dá a nuance e complexidade necessária para ilustrar melhor toda aquela história. O roteiro é incompleto e vago, e não espelha bem todo o histórico de Hitchcock até aquele episódio, assim como o de Tippi Hedren. Em alguns momentos, Hitchcock parece ser todo vil, o que não parece muito crível. O filme não consegue evitar um certo maniqueísmo, como na cena de teste da atriz antes de Os pássaros, rodada juntamente com Martin Balsam, que pode ser conferida em sites de vídeos, onde nota-se que ela está muito mais espontânea, sexy e segura do que é mostrado no filme, onde Hitchcock parecia um titereiro conduzindo uma pobre marionete indefesa.

Muita da preocupação de cinéfilos para com o filme era com o ator que interpretaria Hitchcock, por acharem que não ficaria nada parecido com o “Mestre do suspense”. Este, porém, foi um dos acertos do filme. Toby Jones, se não fica de fato muito parecido com Hitchcock visualmente, mesmo assim logo nos faz esquecer isto, pois sua voz está absurdamente semelhante com a de Hitchcock, e ele também assume seus maneirismos e forma de se portar com maestria. Toby Jones, aliás, está em uma fase de muito destaque em sua carreira, atuando em um filme atrás de outro, e vários de grande sucesso (como Jogos vorazes, Poder paranormal, Sete dias com Marilyn, O espião que sabia demais, etc.). Mesmo assim, pode-se dizer que é um tremendo de um azarado. Teve uma ótima atuação como Truman Capote em Confidencial, só para vê-la ser eclipsada pela de Philip Seymour Hoffman em Capote, um filme com muito mais prestígio e que deu a ele o Oscar de melhor ator. E em 2012 vê sua atuação competente como Alfred Hitchcock provavelmente passar pela mesma estrada, com o filme Hitchcock, onde Anthony Hopkins assume o papel do diretor, tendo tudo para ser o mais lembrado.

Sienna Miller, porém, como Tippi Hedren, não alcança o mesmo sucesso de Toby Jones no filme. E a culpa não é só dela, deve ser repartida com o diretor e a roteirista, que não lhe deram muitas ferramentas para compor melhor sua personagem. Entramos e saímos do filme sem conhecer muito Tippi Hedren. A atriz também não se parece muito com Hedren, e não consegue o que Toby Jones conseguiu, isto é, de fato entrar no papel, convencer o público apesar deste problema inicial. Quem era Tippi Hedren? Ingênua e inocente? Sedutora e ardilosa? Fracassou no seguir da carreira porque Hitchcock a perseguiu, por uma possível falta de talento, ou a soma das duas coisas? O filme não responde isso, e nem a atriz consegue atrair muito interesse em sua personagem. The girl, com todas as suas virtudes e defeitos, acaba por ser mais ou menos o que normalmente Hitchcock queria de suas atrizes principais: É atrativo por fora, pois agrada em uma análise mais superficial, mas acaba sendo frio por dentro, não tendo tanto impacto e complexidade como poderia ter. 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Na terra de amor e ódio (In the land of blood and honey – 2011)




A vida pode ser muito irônica. Foi durante as filmagens de um blockbuster baseado em um videogame, Lara Croft: Tomb Raider, que Angelina Jolie sofreu uma experiência que mudou a sua vida, ao ver a dureza da vida de milhares de pessoas no Cambodja, onde o filme tinha parte de suas locações. A partir daí foi cada vez mais se engajando em causas humanitárias, principalmente de refugiados, a ponto de se tornar Embaixadora da ONU, e doar aproximadamente um terço do que recebe para semelhantes causas. Na terra de amor e ódio é um filho direto desta Angelina Jolie politizada e consciente, muito mais do que a da atriz sexy de tantos sucessos no Cinema. Em seu primeiro longa de ficção (antes dirigira, em 2007, o documentário A place in time), que ela ainda produziu e escreveu o roteiro, Jolie demonstra não querer deixar, de jeito nenhum, que se caia no esquecimento toda a triste guerra, com tintas de limpeza étnica, que ocorreu com o esfarelamento da antiga Iugoslávia no começo dos anos 90.

A diretora se debruça sobre o ataque dos sérvios sobre a Bósnia, principalmente no tocante à perseguição dos muçulmanos desta região. Seu filme, duro e desconcertante, demonstra o quão próximo foi todo aquele evento do holocausto de poucas décadas antes, na Alemanha nazista. Em seu filme se observam eventos muito semelhantes, como a expulsão das pessoas de suas casas, a separação de maridos, esposas e filhos, chacinas generalizadas, e o aprisionamento e estupro sistemático de milhares de mulheres. É como se, em seu filme, Jolie advertisse a todos que a barbárie do passado pode perfeitamente voltar à tona, e com isso transformar o que hoje são comportados vizinhos em futuros inimigos mortais.

Se o filme funciona muito bem quanto à conscientização popular (o que por si só já justifica sua existência), com algumas belas cenas de grande escopo, ele tropeça justamente no que em tese seria mais fácil de retratar, no caso o drama íntimo dos personagens principais. Estes são Ajla (Zana Marjanovic) e Danijel (Goran Kostic), que se conhecem num bar e começam a dançar antes da guerra começar, e vêem o breve romance ser interrompido pelo deflagrar dos combates. Quando se reencontram, tudo está diferente, a relação de poder entre ambos passa a ser muito desequilibrada, pois ele é um militar sérvio e chefe de um campo de prisioneiros, e ela justamente uma de suas prisioneiras. E o pai dele, interpretado por Rade Serbedzija (o único rosto mais conhecido do elenco, uma daqueles coadjuvantes de diversos filmes, mais conhecido por Antes da chuva, de Milcho Manchevski), um militar de alta patente, não quer nem saber de qualquer confraternização de seu filho com um representante de um povo considerado por ele como “inferior”. A bizarra relação entre o casal não convence muito, e ambos os personagens poderiam ter sido um pouco mais elaborados. É uma relação muito doentia, e Jolie parece um pouco perdida entre a erotização dela e todo o sofrimento envolvido entre os dois. O desfecho do filme também pode soar pouco satisfatório. Fica claro que toda a atenção de Jolie estava muito mais focada em expor uma guerra que ela achava que não tinha recebido a devida atenção do resto do mundo (e com razão), do que em desenvolver um roteiro mais eficiente para o romance central da trama.

Não surpreende, assim, que o filme tenha recebido muitas críticas e elogios, quase que de forma equânime. Os espectadores mais focados no evento em si, na triste guerra em que a ONU teve que intervir (o filme inclusive aborda um pouco isso), tendem a apreciar Na terra de amor e ódio, por ele de fato pôr não só o dedo, mas a mão toda na ferida, e expor as agruras de uma guerra sem filtros. Coragem é o que não falta ao filme, e muito por isso Angelina Jolie é uma espécie de persona non grata na Sérvia atualmente. Aos mais interessados em um filme mais “normal”, de assistir ao desenrolar de um enredo mais envolvente, com personagens multifacetados, porém, a tendência é de uma relativa decepção.  Entre estes dois fronts de batalha, Na terra de amor e ódio sobrevive, com alguns ferimentos, decerto, mas com saúde suficiente para mostrar que a diretora tem futuro em duas de suas atuais profissões, tanto como diretora, quanto como Embaixadora da ONU (que, como ela mesma reconhece, é o que mais a motiva atualmente). Angelina Jolie poderia ficar o dia inteiro em uma piscina numa mansão de Beverly Hills, se quisesse. Mas prefere tentar ajudar o mundo à sua maneira, adotando algumas crianças, doando parte considerável de seus polpudos ganhos, auxiliando refugiados e, ao que parece, também passando a dirigir filmes para divulgar suas causas e temores. E ainda tem muita gente que acha que ela é uma “bad girl”... A vida pode ser muito irônica.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Cidade das ilusões (Fat city – 1972)




Em 1976, o primeiro filme da série Rocky estreava nos cinemas, e fez um sucesso estrondoso no mundo inteiro, sobre um lutador que sabia vencer todos os prognósticos e deixar a sua marca, sob uma trilha sonora inspiradora e empolgante. Cidade das ilusões, dirigido por John Huston e adaptado por Leonard Gardner de seu próprio livro, é quase como se fosse a história de um Rocky Balboa que não dá certo. Como se o Rocky de Sylvester Stallone nunca recebesse a chance de brigar pelo título, e passasse a carreira inteira participando de lutas menores, e sofrendo por ter que quebrar polegares de quem não pagasse ao agiota que o contratava.

Os Rockys fracassados do enredo de Cidade das ilusões são Billy Tully (Stacy Keach), um boxeador já nos seus 30 anos, em franco declínio, e Ernie Munger (Jeff Bridges), que ele reconhece como uma promessa e o estimula a começar a lutar. Ruben (Nicholas Colasanto) começa a treiná-lo, enxergando no jovem Munger uma chance de aparecer um novo grande lutador, e já começa a imaginá-lo lutando em grandes estádios. O filme até tapeia o espectador no comecinho, dando a impressão de que será mais um de centenas de filmes onde um jovem boxeador surge do nada para virar campeão mundial. Mas a realidade logo aparece, para derrubar as ilusões. Este filme de John Huston, aliás, se esmera em mostrar a realidade derrubando a esperança, nocauteando-a sem parar. Mas ela continua levantando, mesmo que cada vez mais grogue, e inclusive, a partir de certo ponto, sem saber sequer o porquê de continuar levantando. A busca pela glória é logo suplantada pela árdua luta por uma mera sobrevivência.

John Huston sempre se interessou por fracassados e sonhadores, talvez até por ter sido um por um bom tempo. Mesmo sendo um filho de Walter Huston, ele demorou a emplacar na vida, trabalhando em diversos empregos, e inclusive foi um campeão de boxe amador dos pesos leves, onde levou muita pancada (seu nariz nunca mais foi o mesmo). Chegou a praticamente mendigar na França nos anos 30, e inclusive acredita-se que tenha atropelado (e consequentemente matado) a esposa do ator brasileiro Raul Roulien em Los Angeles, de tão bêbado que andava o tempo todo. Mas John Huston afinal deu certo na vida, era um real talento, escrevendo e dirigindo. O problema maior é que boa parte das pessoas não tem um talento desta estatura. A maioria, por mais que se doa reconhecer, fracassa. E John Huston se compadece disso, apesar de que, em Cidade das ilusões, não tenha aliviado em nada seus personagens. Em O tesouro de Sierra Madre, por exemplo, seu filme mais famoso, os personagens descobrem ouro, suas esperanças encontram um mínimo de base sustentável. Mas a realidade de Cidade das ilusões é árida, é como se os três mineiradores nunca descobrissem ouro em momento algum e passassem o resto da vida na miséria, sonhando com riquezas infinitas, apesar de sempre dormirem na mesma pensão vagabunda.

E os fracassados do filme não são só os lutadores. O treinador Ruben também sonha alto, mas nunca consegue deixar de comandar um ginásio de quinta categoria, e Tully faz de tudo para recuperar sua esposa, Oma (Susan Tyrrell, que recebeu a única indicação ao Oscar do filme, de atriz coadjuvante), que não consegue largar a bebida, e passa o tempo todo reclamando de tudo e de todos. Sem saída, os boxeadores trabalham até em plantações, querendo ganhar ao menos um ganha-pão básico. E lá enxergam o quanto todos são, no fundo, muito semelhantes com eles, mais sendo nocauteados do que conseguindo alguma vitória. Um companheiro chega a afirmar que trabalhava a mais de 25 anos, e nunca tinha conseguido juntar dinheiro. E não diz isto com raiva ou desespero, mas com certa resignação. Quase todos ali já se acostumaram a beijar a lona.

O tom depressivo do filme (poucos chegam no mesmo nível de Cidade das ilusões neste aspecto) a todos suplanta, e aparece até nos adversários dos boxeadores. É nítido que eles são tão vítimas das circunstâncias quanto o são a dupla principal do filme. E mesmo quando Tully e Munger registram algumas vitórias, elas não parecem realmente triunfos. Parecem derrotas também. Eles passam a ter mais uma vitória no cartel, mas as pancadas recebidas continuam doendo, fazendo seu estrago. Mesmo assim, tanto eles como os adversários lutam até não poder mais. Acreditam além de qualquer lógica. E depois, detonados, têm que seguir com suas vidas em um quieto desespero. O final do filme é emblemático neste sentido, uma aula de sutileza, onde Tully infelizmente enxerga nele mesmo, no seu jovem amigo, num velhinho que serve café e em todos os bêbados jogando pôquer no bar, como um bando de sonhadores vãos.

Desnecessário, após tudo isso, atestar que Cidade das ilusões é um filme para poucos. Sua trilha sonora não é a famosa de Bill Conti, que levanta o espírito de qualquer defunto, mas uma que traz a chorosa “If”, do grupo Bread (que fez um enorme sucesso na época), e mais a igualmente melancólica “Help me make it through the night”, de Kris Kristofferson. A bela fotografia de Conrad L. Hall (À sangue frio, Butch Cassidy, Beleza americana) também reforça a desesperança geral. Os atores estão todos muito bem, desde o então muito novo Jeff Bridges, até a quase irritante (por causa de sua personagem) Susan Tyrrell. Mas o filme pertence mesmo a Stacy Keach, provavelmente em seu melhor papel. Seus olhos tristes e resignados contam tudo.

O Cinema de John Huston nunca foi muito afeito a finais felizes. Mas ao menos o miolo da maioria de seus filmes apresentava belas promessas aos personagens, e consequentemente ao público. Cidade das ilusões não. Aqui o remédio tem gosto de remédio, e infelizmente não traz cura nenhuma. O filme não tem medo de olhar o lado feio da vida, e tenta resgatar, em suas tripas, um mínimo de dignidade. É evidente que muitos espectadores não querem ver isso, e consequentemente os filmes mais otimistas sempre vão obter mais destaque. É natural, talvez inclusive seja uma reação mais saudável por parte do público. Os que tiverem estômago forte de se reconhecerem como integrantes do ringue da vida, porém, tendem a ver que, debaixo de tanta dor e depressão do excelente roteiro de Leonard Gardner, John Huston registrou mais uma vitória. Mais um filmaço para o cartel dele, um peso pesado dentre os diretores.

domingo, 25 de novembro de 2012

Uma mulher delicada (Une femme douce – 1969)




Robert Bresson conseguiu unir a crítica francesa e mundial em elogios ao seu Cinema, e isso numa época explosiva, em que a geração da Cahiers Du Cinéma destroçava a reputação de quase todos os cineastas anteriores à dela. Bresson, porém, não só passou incólume por este massacre de reputações, como também era muito admirado pelos integrantes da Nouvelle Vague, a ponto de Jean-Luc Godard dizer que seu status em relação ao Cinema francês era o mesmo que desfrutava Fiodor Dostoievski em relação à Literatura russa. Se assim o era, então em Uma mulher delicada houve a lustrosa “parceria” destes dois artistas, com Bresson adaptando um conto de Dostoievski (Uma criatura gentil), em seu primeiro filme colorido (o que foi acontecer apenas em 1969).

Se o Cinema de Bresson sempre recebeu aplausos da crítica em geral, em compensação ele nunca foi muito popular, devido ao fato de Bresson apostar em filmes calcados em interpretações minimalistas, reduzindo em muito a carga dramática delas que o público estava acostumado a ver, e usando atores amadores, que ele chamava de “modelos”. E foi justamente uma modelo (no caso, daquelas de passarelas mesmo) que ele colocou no papel principal do título, talvez a única atriz a ter conseguido destaque posteriormente na carreira após participar de um filme dele (como quase todos os atores eram amadores, abandonavam a carreira em seguida, como o fez o ator principal deste filme, Guy Frangin). E a escolha não poderia ter sido mais precisa. Dominique Sanda, em sua estreia no Cinema, é perfeita para o filme, por características que possivelmente apenas Vittorio de Sica, em seu clássico O jardim dos Fizzi-Contini, soube aproveitar tão bem como Bresson. Ela plaina, flutua sobre o filme, interpretando uma suicida que tem sua história lembrada pelo confuso e arrasado marido, que, defronte a seu caixão, tenta entender o que a levou a tão trágica atitude. O filme, consequentemente, tem este caráter de uma lembrança emotiva, e é claro que a parcialidade do narrador tem que ser levada em conta. Mas até que ponto, se é que seria o caso, a “culpa” de tal evento poderia ser creditada ao marido? O enredo não oferece uma solução prontinha, fácil, de se mostrar um marido abusivo, grosseiro, que agredisse a esposa e a forçasse a escolher uma solução drástica, ou algo assim. Bresson nunca é maniqueísta a este ponto. Cabe ao espectador formular a sua tese do porquê aquilo ter acontecido.

Dominique Sanda apresenta aqui algo que ela sabia fazer como ninguém, que é incorporar uma mulher doce, gentil, delicada de fato, mas que sabe ser agressiva em sua passividade. As coisas sempre parecem acontecer com ela, como se fosse sempre uma eterna vítima, mas até que ponto ela mesma não estaria no comando dos acontecimentos? A atriz consegue impor à sua personagem (tão etérea que nem é nomeada), a singularidade de ser ausente em sua presença. Ela está sempre lá, mas é como se não estivesse. É doce, mas não retribui muito o amor do marido. Delicada, mas sabe agredir com seus doces olhares e gestos. Fala macio, mas nunca é submissa ou obediente. E com isso, claro, quase enlouquece o certinho Luc de Guy Frangin, assim como fez com Lino Capolicchio em O jardim dos Fizzi-Contini. Talvez Luc não fosse mesmo o homem certo para ela. Assim como é possível que ninguém fosse, que ela fosse uma pessoa tão delicada, que não conseguiria sobreviver às inevitáveis agruras do cotidiano de um casal. O filme gira em torno desta personagem quase indecifrável, e o tom quieto e sossegado de Bresson, seu estilo minimalista, se encaixa com perfeição com o tom da história. É seu filme mais facilmente assimilável pelo público comum, apesar de hoje Uma mulher delicada ser um filme tão esquecido.

A atriz entrou pela porta da frente no Cinema, e ainda pisando em tapete vermelho. Depois dessa estreia com ninguém menos que Robert Bresson, seu segundo filme foi com Bernardo Bertolucci (O conformista), o terceiro foi dirigido por Maximilian Schell (Erste liebe), e no quarto atuou no clássico de Vittorio de Sica (O jardim dos Fizzi-Contini). E sempre em papéis de destaque. E, poucos anos depois, ganhou o prêmio de atriz em Cannes por A herdeira, de Mauro Bolognini, em 1976. Ainda trabalhou em O emissário de Mackintosh (de John Huston) e 1900 (Bertolucci de novo). Atua até hoje, mas claramente numa carreira mais discreta. Quem viu seu rosto, e escutou sua doce voz, porém, nunca esquece Dominique Sanda. Não são só os personagens de seus filmes que ficam hipnotizados por sua beleza e suavidade. Os espectadores caem no seu feitiço também, apesar dela parecer alheia e até contrafeita a causar semelhante efeito. Mas Bresson sabe controlá-la, e explorar o que ela tinha de melhor. Sua carreira foi o contrário da dela, pois teve um começo modesto. Dirigiu um curta de comédia (Les affaires de publique, com Marcel Dalio, em 1934), depois dois longas mais convencionais (e de boa qualidade!), Os anjos do pecado (1943), com Mila Parély, e As damas do Bois de Bologne (1945), com María Casares. Só com Diário de um pároco de aldeia, em 1951, começaria seu Cinema mais característico, onde passaria a desprezar trabalhar com atores profissionais ou em sets de estúdios, por achar que eles não eram reais. O destino uniu este diretor tão obcecado pela busca do real com uma atriz tão convidativa a uma atmosfera de sonho inalcançável. O resultado deste encontro singular está em Uma mulher delicada. Um filme que não está cotado como um dos melhores de Bresson. Mas deveria estar. Pranteia-se seu esquecimento assim como Luc o faz ao lado do caixão de sua esposa. Sem entender o porquê.