quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Na terra de amor e ódio (In the land of blood and honey – 2011)




A vida pode ser muito irônica. Foi durante as filmagens de um blockbuster baseado em um videogame, Lara Croft: Tomb Raider, que Angelina Jolie sofreu uma experiência que mudou a sua vida, ao ver a dureza da vida de milhares de pessoas no Cambodja, onde o filme tinha parte de suas locações. A partir daí foi cada vez mais se engajando em causas humanitárias, principalmente de refugiados, a ponto de se tornar Embaixadora da ONU, e doar aproximadamente um terço do que recebe para semelhantes causas. Na terra de amor e ódio é um filho direto desta Angelina Jolie politizada e consciente, muito mais do que a da atriz sexy de tantos sucessos no Cinema. Em seu primeiro longa de ficção (antes dirigira, em 2007, o documentário A place in time), que ela ainda produziu e escreveu o roteiro, Jolie demonstra não querer deixar, de jeito nenhum, que se caia no esquecimento toda a triste guerra, com tintas de limpeza étnica, que ocorreu com o esfarelamento da antiga Iugoslávia no começo dos anos 90.

A diretora se debruça sobre o ataque dos sérvios sobre a Bósnia, principalmente no tocante à perseguição dos muçulmanos desta região. Seu filme, duro e desconcertante, demonstra o quão próximo foi todo aquele evento do holocausto de poucas décadas antes, na Alemanha nazista. Em seu filme se observam eventos muito semelhantes, como a expulsão das pessoas de suas casas, a separação de maridos, esposas e filhos, chacinas generalizadas, e o aprisionamento e estupro sistemático de milhares de mulheres. É como se, em seu filme, Jolie advertisse a todos que a barbárie do passado pode perfeitamente voltar à tona, e com isso transformar o que hoje são comportados vizinhos em futuros inimigos mortais.

Se o filme funciona muito bem quanto à conscientização popular (o que por si só já justifica sua existência), com algumas belas cenas de grande escopo, ele tropeça justamente no que em tese seria mais fácil de retratar, no caso o drama íntimo dos personagens principais. Estes são Ajla (Zana Marjanovic) e Danijel (Goran Kostic), que se conhecem num bar e começam a dançar antes da guerra começar, e vêem o breve romance ser interrompido pelo deflagrar dos combates. Quando se reencontram, tudo está diferente, a relação de poder entre ambos passa a ser muito desequilibrada, pois ele é um militar sérvio e chefe de um campo de prisioneiros, e ela justamente uma de suas prisioneiras. E o pai dele, interpretado por Rade Serbedzija (o único rosto mais conhecido do elenco, uma daqueles coadjuvantes de diversos filmes, mais conhecido por Antes da chuva, de Milcho Manchevski), um militar de alta patente, não quer nem saber de qualquer confraternização de seu filho com um representante de um povo considerado por ele como “inferior”. A bizarra relação entre o casal não convence muito, e ambos os personagens poderiam ter sido um pouco mais elaborados. É uma relação muito doentia, e Jolie parece um pouco perdida entre a erotização dela e todo o sofrimento envolvido entre os dois. O desfecho do filme também pode soar pouco satisfatório. Fica claro que toda a atenção de Jolie estava muito mais focada em expor uma guerra que ela achava que não tinha recebido a devida atenção do resto do mundo (e com razão), do que em desenvolver um roteiro mais eficiente para o romance central da trama.

Não surpreende, assim, que o filme tenha recebido muitas críticas e elogios, quase que de forma equânime. Os espectadores mais focados no evento em si, na triste guerra em que a ONU teve que intervir (o filme inclusive aborda um pouco isso), tendem a apreciar Na terra de amor e ódio, por ele de fato pôr não só o dedo, mas a mão toda na ferida, e expor as agruras de uma guerra sem filtros. Coragem é o que não falta ao filme, e muito por isso Angelina Jolie é uma espécie de persona non grata na Sérvia atualmente. Aos mais interessados em um filme mais “normal”, de assistir ao desenrolar de um enredo mais envolvente, com personagens multifacetados, porém, a tendência é de uma relativa decepção.  Entre estes dois fronts de batalha, Na terra de amor e ódio sobrevive, com alguns ferimentos, decerto, mas com saúde suficiente para mostrar que a diretora tem futuro em duas de suas atuais profissões, tanto como diretora, quanto como Embaixadora da ONU (que, como ela mesma reconhece, é o que mais a motiva atualmente). Angelina Jolie poderia ficar o dia inteiro em uma piscina numa mansão de Beverly Hills, se quisesse. Mas prefere tentar ajudar o mundo à sua maneira, adotando algumas crianças, doando parte considerável de seus polpudos ganhos, auxiliando refugiados e, ao que parece, também passando a dirigir filmes para divulgar suas causas e temores. E ainda tem muita gente que acha que ela é uma “bad girl”... A vida pode ser muito irônica.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Cidade das ilusões (Fat city – 1972)




Em 1976, o primeiro filme da série Rocky estreava nos cinemas, e fez um sucesso estrondoso no mundo inteiro, sobre um lutador que sabia vencer todos os prognósticos e deixar a sua marca, sob uma trilha sonora inspiradora e empolgante. Cidade das ilusões, dirigido por John Huston e adaptado por Leonard Gardner de seu próprio livro, é quase como se fosse a história de um Rocky Balboa que não dá certo. Como se o Rocky de Sylvester Stallone nunca recebesse a chance de brigar pelo título, e passasse a carreira inteira participando de lutas menores, e sofrendo por ter que quebrar polegares de quem não pagasse ao agiota que o contratava.

Os Rockys fracassados do enredo de Cidade das ilusões são Billy Tully (Stacy Keach), um boxeador já nos seus 30 anos, em franco declínio, e Ernie Munger (Jeff Bridges), que ele reconhece como uma promessa e o estimula a começar a lutar. Ruben (Nicholas Colasanto) começa a treiná-lo, enxergando no jovem Munger uma chance de aparecer um novo grande lutador, e já começa a imaginá-lo lutando em grandes estádios. O filme até tapeia o espectador no comecinho, dando a impressão de que será mais um de centenas de filmes onde um jovem boxeador surge do nada para virar campeão mundial. Mas a realidade logo aparece, para derrubar as ilusões. Este filme de John Huston, aliás, se esmera em mostrar a realidade derrubando a esperança, nocauteando-a sem parar. Mas ela continua levantando, mesmo que cada vez mais grogue, e inclusive, a partir de certo ponto, sem saber sequer o porquê de continuar levantando. A busca pela glória é logo suplantada pela árdua luta por uma mera sobrevivência.

John Huston sempre se interessou por fracassados e sonhadores, talvez até por ter sido um por um bom tempo. Mesmo sendo um filho de Walter Huston, ele demorou a emplacar na vida, trabalhando em diversos empregos, e inclusive foi um campeão de boxe amador dos pesos leves, onde levou muita pancada (seu nariz nunca mais foi o mesmo). Chegou a praticamente mendigar na França nos anos 30, e inclusive acredita-se que tenha atropelado (e consequentemente matado) a esposa do ator brasileiro Raul Roulien em Los Angeles, de tão bêbado que andava o tempo todo. Mas John Huston afinal deu certo na vida, era um real talento, escrevendo e dirigindo. O problema maior é que boa parte das pessoas não tem um talento desta estatura. A maioria, por mais que se doa reconhecer, fracassa. E John Huston se compadece disso, apesar de que, em Cidade das ilusões, não tenha aliviado em nada seus personagens. Em O tesouro de Sierra Madre, por exemplo, seu filme mais famoso, os personagens descobrem ouro, suas esperanças encontram um mínimo de base sustentável. Mas a realidade de Cidade das ilusões é árida, é como se os três mineiradores nunca descobrissem ouro em momento algum e passassem o resto da vida na miséria, sonhando com riquezas infinitas, apesar de sempre dormirem na mesma pensão vagabunda.

E os fracassados do filme não são só os lutadores. O treinador Ruben também sonha alto, mas nunca consegue deixar de comandar um ginásio de quinta categoria, e Tully faz de tudo para recuperar sua esposa, Oma (Susan Tyrrell, que recebeu a única indicação ao Oscar do filme, de atriz coadjuvante), que não consegue largar a bebida, e passa o tempo todo reclamando de tudo e de todos. Sem saída, os boxeadores trabalham até em plantações, querendo ganhar ao menos um ganha-pão básico. E lá enxergam o quanto todos são, no fundo, muito semelhantes com eles, mais sendo nocauteados do que conseguindo alguma vitória. Um companheiro chega a afirmar que trabalhava a mais de 25 anos, e nunca tinha conseguido juntar dinheiro. E não diz isto com raiva ou desespero, mas com certa resignação. Quase todos ali já se acostumaram a beijar a lona.

O tom depressivo do filme (poucos chegam no mesmo nível de Cidade das ilusões neste aspecto) a todos suplanta, e aparece até nos adversários dos boxeadores. É nítido que eles são tão vítimas das circunstâncias quanto o são a dupla principal do filme. E mesmo quando Tully e Munger registram algumas vitórias, elas não parecem realmente triunfos. Parecem derrotas também. Eles passam a ter mais uma vitória no cartel, mas as pancadas recebidas continuam doendo, fazendo seu estrago. Mesmo assim, tanto eles como os adversários lutam até não poder mais. Acreditam além de qualquer lógica. E depois, detonados, têm que seguir com suas vidas em um quieto desespero. O final do filme é emblemático neste sentido, uma aula de sutileza, onde Tully infelizmente enxerga nele mesmo, no seu jovem amigo, num velhinho que serve café e em todos os bêbados jogando pôquer no bar, como um bando de sonhadores vãos.

Desnecessário, após tudo isso, atestar que Cidade das ilusões é um filme para poucos. Sua trilha sonora não é a famosa de Bill Conti, que levanta o espírito de qualquer defunto, mas uma que traz a chorosa “If”, do grupo Bread (que fez um enorme sucesso na época), e mais a igualmente melancólica “Help me make it through the night”, de Kris Kristofferson. A bela fotografia de Conrad L. Hall (À sangue frio, Butch Cassidy, Beleza americana) também reforça a desesperança geral. Os atores estão todos muito bem, desde o então muito novo Jeff Bridges, até a quase irritante (por causa de sua personagem) Susan Tyrrell. Mas o filme pertence mesmo a Stacy Keach, provavelmente em seu melhor papel. Seus olhos tristes e resignados contam tudo.

O Cinema de John Huston nunca foi muito afeito a finais felizes. Mas ao menos o miolo da maioria de seus filmes apresentava belas promessas aos personagens, e consequentemente ao público. Cidade das ilusões não. Aqui o remédio tem gosto de remédio, e infelizmente não traz cura nenhuma. O filme não tem medo de olhar o lado feio da vida, e tenta resgatar, em suas tripas, um mínimo de dignidade. É evidente que muitos espectadores não querem ver isso, e consequentemente os filmes mais otimistas sempre vão obter mais destaque. É natural, talvez inclusive seja uma reação mais saudável por parte do público. Os que tiverem estômago forte de se reconhecerem como integrantes do ringue da vida, porém, tendem a ver que, debaixo de tanta dor e depressão do excelente roteiro de Leonard Gardner, John Huston registrou mais uma vitória. Mais um filmaço para o cartel dele, um peso pesado dentre os diretores.

domingo, 25 de novembro de 2012

Uma mulher delicada (Une femme douce – 1969)




Robert Bresson conseguiu unir a crítica francesa e mundial em elogios ao seu Cinema, e isso numa época explosiva, em que a geração da Cahiers Du Cinéma destroçava a reputação de quase todos os cineastas anteriores à dela. Bresson, porém, não só passou incólume por este massacre de reputações, como também era muito admirado pelos integrantes da Nouvelle Vague, a ponto de Jean-Luc Godard dizer que seu status em relação ao Cinema francês era o mesmo que desfrutava Fiodor Dostoievski em relação à Literatura russa. Se assim o era, então em Uma mulher delicada houve a lustrosa “parceria” destes dois artistas, com Bresson adaptando um conto de Dostoievski (Uma criatura gentil), em seu primeiro filme colorido (o que foi acontecer apenas em 1969).

Se o Cinema de Bresson sempre recebeu aplausos da crítica em geral, em compensação ele nunca foi muito popular, devido ao fato de Bresson apostar em filmes calcados em interpretações minimalistas, reduzindo em muito a carga dramática delas que o público estava acostumado a ver, e usando atores amadores, que ele chamava de “modelos”. E foi justamente uma modelo (no caso, daquelas de passarelas mesmo) que ele colocou no papel principal do título, talvez a única atriz a ter conseguido destaque posteriormente na carreira após participar de um filme dele (como quase todos os atores eram amadores, abandonavam a carreira em seguida, como o fez o ator principal deste filme, Guy Frangin). E a escolha não poderia ter sido mais precisa. Dominique Sanda, em sua estreia no Cinema, é perfeita para o filme, por características que possivelmente apenas Vittorio de Sica, em seu clássico O jardim dos Fizzi-Contini, soube aproveitar tão bem como Bresson. Ela plaina, flutua sobre o filme, interpretando uma suicida que tem sua história lembrada pelo confuso e arrasado marido, que, defronte a seu caixão, tenta entender o que a levou a tão trágica atitude. O filme, consequentemente, tem este caráter de uma lembrança emotiva, e é claro que a parcialidade do narrador tem que ser levada em conta. Mas até que ponto, se é que seria o caso, a “culpa” de tal evento poderia ser creditada ao marido? O enredo não oferece uma solução prontinha, fácil, de se mostrar um marido abusivo, grosseiro, que agredisse a esposa e a forçasse a escolher uma solução drástica, ou algo assim. Bresson nunca é maniqueísta a este ponto. Cabe ao espectador formular a sua tese do porquê aquilo ter acontecido.

Dominique Sanda apresenta aqui algo que ela sabia fazer como ninguém, que é incorporar uma mulher doce, gentil, delicada de fato, mas que sabe ser agressiva em sua passividade. As coisas sempre parecem acontecer com ela, como se fosse sempre uma eterna vítima, mas até que ponto ela mesma não estaria no comando dos acontecimentos? A atriz consegue impor à sua personagem (tão etérea que nem é nomeada), a singularidade de ser ausente em sua presença. Ela está sempre lá, mas é como se não estivesse. É doce, mas não retribui muito o amor do marido. Delicada, mas sabe agredir com seus doces olhares e gestos. Fala macio, mas nunca é submissa ou obediente. E com isso, claro, quase enlouquece o certinho Luc de Guy Frangin, assim como fez com Lino Capolicchio em O jardim dos Fizzi-Contini. Talvez Luc não fosse mesmo o homem certo para ela. Assim como é possível que ninguém fosse, que ela fosse uma pessoa tão delicada, que não conseguiria sobreviver às inevitáveis agruras do cotidiano de um casal. O filme gira em torno desta personagem quase indecifrável, e o tom quieto e sossegado de Bresson, seu estilo minimalista, se encaixa com perfeição com o tom da história. É seu filme mais facilmente assimilável pelo público comum, apesar de hoje Uma mulher delicada ser um filme tão esquecido.

A atriz entrou pela porta da frente no Cinema, e ainda pisando em tapete vermelho. Depois dessa estreia com ninguém menos que Robert Bresson, seu segundo filme foi com Bernardo Bertolucci (O conformista), o terceiro foi dirigido por Maximilian Schell (Erste liebe), e no quarto atuou no clássico de Vittorio de Sica (O jardim dos Fizzi-Contini). E sempre em papéis de destaque. E, poucos anos depois, ganhou o prêmio de atriz em Cannes por A herdeira, de Mauro Bolognini, em 1976. Ainda trabalhou em O emissário de Mackintosh (de John Huston) e 1900 (Bertolucci de novo). Atua até hoje, mas claramente numa carreira mais discreta. Quem viu seu rosto, e escutou sua doce voz, porém, nunca esquece Dominique Sanda. Não são só os personagens de seus filmes que ficam hipnotizados por sua beleza e suavidade. Os espectadores caem no seu feitiço também, apesar dela parecer alheia e até contrafeita a causar semelhante efeito. Mas Bresson sabe controlá-la, e explorar o que ela tinha de melhor. Sua carreira foi o contrário da dela, pois teve um começo modesto. Dirigiu um curta de comédia (Les affaires de publique, com Marcel Dalio, em 1934), depois dois longas mais convencionais (e de boa qualidade!), Os anjos do pecado (1943), com Mila Parély, e As damas do Bois de Bologne (1945), com María Casares. Só com Diário de um pároco de aldeia, em 1951, começaria seu Cinema mais característico, onde passaria a desprezar trabalhar com atores profissionais ou em sets de estúdios, por achar que eles não eram reais. O destino uniu este diretor tão obcecado pela busca do real com uma atriz tão convidativa a uma atmosfera de sonho inalcançável. O resultado deste encontro singular está em Uma mulher delicada. Um filme que não está cotado como um dos melhores de Bresson. Mas deveria estar. Pranteia-se seu esquecimento assim como Luc o faz ao lado do caixão de sua esposa. Sem entender o porquê.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Disparos (2012)




O título do longa de estréia da diretora Juliana Reis (que dirigiu alguns curtas na França, onde fez Mestrado em Cinema) aborda não só os disparos de uma arma, como também os de uma câmera de um fotógrafo. A analogia entre a profissão de um fotógrafo e a de um policial é constante, e o próprio filme é dividido em capítulos, com títulos que remetem a todo o processo de fotografia (abertura, exposição, etc.). Nada mais natural que o personagem principal de Disparos fosse um fotógrafo, Henrique (Gustavo Machado), que passa por uma bizarra situação de se transformar, em segundos, de vítima de um assalto a testemunha de um atropelamento, e tem a dura tarefa de tentar convencer a polícia de seu não envolvimento em todo aquele incidente. Não ajuda, claro, que seja recebido com generosas doses de escárnio e ironia por policiais como o Inspetor Freire e o Inspetor Gomes, brilhantemente interpretados por Caco Ciocler e Thelmo Fernandes, respectivamente. Caco Ciocler, vencedor do prêmio de ator coadjuvante do Festival do Rio 2012 (o filme também levou os prêmios de fotografia e edição), é um enigma no filme, e Juliana Reis explora muito bem a tensão entre seu personagem e o de Gustavo Machado. Nota-se o escárnio dele pela profissão de um repórter, e o fotógrafo, também arrogante e difícil de lidar, tateia para tentar descobrir as reais intenções do Inspetor.

Disparos é intrigante quando lida com estes personagens, e com o périplo deles em descobrir os meandros daquele estranho atropelamento, desembarcando também em um hospital, onde também brilha Julio Adrão, como o Doutor Guido. É como se médicos, policiais e fotógrafos formassem parte de um estranho clube, no caso o de acostumados a trabalhar de forma fria e metódica em volta dos desastres noturnos de uma cidade grande. Disparos mostra como estes profissionais formam uma espécie de escudo em volta de si, e mesmo com tantas diferenças em suas profissões (e ataques constantes de uns contra outros), é como se reconhecessem entre si o fato de serem sobreviventes da noite carioca. Lamentavelmente, porém, o filme não se concentra apenas nesta trama, se dividindo também em sub-tramas menos interessantes, também relacionadas ao acidente, é verdade, mas que não são tão bem desenvolvidas. Se o filme cresce em escopo ao analisar a realidade dos assaltantes e de quem de fato os atropelou, entre outros personagens, mostrando um cenário um pouco mais completo de uma noite do Rio de Janeiro (dissonante de qualquer viés turístico), em compensação o filme perde um pouco o foco ao tentar equilibrar tantos pratos ao mesmo tempo.

A diretora trabalhou bem com Gustavo Hadba, diretor de fotografia, a elaboração de uma noite de poucas esperanças, juntamente com a edição de Pedro Bonz e Marília Moraes e a trilha sonora de Mariana Camargo (que trabalhou com a diretora em seu primeiro curta, Les enfants de charbon, de 1993). E soube adoçar a amarga pílula um pouco com alguns momentos de humor, que espocam como flashes de uma câmera. Criou, enfim, um filme policial sem abusar da violência e de momentos apelativos, se baseando mais nos atores e numa atmosfera reflexiva. Os únicos disparos contra o filme são mesmo sua estrutura multi-facetada, recheada ainda de alguns pulos temporais, um vício do Cinema atual. Mas, felizmente, não são disparos de morte, o filme sobrevive para encarar um novo dia, com a mesma resignação de seus personagens, todos culpados e vítimas, ao mesmo tempo, de uma dura realidade de uma cidade do porte do Rio de Janeiro.  

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

56 up (2012)




56 up é o último de uma série lendária de documentários feitos para a TV inglesa (quase todos do canal ITV). Após um começo modesto, com o curta Seven up! (dirigido por Paul Almond), o então pesquisador do curta, Michael Apted, deu prosseguimento à ela, filmando de 7 em 7 anos a vida de um pouco mais de uma dezena de pessoas desconhecidas, desde os sete anos de idade de cada uma, até a presente idade de 56 anos (daí o título). Impressiona que este projeto nunca tenha sido abandonado, pois a probabilidade disso era bem grande, tanto por desinteresse dos entrevistados, como pelo próprio sucesso da carreira de Michael Apted como diretor, em filmes tão díspares como O destino mudou sua vida (onde Sissy Spacek ganhou um Oscar de melhor atriz), Mistério no parque Gorky, Nas montanhas dos gorilas (com Sigourney Weaver), Nell (com Jodie Foster) e blockbusters como 007 – O mundo não é o bastante (um dos melhores da série de James Bond) e As crônicas de Nárnia: A viagem do peregrino da alvorada. Mas Apted sempre se forçou a continuar a pouco lucrativa série de filmes, se preparando para, a cada 7 anos, fazer mais uma rodada de entrevistas com todos essas mesmas pessoas. O resultado é fascinante e inesquecível, e a série encorpa a cada novo episódio.

O objetivo inicial dela era mostrar a força da divisão das classes inglesas, e de como elas praticamente determinavam o futuro das pessoas. Apted escolheu algumas crianças pobres, e algumas ricas (com poucas mulheres e também ignorando a classe média, coisa da qual se arrependeu futuramente, mas isto não machuca a série, até porque vários integrantes dela entraram para a classe média mesmo, com o tempo). O mote original, que inspirou o primeiro filme, de base jesuíta, numa tradução bastante livre significava “Dê-me uma criança de 7 anos, que lhe apontarei o adulto que sairá dela”. O desenrolar dos documentários, evidentemente, refuta totalmente esta ideia e mostra o quão difícil é fazer previsões em cima de crianças. O menino mais charmoso e carismático do primeiro filme praticamente enlouquece perto dos 30 anos, a ponto de quase virar um mendigo (e, depois, consegue sair da pior, refutando outra previsão de que “este aí já está perdido”). Duas crianças da classe alta parecem ser irrevogavelmente esnobes, mas se tornam adultos bastante razoáveis e simpáticos. Um dos entrevistados, que Michael Apted jurava que viraria um bandido e seria preso, acaba por ter um futuro próspero. As surpresas surgem, e, principalmente, as pessoas mudam. Quem assiste à série up vê o quão efêmeras são certas filosofias de vida que, à primeira vista, parecem imutáveis e definitivas. O destino de ninguém parece realmente traçado desde o início. E, em alguns casos, nem mesmo o caráter e o comportamento básico se mantém com o tempo.  

Ao assistir essas pessoas falando de suas vidas, com as mais diferentes idades, por vezes pode ser difícil não rir delas ou evitar julgá-las severamente. Algumas crianças e adolescentes parecem “esquisitos”, dão respostas atravessadas, mal olham (se olham) para a câmera ou para o entrevistador. Mostrar momentos assim, sem filtros nem nada, é um dos maiores dentre os inúmeros méritos desta série de filmes. Não temos aqui pessoas e situações glamourizadas, ou preparadas para ver a câmera, e saber lidar com ela sem desembaraço. É gente comum, que é filmada apenas de 7 em 7 anos, e que muitas vezes reconhece que fica nervosa ao ver a data do novo filme se aproximando. Milhares de filmes de ficção com adolescentes carismáticos, interpretados por atores tarimbados, desacostumam o público a ver gente comum falando de assuntos comuns. Os adolescentes de 7 plus seven, por exemplo, se comportam como boa parte dos adolescentes de 14 anos que se vê no dia-a-dia, arredios, envergonhados, sem saber o que fazer ou o que responder na presença de um adulto que lhes faz perguntas difíceis e intrometidas. Para quem ri deles, ou os menospreza, fica sempre a pergunta no ar: Como nos comportaríamos se fossemos nós os entrevistados? O que responderíamos sobre nossas vidas aos 7, 14, 21, 28, 35, 42, 49 e 56 anos de idade? Seríamos sempre “brilhantes” e carismáticos, em cada uma dessas ocasiões? Seríamos sempre coerentes com o nosso passado, que inclusive está registrado em filme, um passado que não se pode negar? E se as filmagens surgissem, por azar, justamente num momento de crise (familiar, pessoal, financeira, o que for)? Como proceder?

Era inevitável que um ou outro entrevistado fugisse da série de filmes. Algumas desistências aconteceram aqui e ali, por medo de invasão de privacidade, até porque todos ficaram um pouco famosos na Inglaterra por causa dos filmes (e é um pouco desagradável que seus vizinhos ou colegas de trabalho, por exemplo, saibam tanto de suas vidas). Mas praticamente todos voltaram depois a participar de futuros filmes da série, inclusive em 56 up um deles volta à cena depois de ficar de fora de vários filmes, desde a juventude. Neste último filme, aliás, nota-se como todos já estão mais maduros. 56 up de fato não tem mais o fulgor dos filmes sobre a juventude deles, onde viviam épocas mais decisivas de suas vidas. O filme tem, inevitavelmente, um tom mais tranquilo e ameno. Porém, todos já se acostumaram mais com a câmera, e sabem olhar com serenidade e perspectiva para suas próprias vidas, entendem e aceitam melhor seus lugares no mundo que as rodeia. Muitos já tem filhos e netos, e suas famílias acrescentam toda uma nova complexidade ao filme. O próprio Michael Apted foi ficando mais maduro e compreensivo. Tendo passado por dois divórcios, ele mesmo reconheceu que passou a compreender e respeitar muito mais as atribulações das vidas daquelas pessoas. E abre espaço para que eles reclamem da série, do diretor e do efeito que ela teve em suas vidas. Isto já vinha acontecendo nos últimos filmes, mas em 56 up as reclamações são mais acentuadas, e ocorre até mesmo uma defesa e explicação de alguns entrevistados do porquê de terem se comportado de certa maneira em filmes passados.

56 up não exige que o espectador tenha visto os outros filmes da série. Dá para se entender a vida de cada um ali, até porque a série se utiliza, em cada filme, de cenas dos filmes anteriores, o que dá um bom suporte e evita que o público fique desnorteado. Mas é óbvio que ver todos os filmes enriquece absurdamente a experiência. Um filme energiza o outro, e todos juntos fazem uma rede quase indissociável. Se apenas o primeiro filme fosse feito, seria até um curta um pouco chatinho, com algumas crianças, em sua maioria, pouco interessantes. Os outros filmes, já mais encorpados (inclusive em tamanho, 56 up tem duas horas e meia), se seguram sozinhos, mas é o conhecimento do todo da vida daquelas pessoas que acrescenta demais o valor do que se vê, que dá todo um contexto e significado para quem assiste a série toda. Acompanhando todos os filmes, é possível até enxergar quando uma pessoa usa mecanismos de defesa para fugir de certas perguntas, ou seja, passamos a “conhecer” melhor aquelas pessoas, a ter uma certa “intimidade” com elas, do que teríamos em um documentário normal com entrevistados a esmo falando. A série up é fascinante pois é sobre a vida, não a vida glamourizada de tantos filmes, não sobre grandes momentos ou frases brilhantes, mas sobre sonhos (realizados e desfeitos), frustrações, timidez, preguiça, loucura, chateações, arrogância, humildade, etc. O espectro humano é representado em todas as suas cores, naqueles (em tese) banais ingleses respondendo a perguntas de Michael Apted. Os entrevistados, apesar de tão incomodados com todo o processo, não conseguiram largar a série. Michael Apted também não, mesmo que tenha que largar tudo para continuar filmando, a cada 7 anos que se passam. E nem o espectador tampouco. Ela vicia (e inspirou outros diversos projetos semelhantes, nos EUA, Japão, África do Sul, Suécia e Rússia). Mas, felizmente, é um ótimo vício, sem nenhum efeito colateral que não seja uma possível maior compreensão do mundo e das pessoas normais que o habitam, essas mesmas que pegam ônibus, pagam contas, têm filhos e netos, traem a esposa, trocam de emprego, se arrependem, mudam de país... Aliás, ela tem outro efeito colateral sim: Deixar que cada espectador-viciado, desde já, esfregue as mãos para poder ver o próximo filme. Se nada sair dos trilhos, em 2019 será filmado o 63 up. E nele muita gente estará interessada em ver o que teria acontecido nos últimos sete anos das vidas de Bruce, Andrew, Neil, John, Suzy, Nick, Paul, Jackie, Tony e Cia.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Cinzas ao vento (Bright leaf – 1950)




Cinzas ao vento, o título em português para Bright leaf (uma folha especial de tabaco), é um título de fato muito adequado, não só para o enredo, como também para o que ocorreu com o filme e com a própria indústria de tabaco. Não que ela ainda não renda seus bilhões mundo afora, e mantenha uma clientela expressiva, mas de fato pela metade do século passado era um indústria que mantinha um belo de um status em torno de si. Com propagandas veiculando em todas as mídias, e com um peso forte no Cinema (era difícil se ver um filme em que a fumaça de um cigarro não constasse), era considerado chique fumar. Cinzas ao vento trata exatamente do começo de uma verdadeira indústria de tabaco, no fim do Século XIX, ao mostrar o personagem fictício Brant Royle (Gary Cooper) pôr em prática a fabricação em série, automatizada, de cigarros para o uso popular. Antes ou se fumavam charutos, ou então era necessário se enrolar o cigarro pessoalmente (cena corriqueira de vários westerns, inclusive). Fumar charuto era curtir o verdadeiro tabaco, como defende no filme o aristocrático James Singleton (Donald Crisp), que se recusa a se meter no que considera algo menor e pouco honroso. Não deixa de ser curioso, aliás, que essa visão se mantenha até os dias de hoje, claro que já um pouco diluída, mas ainda presente. Fumar charutos continua sendo visto como algo mais chique e refinado do que fumar um cigarro vendido em qualquer birosca de meio de estrada.

Cinzas ao vento apresenta mais um capítulo da eterna batalha entre um novo-rico ousado e agressivo, contra um milionário aristocrático e por demais focado em um antigo conceito de honra. Mas o filme tem outras camadas, como mostrar o quanto ser obcecado por um ideal (ou por outra pessoa) pode ser prejudicial, e isso, curiosamente, se verifica não só no Royle de Gary Cooper, como em todos os personagens principais, vítimas de suas paixões e obsessões. Apresentando no elenco ainda Patricia Neal, como a filha de Singleton, e mais Lauren Bacall, como uma dona de bordel que auxilia (e ama) o Royle de Gary Cooper, e nota-se que se trata de um filme de certo porte, para dizer o mínimo. Donald Crisp, pioneiraço do Cinema (era amigo de Griffith quando ambos trabalhavam no teatro, e foi junto com ele para a então  bucólica Hollywood) está ótimo como o aristocrata cabeça-dura Singleton, assim como esteve em vários papéis proletários no passado (o de mais destaque foi Como era verde o meu vale, onde era o patriarca de uma família de pobres carvoeiros na Irlanda), o que demonstra que tinha uma amplitude muito grande, e convencia em qualquer papel. O próprio elenco coadjuvante do filme também ajuda, com Jeff Corey sendo o inspirador da ideia de se industrializar a venda de cigarros, e Jack Carson, quem diria, sóbrio e contido como uma espécie de braço direito de Royle. Todos estão muito bem, com apenas Patricia Neal destoando em um ou outro momento um pouco exagerado (apesar de que sua personagem exigia isto). Jack Carson, Lauren Bacall e Gary Cooper, porém, estão em alguns dos melhores momentos de suas carreiras. Gary Cooper, principalmente a partir da metade do filme, se mostra agressivo, turrão, estúpido e antipático, algo totalmente fora da persona cinematográfica dele, mas o faz com muita competência (e cala um pouco a boca dos que o criticam de “sempre atuar como si mesmo”), o que surpreende e traz ainda mais força ao filme. O romance polêmico que ele teve com Patricia Neal, vigente durante as filmagens e que surgira no filme anterior deles, Vontade indômita (The fountainhead), é quase palpável no filme (apesar da relação de seus personagens ser bem doentia), e talvez tenha ajudado Gary Cooper a sair de sua zona de conforto. E no leme deste transatlântico estava um diretor da chapa de Michael Curtiz, o que significava sempre uma garantia de uma narrativa bem contada e envolvente, além de um pulso firme para controlar tantos atores de renome.

O filme tinha tudo para fazer sucesso, mas não fez. O público o esnobou, os críticos não fizeram muito melhor, todos os prêmios o ignoraram, e o tempo fez com que ficasse mais soterrado ainda. Difícil por vezes explicar fracassos e sucessos, mas é possível que Cinzas ao vento fosse um pouco à frente de seu tempo. Ele não parece um filme de 1950, e sim um da década de 60. Os personagens tem questionamentos, dúvidas, arrependimentos, e o tom é sombrio e nada esperançoso, coisas com que o espectador da época não estava muito acostumado. Ainda por cima, o começo dele parece ser de um western típico (Gary Cooper chegando à cavalo em uma pequena cidade, no fim do Século XIX, e atraindo a atenção de todos, que se lembravam dele no passado), mas depois se desdobra como um drama com tons épicos. Pode ter desnorteado o público de então. Porém, aos olhos do Século XXI, Cinzas ao vento em tese teria status para ser considerado, se não um classicão daqueles de capa de livro sobre Cinema (seria realmente forçado), ao menos um mini-clássico que faria o cinéfilo sorrir por ter descoberto um belo filme dentre as cinzas do passado. Seguindo a analogia do filme, pode-se dizer que, dentre muitos cigarros, ele é um charuto. Porém, lidar sobre o tabaco de forma tão direta, como seu enredo faz, com alguns personagens demonstrando prazer em fumá-lo, o torna quase indefensável nos dias atuais, tão eivados de um espírito politicamente correto, que banem o tabaco de qualquer holofote (com boa dose de razão, diga-se de passagem). Cinzas ao vento deu azar. Por suas características, não encontrou público em sua época. Por seu enredo básico, é visto como indesejável no mundo atual. Suas cinzas se espalharam ao vento mesmo. Quem as recolher, entretanto, pode formar um belo cigarro, politicamente incorreto, porém muito significativo.

sábado, 17 de novembro de 2012

Fome de viver (Hunger – 1983)




Não é fácil começar sua carreira fracassando. Se hoje Fome de viver é visto como um Cult movie, na época de seu lançamento foi considerado um fracasso retumbante, desagradando crítica e público. Com uma extensa carreira na publicidade, trabalhando ao lado de seu famoso irmão, Tony Scott estreou em longas com este estranho e refinado filme, que em nada lembraria o que faria no resto da carreira. Marcado por sucessos em filmes de ação, e por ser um dos expoentes dentre os diretores de blockbusters, a começar pelo grande sucesso Top Gun – Ases indomáveis, seu filme seguinte (que tornou Tom Cruise um astro), Tony Scott parece ter dado um giro de 180° em sua carreira, após o traumatizante fracasso de sua estreia (nem quis mais ler críticas em jornais, de tanto que o avacalharam). Conforme ele mesmo brincou, a decepção da Warner Brothers com o filme tinha sido tamanha que ele até perdeu sua vaguinha no estacionamento do estúdio.

Sem ser uma obra-prima irretocável, mesmo assim fica-se com a sensação de que talvez Fome de viver fosse um filme à frente de seu tempo. Se não tem nem de perto a força da refilmagem de Nosferatu (1979) de Werner Herzog, feito poucos anos antes, mesmo assim é um filme interessante, principalmente visualmente, com um estilo e uma lentidão atmosférica que não mais seria vista no Cinema depois tão acelerado de Tony Scott. O fato de ter sido pintor no começo da carreira pode tê-lo auxiliado a dar uma distinção tão clara em Fome de viver, com vários belíssimos planos em um filme feito com muito capricho. A equipe técnica o auxilia muito neste propósito, como a fotografia de Stephen Goldblatt (de Cotton Club e O príncipe das marés), a maquiagem comandada por Anthony Clavet (fundamental para a credibilidade da trama), os figurinos de Milena Canonero (Laranja mecânica, Barry Lyndon, Carruagens de fogo) e, claro, a trilha sonora, desde o uso de Bela Lugosi’s dead, de Bauhaus na abertura (um título adequado, remetendo ao Drácula famoso de Bela Lugosi) até a música clássica no transcorrer do filme, mais notadamente Lakmé, de Léo Delibes, na famosíssima cena erótica entre Catherine Deneuve e Susan Sarandon. Cena, aliás, bem menos chocante aos olhos de hoje, mas que continua marcante, de qualquer forma, e foi das poucas coisas que escaparam da saraivada de críticas que o filme recebeu quando de seu lançamento.

A trama vampiresca evita boa parte dos exageros do gênero, sem se esquecer do providencial tom de erotismo. Falta, porém, mais substância ao enredo. Os diálogos são minimalistas, e o filme demora a embalar justamente por não dar muito chão ao espectador, que demora a entender onde está pisando, qual é o mote central do filme. Os atores, até tendo em vista o tom do filme, estão lacônicos, mantendo a atmosfera cool que embala a obra, mas criando dificuldades para o espectador se identificar com qualquer um deles. Fome de viver é um filme que parece desejar que seja visto com certa distância, sem tanto envolvimento, exatamente o oposto do que Tony Scott faria no resto de seus filmes, que tentavam a todo custo agarrar o público pela goela e botá-lo no centro da ação. Em Fome de viver os personagens de fato passam por perigos e até um certo drama existencialista, mas tudo é visto como se o público estivesse em um camarote, bebendo um drink e escutando sossegadamente a bela e climática trilha do filme. A escolha da dupla principal de atores, então, reforça ainda mais tudo isso. É de se lamentar que Alfred Hitchcock nunca tenha trabalhado com Catherine Deneuve. Em tese, ela seria mais uma das louras que ele tanto gostava, gélida de aparência, mas com uma sexualidade latente para quem conseguisse chegar perto dela. Deneuve prossegue com essa sua persona cinematográfica no filme de Tony Scott, com uma presença calma e dominante sobre os demais. David Bowie é o enigma de sempre, com aquela sua aparência quase indefinível, entre o andrógino e o alienígena, que deixa o espectador ainda mais sem ter noção do que virá pela frente. Apenas Susan Sarandon parece um pouco mais “humana” e caliente, coisa não muito difícil perto desses dois, ainda mais quando eles interpretam vampiros modernos. Mesmo assim, está longe de ser uma das atuações mais marcantes de Susan Sarandon. O filme tem também duas pontinhas mínimas e bem curiosas, de Williem Dafoe no começo da carreira, e de Bessie Love em sua última atuação, 54 anos depois de Melodia da Broadway, seu filme mais conhecido.

Susan Sarandon, muitos anos depois, comentando sobre o filme, disse que o que mais a fascinava era o questionamento de se valeria a pena viver para sempre, mas como se fosse um viciado, sem ser uma vida real e plena. A inesgotável vida alienante de um vampiro já rendeu diversos filmes e renderá muitos outros mais (como Entrevista com o vampiro e a saga Crepúsculo), mas dificilmente se encontrará um de tanto apuro visual como Fome de viver. De trama mais elaborada, não será difícil de se encontrar, e nem um com melhores atuações. Mas a atmosfera de Fome de viver, se não é para todos os públicos (até porque o ritmo é bastante lento, quase hipnótico mesmo), ao menos o torna único no gênero. É de se pensar o que teria acontecido se o filme fosse melhor aceito na época. Será que a carreira de Tony Scott teria um viés diferente, mais artístico, ou realmente os filmes de ação estavam no seu sangue? Impossível saber, claro. O que se sabe é que o irmão mais novo (e menos famoso) de Ridley Scott prosseguiu sua carreira com sucesso e deixou sua marca em diversos blockbusters, e misteriosamente cometeu suicídio em Agosto de 2012, pulando de uma ponte em Los Angeles. Nunca saberemos quem foi o vampiro de Tony Scott, se os críticos, os produtores, o Cinema ou ele mesmo. 



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Argo (2012)




“Isso só acontece no Cinema”. Esta é uma frase comum de quem se refere a algo tão fantástico, que só o Cinema poderia tornar possível. E, de certa forma, esta frase é verdadeira também para tudo o que cerca a história por trás da produção dos dois Argos, o falso, de 1980, e o verdadeiro, de 2012. Porque só mesmo uma possível equipe ultra-alienada de uma produtora de Cinema poderia pretender filmar um filme de ficção-científica no Irã durante a época explosiva da chegada de Aiatolá Khomeini ao poder e da invasão da Embaixada americana no país. Esta foi a ideia real e estapafúrdia de Tony Mendez (Ben Affleck), especialista da CIA, para tentar tirar seis integrantes da Embaixada que conseguiram fugir da ocupação dela, mas que tiveram que se exilar na Embaixada do Canadá ainda dentro do Irã, escondidos da ira do novo governo. Se Hollywood tinha a fama de projetos malucos orquestrados por lunáticos, porque não se aproveitar disso?

Para o projeto do falso Argo ter um mínimo de credibilidade, era necessário se criar um mínimo de estrutura e de propaganda do tal falso filme, e é nesse esforço que o filme tem seus momentos de comédia, capitaneados pelos coadjuvantes John Goodman (interpretando oo maquiador oscarizado de O planeta dos macacos, John Chambers) e Alan Arkin (como o produtor Lester Siegel, que tem a melhor atuação do filme). Esses momentos, concentrados na primeira metade, diluem um pouco a tensão do forte começo, que retrata com competência e veracidade a tomada da Embaixada pelo povo, e a fuga dos seis integrantes dela, que tanta dor-de-cabeça criaram para a CIA. Este começo de Argo, aliás, além de tenso é bastante didático, explicando a situação do Irã e dos EUA na época, e o que cercou a derrubada de Reza Pahlevi (apoiado pelos americanos) e a tomada do poder por Khomeini, com a consequente interrupção no processo de ocidentalização do país que Pahlevi vinha promovendo. Com isso, Ben Affleck, também diretor do filme, não aliena uma parte do público que poderia não estar tão familiarizado com toda aquela questão política dos anos 1979-1980.

Aliás, já em seu terceiro filme como diretor (após Medo da verdade e Atração perigosa), é nítido que Affleck já domina todas os instrumentos de se fazer um bom e eficiente filme popular, e Argo é a quintessência disso. Seu filme é acessível, ágil, envolvente, engraçado, e Affleck sabe trabalhar muito bem o suspense dentro dele, prendendo o público na cadeira com o uso de alguns clichês bem orquestrados, que sempre funcionam. É possível afirmar, inclusive, que Affleck até exagera um pouco neste ímpeto de popularizar o filme e a história real em que ele se baseia, pois cometeu alguns deslizes (propositais, como ele mesmo reconheceu) na tentativa de dramatizar ainda mais o que já era dramático, e com isso diminuiu um pouco a importância da ajuda canadense e britânica à tentativa de resolução do incidente. De qualquer forma, mesmo com este excesso de dramatização da história, Argo é um belo filme que tem também o mérito de evitar fazer grandes críticas ao Irã (da época e o atual), e de reconhecer a presença desestabilizadora dos EUA no país, por tanto tempo, evitando um tom por demais maniqueísta na obra.

Ben Affleck trabalhou muito bem com sua equipe toda a reconstituição de época, sempre de olho em dois filmes da época quanto a isso, no caso Todos os homens do Presidente (do qual este filme guarda algumas semelhanças quanto ao clima de tensão política) e The killing of a chinese bookie, de John Cassavetes. A fotografia granulada do mexicano Rodrigo Prieto (O segredo de Brokeback mountain, Abraços partidos), os figurinos e a direção de arte como um todo são muito bem-feitos e auxiliam na imersão temporal de Argo, e a música de Alexandre Desplat, a edição do filme, o roteiro de Chris Terrio e a própria atuação contida de Ben Affleck também sustentam muito bem o projeto. Mas o diretor não merece aplausos somente em relação a isso. Affleck mostra com Argo que está sabendo se reinventar, voltar a ser aquele jovem promissor de filmes de Kevin Smith (seu grande amigo, que o ajudou a se projetar) e de Gênio indomável (onde ganhou um Oscar de roteiro original, junto com Matt Damon, seu amigo de infância). Sua ambição de se tornar diretor está gerando dividendos financeiros e, principalmente, de status para ele, que deixa cada vez mais no passado toda aquela hiper-exposição na mídia da época em que namorava com Jennifer Lopez (e, também, claro, seu trabalho em alguns filmes deploráveis, onde ganhou duas Framboesas de ouro como o pior ator do ano). Em Argo, ele inclusive segura a mão em explosões e coisas do gênero, fazendo um filme de suspense à moda antiga, sem abusar de efeitos especiais ou de estripulias técnicas. Confia no seu taco de que pode perfeitamente atrair a atenção de seu público, e mantê-la, apenas com uma boa história e um competente desenvolvimento dela. Pode não encaçapar todas as bolas assim, já que com certeza desagradou parte do público canadense e britânico com as distorções da história (algo comum no Cinema, mas de fato desnecessárias em Argo), mas faz o suficiente para ganhar o jogo e receber os aplausos do público. E, o que é surpreendente, os aplausos da crítica também. Ou talvez não seja tão surpreendente assim. Hollywood é capaz de tudo, como todos os aspectos que cercam Argo (o que nunca existiu e este aqui) provam muito bem. Isso só acontece no Cinema.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

O sucesso a qualquer preço (Glengarry Glen Ross – 1992)




Jack Lemmon, Al Pacino, Ed Harris, Alan Arkin, Kevin Spacey, Alec Baldwin e Jonathan Pryce no elenco. Roteiro de David Mamet, adaptado de sua própria peça ganhadora do prêmio Pulitzer. O sucesso a qualquer preço apresenta um Curriculum Vitae daqueles recheados, que impressionam qualquer um. Mas o impacto não fica só na ficha técnica do filme. Este é um caso raro em que muitos concordam que o roteiro do filme ficou superior ao texto teatral, um estudo fascinante sobre a desesperança, a selvageria e a imoralidade de homens e negócios que se esfarelam em si mesmos. Talvez isto explique que o filme, mesmo sendo uma produção modesta (com esses atores famosos todos aceitando trabalhar por salários reduzidos, para os seus padrões), tenha dado prejuízo quando foi lançado, e mal conseguindo uma indicaçãozinha vagabunda no Oscar para Al Pacino como melhor ator coadjuvante (justamente no mesmo ano que ele ganhou como melhor ator por Perfume de mulher). Um pouco relegado em seu tempo, O sucesso a qualquer preço, porém, logo alcançou o status de cult movie, e já pode ser considerado um clássico dos anos 90.

O elenco e o roteiro são chaves para a empreitada. Se tem um filme que mostra o quão estreita é a teoria do cineasta-autor (presente desde os anos 60, que tentou botar ênfase demais na importância de um diretor para qualquer filme), é esse aqui. O sucesso a qualquer preço foi dirigido por James Foley (o que até confunde muita gente, que acredita que foi o próprio Mamet quem dirigiu). Diretor de filmes como Quem é essa garota? e Um dia para relembrar, James Foley consegue sucesso ao adaptar a peça cinematograficamente. Fica óbvio que é uma adaptação de uma peça de teatro, pelo uso de muitos diálogos e poucos cenários, mas ele impõe um bom ritmo ao filme, nunca o tornando chato, até por entender que faria besteira se quisesse aparecer com planos muito elaborados. Seu grande mérito foi entender que, neste caso, o papel do diretor do filme tinha que ficar em segundo plano para o enredo e o trabalho dos atores. E, em ambos os casos, o resultado em tela é fenomenal. O enredo é muito instigante, com diversos diálogos rápidos, cortantes e por vezes engraçados, bem no estilo de David Mamet (contando com inúmeros palavrões, inclusive). A história gira em torno de quatro corretores de imóveis, Ricky Roma (Al Pacino), Shelley Levene (Jack Lemmon), Dave Moss (Ed Harris) e George Aaronow (Alan Arkin), que se veem em situação difícil ao serem ameaçados de demissão se não ficarem em primeiro ou segundo lugar entre os vendedores do mês. Mas eles não são corretores de imóveis comuns. Eles trabalham para uma firma picareta, que lida com terrenos imprestáveis, e que só entrega aos vendedores fichas de clientes ultrapassadas, onde conseguir uma venda é quase um trabalho de Hércules.

O discurso inicial de Blake (Alec Baldwin) já puxa o pino da granada e mostra que, dessa vez, a guerra será ainda mais sangrenta do que já é habitualmente entre os vendedores. Uma cena lendária (que não existe na peça, inclusive o próprio Blake foi criado para o filme), onde Alec Baldwin utiliza seus únicos minutos em tela para dar uma aula de postura yuppie, capitalismo selvagem e humilhação conjunta, não deixando nem o pobre do Levene tomar o seu cafezinho, pois, para Blake, somente pode tomar café quem fecha negócios. Só quem escapa do esporro coletivo é Ricky Roma, justamente o líder dos vendedores (está em primeiro lugar no quadro de vendas, o que é sempre um lembrete visual incômodo de quem está ganhando a corrida), que naquele momento está usando toda sua lábia de vendedor para empurrar um desses bizarros terrenos na Flórida para o pobre James Lingk (Jonathan Pryce). O sucesso a qualquer preço é, entre muitas outras coisas, uma aula cinematográfica de vendas (não à toa, é mostrado em inúmeras empresas que lidam com vendas, para se mostrar aos novatos o que fazer, e também o que não fazer de jeito nenhum). Serve tanto para vendedores como também para clientes que assistem o filme, para ficarem mais espertos e ligados nas lábias de vendedores e evitarem comprar lixo por lebre. Os macetes, o raciocínio ultra-rápido, a aguda observação que os vendedores fazem de seus clientes, são impressionantes e colorem alguns dos melhores momentos do filme. O que Ricky Roma faz com o seu (quase) indefeso cliente é coisa de cinema (literalmente), e Levene também faz das suas, tentando passar a impressão, só com seu tom de voz, de que é um executivo importante e bem assessorado, e não um corretor de imóveis quebrado e desesperado, no fim de carreira, de uma firma vagabunda e fraudulenta, de fundo de quintal, e ainda ligando de um orelhão. Sim, o filme é da época em que celulares ainda não faziam parte das facilidades da profissão, deixando os corretores ainda mais dependentes da empresa e das intempéries.

O elenco todo brilha como pouco brilhou em outros filmes. Nenhum ator precisou fazer testes para o filme, mas Jack Lemmon, um vencedor de dois Oscars, respeitadíssimo no meio, disse que teria aceitado na hora fazê-los, se fosse necessário, como se fosse um principiante, tal a força do roteiro de David Mamet. Al Pacino mereceu a indicação para o Oscar, deslizando malícia como Ricky Roma, mas na verdade dava para indicar e premiar o elenco inteiro. Jack Lemmon talvez tenha tido a melhor atuação de sua vida aqui, e isto de uma carreira que começara nos anos 50, repleta de grandes filmes e interpretações (ao menos ele ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza por este filme). Seu Levene é tocante, um homem no fim de suas forças, mas que continua fazendo de tudo para tentar ajudar sua filha no hospital. Mas está longe de ser um coitadinho, pois também é inescrupuloso e sabe atacar e ridicularizar muito bem Williamson, interpretado por um então novato Kevin Spacey (foi um de seus primeiros papéis de destaque no Cinema), que tenta controlar aqueles quatro egos gigantescos e feridos, sendo agredido o tempo todo com palavrões e ataques de baixo nível. O Moss de Ed Harris é o mais rancoroso de um ambiente já repleto de rancor, pois não aceita de jeito nenhum que Ricky Roma tenha mais sucesso que ele, e pensa mais em sair da firma (e inclusive em lesá-la) do que em tentar fechar aquelas quase impossíveis vendas. E o George de Alan Arkin é o loser completo da turma, alguém que já não passa mais a menor confiança e que só reclama, quase como se fosse um porco berrando ao saber que será degolado. Papéis ricos e complexos, interpretados por grandes atores, no auge de suas carreiras. Um luxo. A ponto de os atores comparecerem no estúdio mesmo em dias que não teriam que interpretar, só para ver os colegas atuando. Não dava para perder aquilo ao vivo, de jeito nenhum. 

O filme só tem uma figurante feminina, o que realça ainda mais a descarga de testosterona que o enredo apresenta. James Foley reconheceu que tratou o filme, desde o início, como se fosse um documentário sobre a vida animal. E isso é chave para se entender O sucesso a qualquer preço, um filme sem qualquer traço de amizade ou real companheirismo, e onde qualquer noção de moralismo é logo vista como coisa de fracos e derrotados. Assistimos ali à Lei da selva urbana, onde os corretores predadores só pensam em dilacerar suas presas, os pobres clientes. A forma como se referem a eles, inclusive, mostra que não são corretores comuns. Eles não querem ver o cliente bem, feliz, satisfeito. Querem vender para eles terrenos imprestáveis e sumir do mapa o mais rápido possível, antes que eles inevitavelmente percebam que caíram no conto do corretor-vigário. O texto de David Mamet tem algumas semelhanças com A morte do caixeiro-viajante, de Arthur Miller (outra peça lendária no teatro americano). Mas enquanto Willy Loman era apenas um loser na peça de Miller, alguém que viu o sonho americano desabar, assim como qualquer esperança, se ele visitasse a firma de O sucesso a qualquer preço seria defenestrado do começo ao fim, e choraria de amargura sentado ao meio-fio, pensando em como era feliz antes, e não sabia (se bobear, ele até cairia na lábia dos vendedores e compraria um terreno vagabundo). A realidade é brutal no filme, mas é quase impossível tirar os olhos dela. Porque os predadores são ágeis e esguios, e quase não sobrou mais nenhuma presa para eles abaterem. A fome começa a bater, assim como a necessidade de se afirmar como o macho alfa da espécie. Ai dos vencidos. E, de certa forma, ai dos vencedores também. Porque sabem que, se não forem devorados agora, logo o serão, por alguém igualmente implacável. 

domingo, 11 de novembro de 2012

Polissia (Polisse - 2011)




A diretora Maïwenn acompanhou por um tempo as atividades de uma unidade da Polícia francesa de proteção ao menor, em Paris, de forma semelhante ao que sua própria personagem, Melissa, faz na trama (inclusive recebendo alguns maus-tratos pela intromissão, como ocorre no decorrer do filme). Escreveu consequentemente o roteiro de Polissia (o título é escrito errado de propósito, como se fosse uma criança escrevendo “Polícia”), juntamente com Emmanuelle Bercot (que também atua no filme), incluindo várias histórias de bastidores do estressante trabalho de pessoas que precisam lidar cotidianamente com pedofilia, estupros, assédios, e explorações ao menor. O resultado disto é um filme forte, impactante, que lida com diversos temas delicados de perto, e que ainda por cima vira as lentes também para a própria vida destes especializados policiais.

O filme tem um nascimento documental, por assim dizer, mas seu desenvolvimento é todo de um filme ficcional. Através da diretora acompanhamos, de forma quase equânime, cada um dos membros daquela unidade de Polícia, sem muita profundidade, deve-se ressaltar, mas o tempo suficiente para ver que os problemas não estão apenas no lado dos suspeitos e vítimas. Claro, alguns suspeitos são muito escabrosos, com uma linha de pensamento por demais bizarra para se acreditar, e que podem revirar o estômago de muitos espectadores com suas afirmações e credo de vida. Porém o julgamento não se detém apenas nestes possíveis criminosos, na medida em que os próprios policiais às vezes se excedem, agridem, mentem, ridicularizam suspeitos (e, numa cena bizarra, até uma das vítimas) e se aproveitam do fato de serem policiais, por vezes abusando da autoridade. E, se não são pedófilos nem nada tão grave assim, também demonstram problemas sérios de relacionamento familiar e afetivo. É como se a diretora Maïwenn quisesse deixar claro que, debaixo de holofotes, sob forte escrutínio, ninguém é normal ou totalmente sadio. Estes policiais podem, eventualmente, só ter a sorte de estarem do lado “certo” da investigação, seja ela qual for. Apesar de que, como é claro no filme, usar a palavra “sorte” para quem trabalha com crimes ao menor é de fato um abuso, pois o preço do estresse de ver crimes tão hediondos contra pessoas indefesas costuma cobrar um preço alto em quem presencia aquilo tudo tão de perto. Uma coisa é ler uma notícia de pé de página de uma menina de sete anos estuprada por seu pai. Outra bem diferente é atender diretamente esta menina, e se segurar em seu profissionalismo para não esganar o pai que provocou aquele absurdo.

Polissia tem um ritmo ágil e envolvente, que prende o espectador do começo ao fim. Seu pecado maior talvez fosse quase impossível de não cometer, já que ele precisaria de mais tempo para desenvolver melhor todos aqueles personagens (policiais, vítimas e suspeitos), e um longa-metragem a ser exibido nos Cinemas não pode ter muitas horas de duração. Talvez o tamanho mais adequado para ele fosse o de um seriado de TV, onde os casos e personagens poderiam ser ilustrados com mais detalhes. Outros pecados, porém, eram mesmo evitáveis, como a inclusão de um romance desnecessário no meio da trama, o pulo por vezes muito drástico de um caso para outro, o final um pouco forçado, e o abandono quase instantâneo de algumas sub-tramas que estão prestes a pegar fogo, mas que somem do mapa rapidamente, de forma muito abrupta. Quanto aos atores, estes estão críveis como policiais e acrescentam ênfase à trama, e deve ter ajudado que quase todos os atores principais da trama tinham trabalhado com a diretora em seu último filme, Le bal des actrices (2009), dando uma maior intimidade e entrosamento ao trabalho. Outro fato que contribui é que são pouco conhecidos do público em geral, com a exceção de Karin Viard, o que traz ainda mais credibilidade à Polissia.

Analisando Polissia, é difícil não pensar em alguns detalhes da biografia da própria diretora. Maïwenn ingressou na carreira de atriz desde muito criança, forçada por sua mãe, o que a traumatizou por não permiti-la ter uma infância “normal”. Na adolescência brigou com os pais, abandonou o sobrenome deles e adotou apenas seu nome principal como o artístico. E, poucos anos depois, ela se casou com Luc Besson com apenas 16 anos de idade, tendo uma filha com ele em seguida. Evidentemente que este histórico inusitado nem se compara em dramaticidade ao de algumas vítimas de crimes barra-pesada de Polissia, mas fica nítida a compaixão da diretora pelas crianças, que por vezes são reféns e vítimas indefesas de alguns adultos (muitas vezes parentes, o que é ainda pior) que podem mudar suas vidas para sempre. Polissia mostra como é difícil e frustrante lutar contra isso, fazer menores falarem de sexo, de abusos que sofreram, com policiais que nunca viram antes, e muitas vezes sabendo que com isso podem estar sentenciando um parente ou professor seu para a cadeia. Não é um trabalho para qualquer um, definitivamente. Pode não ser o suficiente para justificar os deslizes de alguns policiais no filme, mas ao menos explica um pouco estarem sempre com os nervos à flor da pele.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O senhor das moscas (Lord of the flies – 1963)




O senhor das moscas, livro clássico da literatura inglesa, trata de algo em tese idílico: Crianças soltas em um ambiente, sem um adulto sequer para mandar nelas, sem escolas nem deveres-de-casa, com elas podendo, em tese, fazer o que quiser, desde que, claro, sobrevivam à ilha em que estão localizados, após um desastre de avião onde não sobraram adultos. William Golding, porém, em sua hiper-respeitada obra, mostra que tal situação não teria nada de paradisíaca. Pobres inocentes crianças, ordeiras e obedientes como o eram crianças britânicas dos anos 50, poderiam se transformar em selvagens em muito pouco tempo, sem a sombra de uma autoridade por perto. Nesta primeira adaptação para o Cinema, Peter Brook, em apenas seu segundo longa, teve a árdua tarefa de adaptar esta rica história, repleta de personagens fascinantes. Escolheu um caminho curiosamente análogo ao do enredo: Entrevistou mais de 3000 crianças, escolheu dentre elas as que considerou adequadas, e as levou para uma ilha em Porto Rico, durante as férias delas de verão, sem a presença de seus pais, e ainda fazendo uso de muito improviso nas filmagens, mesmo que respeitando a estrutura do livro (é uma adaptação bastante fiel, no fim das contas). Filmou mais de 60 horas de celuloide, e editou o material em mais de dois anos, um absurdo em termos logísticos. Uma certa anarquia, dentro de uma trama que trata justamente da tensão entre anarquia e uma tentativa de criação de leis e hierarquia.

Ralph, interpretado por James Aubrey (o único dos atores principais a seguir carreira no Cinema, o resto fez aqui seu único filme), é o que mais tenta respeitar um mínimo de organização. Tenta liderar o bando de garotos, e no começo até consegue, auxiliado pelo intelectual Piggy (Hugh Edwards), um menino gordinho que usa óculos. Cria noções básicas de democracia e tenta organizar tarefas. Mas falta a Ralph mais ênfase e carisma, e Piggy representa o intelectual que é logo menosprezado em momentos de grande crise. Como conseguirão controlar os garotos mais rebeldes, liderados por Jack (Tom Chapin), mais interessado em caçar e seguir seus instintos? Logo complicações surgem, assim como as inevitáveis paranoias de viverem em local tão inóspito e terem que cuidar de si próprios, sem nenhum adulto para ajudar. Haverá mesmo uma fera na ilha, como logo pensam existir? A quem serviria este clima de medo e insegurança? Quanto durariam regras criadas e aprovadas por todos, em tempos de grande insegurança? O que é um líder, alguém resoluto e focado em objetivos, ou o que brada mais alto e clama pelos instintos mais imediatos? William Golding logo confronta estas questões, e cada personagem parece representar setores das sociedades reais, de adultos. Os intelectuais, os religiosos, os políticos, os medrosos, os valentões, até os pacíficos que viram monstros quando lhes é dado o poder para tal, o cenário é rico e diversificado e encontra paralelos em cada personagem, ilustrando um pouco a tendência à selvageria tantas vezes observada em épocas de guerra ou fome. Poderia a Lei dos homens (ou das crianças, que seja) resistir ao ímpeto da Lei da selva?

Peter Brook erra e acerta ao adaptar este grande clássico. De fato, o afastamento das crianças de seus pais, sendo eles todos atores-mirins iniciantes, aliado ao improviso com eles em cena, ao abuso de filme (mais de 60 horas filmadas causam calafrios em qualquer produtor) e ao uso de um diretor de fotografia também iniciante (Tom Hollyman, que nunca mais voltou a filmar!), trazem um frescor ao filme, que por vezes parece um documentário. Alguns enquadramentos são muito belos, e a fotografia em preto e branco realça a crueza da situação daqueles meninos. As crianças comportam-se como crianças, e como nenhuma delas é conhecida, isso ajuda a dar veracidade à história (apenas Nicholas Hammond, que tem um pequeno papel, teve algum destaque futuro ao ser uma das crianças de A noviça rebelde, e por interpretar o Homem-Aranha da série de TV dos anos 70). Porém, tanto amadorismo cobra o seu preço também, pois algumas atuações dos garotos são fracas, sem a ênfase necessária para fazer a trama pegar fogo, como deveria. O ritmo também demora a embalar, e o próprio Peter Brook não ajuda em alguns momentos, como em um longo plano em que os garotos dizem seus nomes, parecendo esperar sua vez (como se alguém da produção chamasse a atenção deles), e no próprio final do filme, ao tirar emoção de um momento revelador. Já um diretor respeitadíssimo no teatro, talvez ainda lhe faltasse mais timing com a câmera, tendo feito apenas anteriormente Ao pé do cadafalso, de 1953, com Laurence Olivier. Mas o que mais atrapalha é o som. Com o som ambiente todo gravado depois, em estúdio (era meio inevitável isso, pela captação de som ainda um pouco rudimentar na época, ainda mais numa produção de recursos limitados), e os diálogos todos consequentemente dublados, perde-se muito da emoção e realismo das cenas, o que afasta o espectador do calor do momento.

A sensação final é de que este filme dirigido por Peter Brook é bastante digno e fiel à obra de William Golding, mas que se ressente de uma mão mais segura da equipe técnica e dos atores (com a exceção do diretor de fotografia, de trabalho irretocável). Compará-lo com o livro é um pouco cruel, pois é inevitável que ficasse devendo um pouco, tendo em conta a importância de uma obra que, pode-se dizer, praticamente sozinha fez William Golding ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. O esforço é louvável e ninguém pode dizer que Peter Brook não se esforçou ao máximo, inclusive para recriar com os garotos um ambiente semelhante ao do livro, retirando-os do conforto de seus lares por um bom tempo. Talvez até, ironicamente, tenha faltado um pouco mais de ordem naquele caos, é possível que até atrás das câmeras um espírito anárquico tenha dado suas cartas, e trazido uma selvageria técnico-estilística que tornou mais verídico e irregular o filme final. O eterno embate entre Ralphs e Jacks, assistido pelos Piggys, Simons e Rogers da vida, define o caminhar de cada sociedade, e pelo visto o próprio filme O senhor das moscas sofreu a influência de suas personalidades e ideologias. Todos sofremos, no fim das contas, e cada um deve saber onde se posicionar e a quem seguir ou liderar, porque é bem provável que colha os benefícios (e também pague o preço) dessa escolha.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Tiranossauro (Tyrannosaur – 2011)




Tiranossauro é o primeiro longa dirigido e escrito por Paddy Considine, um ator já de certa estatura (apesar de ser mais conhecido de rosto do que por seu nome), tendo trabalhado em Terra de sonhos, de Jim Sheridan (no papel principal), e em A luta pela esperança e O ultimato Bourne, entre outros filmes, quase sempre em papéis coadjuvantes. O filme se trata inclusive de uma extensão de um curta seu, Dog altogether, de 2007, contando com a mesma dupla de atores principais, no caso Peter Mullan e Olivia Calmon. Em Tiranossauro, o Joseph de Peter Mullan não é o dinossauro do título, mas é como se fosse. Sua vida é de constante agressão, verbal ou física, contra tudo e todos, a começar por si mesmo. Vive bebendo e arrastando sua carcaça pelos bares, e afastando quem se atreve a chegar perto dele. Inclusive o faz com quem tem a coragem de tentar ajudá-lo, como é o caso de Hannah (Olivia Calmon), uma lojista cristã que escuta poucas e boas quando Joseph descobre que ela vive numa parte mais abastada da cidade. Mas Hannah também tem seus mistérios e seu sofrimento, como ele logo descobre.

Este filme de Paddy Considine não é, definitivamente, um filme de alto astral. Se Hannah tenta incorporar a bondade em pessoa, e perdoar a todos, sua jornada não é nada fácil, não só por conta de Joseph, como também por causa de seu marido, James, interpretado por Eddie Marsan. Este a atormenta o tempo todo por ciúmes, chegando às vias de fato, por vezes. O tom é mesmo depressivo e cru, e Paddy Considine não tenta aliviar muito o ambiente. Ele já afirmou que se irrita por ver noticiários na TV cheios de desastres e assassinatos, fechados depois com uma materia bobinha e inocente envolvendo animais, só para deixar o espectador com um espírito mais sorridente. Consequentemente, Tiranossauro não tem nada disso. Há, sim, uma certa esperança perambulando nas redondezas, mas é uma esperança que tomou suas porradas e que enche a cara no bar, como todo mundo no filme. A redenção, se vier, não virá fácil para ninguém, assim como qualquer sombra de um sorriso. Hannah bem que tenta ser a cristã perfeita, salvar a si mesma, Joseph e o marido, mas o mundo bate firme nela. Tiranossauro é um filme de agressões constantes e muita solidão. E não tem nenhum cachorrinho sorridente no fim para nos deixar ir para casa com um sorriso nos lábios, longe disso, aqui até os cachorros têm a proverbial vida de cão...

Para os de estômago forte, porém, Tiranossauro é recompensador. O trio de atores principais atua muitíssimo bem. Eddie Marsan apresenta forte atuação, e o faz com inteligência, evitando que o marido de Hannah seja visto como apenas um monstro que surra a esposa. É nítido o quanto o personagem é doente e não consegue escapar de sua loucura. Peter Mullan teve o duvidoso benefício de interpretar um personagem que conhece muito bem, já que ele mesmo foi um delinquente quando criança, participando de gangues de rua. De vida dura ele entende, e este tipo de personagem ele faz com os olhos fechados, como fez em Meu nome é Joe, de Ken Loach, onde ganhou a Palma de melhor ator em Cannes. Com certo sucesso como diretor também (dirigiu e escreveu Em nome de Deus, um belo filme que ganhou o Leão de Ouro em Veneza), nota-se que foi importante a parceria entre ele e Paddy Considine, até por ter sido criado numa família cristã. Ele disse certa vez que um há muitas semelhanças entre bandidos e atores, pois bandidos tem que saber interpretar bem para manter vítimas e outros bandidos distantes e com medo. Se for assim, então Olivia Calmon rouba o filme duplamente, mas o faz com sua resoluta bondade e com seu quieto desespero. Num raro papel cristão no Cinema atual, ela faz o possível naquela árida realidade britânica, para salvar tanto os personagens quanto ao próprio filme de sua extrema aridez. Ela tenta ser o oásis no meio do deserto, mas o problema é saber se esse oásis será suficiente para salvar a todos. Ou se será engolido pelo deserto, em mais uma tempestade de areia.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Verão de 42 (Summer of ‘42 - 1971)




Robert Mulligan tinha um talento inegável com crianças e adolescentes. Seus dois maiores filmes tratam exatamente da realidade sendo vista através delas, tanto em O sol é para todos como em Verão de 42 (por muito tempo conhecido como Houve uma vez um verão, no Brasil). Enquanto no filme com Gregory Peck (no papel que o imortalizou) acompanhávamos a realidade racial sulista pela ótica de duas crianças brancas, em Verão de 42 vemos a lembrança emotiva de um garoto na adolescência, e do efeito que uma mulher em especial teve sobre ele, neste ano em que os EUA já estavam em guerra e o marido dela estava distante. Em O sol é para todos, Mulligan pôde trabalhar em cima de um material de primeira categoria, no caso o livro de Harper Lee. Neste filme aqui a base não era literária, o que ele contava inicialmente era com as memórias do roteirista Herman Raucher, tanto que o livro foi inclusive escrito após as filmagens, de tanta confiança que se tinha que o filme daria certo, e consequentemente um livro sobre a história dele também daria (crença justificada, nos dois casos). Este é um caso clássico em que o roteirista é, no mínimo, tão co-autor como o diretor.

O filme é muito autobiográfico, a ponto de sequer mudar o nome das pessoas reais. Hermie (Gary Grimes) é o escritor em 1942, um adolescente normal, de seus 15 anos, que passa este verão numa ilha junto com dois amigos, Oscy (Jerry Houser) e Benjie (Oliver Connant). Verão de 42 é especial, dentre muitas coisas, por mostrar o que era ser adolescente nesta época, ilustrando alguns pequenos detalhes daquele cotidiano que um adolescente de hoje em dia teria dificuldades de imaginar. Os três ficam soltos na ilha (sequer vemos os seus pais, quando muito apenas ouvimos suas vozes), sem grandes entretenimentos, passando um bom tempo na horrenda praia inventando o que fazer para se distrair. Inevitavelmente, já estavam na fase de pensar em mulheres, e o desconhecimento de praticamente qualquer coisa sobre sexo os atormenta. Devoram o único livro que encontram sobre o assunto, e tentam ao máximo se chegar em meninas da sua idade, com a exceção de Benjie, um pouco mais novo e que sente mais medo que desejo das meninas (o que rende uma hilariante cena numa fila de cinema, onde inclusive eles “assistem” A estranha passageira, com Bette Davis e Paul Henreid). Tudo muito normal e fascinante de se ver, como uma volta ao tempo mesmo. De fato, Verão de 42 é um filme nostálgico como poucos, ainda mais capturado pela fotografia onírica e enevoada de Robert Surtees, que evoca ainda mais as lembranças emotivas de Herman Raucher. Mas há algo que apimenta tudo, que sai da normalidade e causa um fascínio inesquecível em Hermie, a ponto de fazê-lo escrever um roteiro 29 anos depois sobre aquele decisivo verão. Havia ela, naquela afastada casa.

Jennifer O’Neill. Ou Dorothy, se preferir. No papel em que é disparado mais lembrada, Jennifer O’Neill incorpora  a mulher mais velha, de seus vinte e poucos anos, casada, mas cujo marido estava servindo ao país na Guerra. Ela, com sua simples presença distante, praticamente enlouquece o pobre Herman em sua beleza, charme e simplicidade (e o espectador também não sai ileso dessa). Não que ela o seduza. Ela apenas o trata bem, com um certo afeto, mas não com o intuito de mexer com ele. Mas mexe. Confunde ele todo porque qualquer coisa que faça encanta o rapaz. Para Hermie, carregar suas compras é o paraíso, tomar seu café pelando supera qualquer noite de alta classe em Montecarlo. Ele faz de tudo para parecer adulto perto dela, treinando frases prontas e até mesmo fingindo que não conhece seus amigos quando ambos passam ao lado deles na rua, para não parecer imaturo. Algo inútil, claro, pois a distância de idade entre eles, se não é tão grande assim (menos de dez anos de diferença, talvez menos), nesta fase da vida costuma ser definitiva, quase intransponível. Mas sonhar não custa nada, e Hermie é claramente um sonhador, um especialista no assunto. Ele tudo repara nela, menos que é humana, que também tem seus medos, anseios e carências, e que sente a solidão e o tédio daquela ilha assim como ele. Poderia o jovem Hermie ver isso?

Herman Raucher, ao começar a escrever suas memórias no roteiro, inicialmente pensava mais em seu amigo Oscy, queria contar como fora a amizade deles (até como um tributo ao amigo que morrera no exato dia de aniversário de 24 anos do escritor, o que o fizera nunca mais comemorar um aniversário na vida). O filme tem essa estranha particularidade de realçar, ao menos quanto ao tempo em cena, muito mais a amizade deles do que toda a questão do fascínio de Herman por Dorothy. Mas não teve jeito, Dorothy cobrou sua força no inconsciente do roteirista, e consequentemente no roteiro e no filme. Jennifer O’Neill, objetivamente, atua apenas por doze minutos em Verão de 42. Mas são doze minutos de ouro, que envolvem todo o filme e, claramente, o próprio autor. Besteira tentar relegar Dorothy a um segundo plano. Ninguém fica imune a uma mulher como Dorothy/Jennifer, nem um garoto impressionável, com os hormônios em ebulição, nem um espectador dos anos setenta ou do Século XXI. Quando o filme termina, é dela que nos lembramos. Dela e da belíssima trilha do filme, vencedora do único Oscar que o filme levou, daqueles incontestáveis. Michel Legrand é, se não um co-autor, então uma espécie de Dorothy musical do filme. Impossível pensar em Verão de 42 sem lembrar dos simples e tocantes acordes de sua música. No tom perfeito, ela traz um sentido de saudade e nostalgia que poucas trilhas conseguem atingir.

Os atores infantis atuam razoavelmente bem, e seguram o filme quando Jennifer O’Neill não está presente. Os três estralariam uma esquecidíssima sequência, chamada O verão que passou (Class of ’44), que acompanha os três personagens já no colégio e às voltas com a guerra (numa versão mais fantasiosa da vida real). Mas era um filme fadado ao fracasso, sem as presenças de Robert Mulligan, Michel Legrand e, principalmente, Jennifer O’Neill. Pode-se dizer que os três atores-mirins seguiram para o anonimato após Verão de 42. Aliás, o filme marcou um certo ápice na carreira de todos os envolvidos, na verdade, inclusive Jennifer O’Neill, que nunca mais repetiu este verão em outras temporadas. E quanto a Herman Raucher, este até recebeu uma carta da verdadeira Dorothy, logo após o filme ser exibido nos cinemas, com grande sucesso. Mas foi um contato efêmero (nunca mais escreveu para ele), de uma mulher que já era avó, e que só queria saber se ele estava bem. Ele estava bem sim, Dorothy. Só nunca conseguiu esquecer de você, assim como ninguém se esquece de Jennifer O’Neill após assistir ao belíssimo Verão de 42. É um fascínio eterno. 


sábado, 3 de novembro de 2012

Banquete de casamento (Xi yan – 1993)




Doze anos antes de O segredo de Brokeback Mountain, Ang Lee já tinha feito um filme sobre um casal gay nos papéis principais. Se O banquete de casamento não conseguiu o mesmo sucesso popular que o filme de 2005 (que lhe deu o Oscar de melhor diretor, o único de um asiático), mesmo assim fez barulho suficiente para ganhar o Urso de ouro em Berlim e ser indicado ao Oscar de filme estrangeiro (perdeu para o espanhol Sedução, bem inferior a ele), além de projetar de vez a carreira de Ang Lee. A trama gira em torno de Wai-Tung (Winston Chao), que vive nos EUA e tem um longo caso com Simon (Mitchell Lichtenstein), e que fica o tempo todo sendo pressionado por sua família para arrumar uma esposa. Desnecessário dizer que, claro, seus pais nem desconfiam de que ele seja homossexual. Wai-Tung faz de tudo para se livrar do assédio deles, que é maximizado pelo fato de ser filho único. Mas um leve derrame de seu pai (Sihung Lung, que trabalhou nos três primeiros filmes de Ang Lee, e em mais O tigre e o dragão) o coloca contra a parede, ainda mais depois dele dizer que seu único desejo era ver o filho se casar antes de morrer. Logo Simon inventa o que poderia ser a solução ideal: Seu companheiro Wai-Tung se casar com Wei-Wei (May Chin), uma chinesa que alugava um imóvel dele, para agradar os pais de Wai-Tung e para ajudar Wei-Wei a conseguir seu Green Card. Em tese um plano perfeito, mas que se complica com a visita dos pais de Wai-Tung aos EUA. A estadia deles vai se esticando... e eles não aceitam de jeito nenhum um reles casamento de cartório para o querido filho. Querem o banquete de casamento do título para ele e a futura nora, com tudo o que tem direito.

O filme é uma ótima comédia de costumes, que funciona à perfeição juntamente com um certo drama dos personagens, sem Ang Lee em momento algum buscar uma risada fácil ou o melodrama. O filme fica no meio do caminho entre um A gaiola das loucas, de Edouard Molinaro, e o próprio O segredo de Brokeback Mountain, um filme muito mais dramático e trágico. O banquete de casamento mistura drama e comédia com muita competência, e consegue sucesso nos dois intentos, algo raro de se ver. Aqui Ang Lee volta a trabalhar com o choque entre a cultura americana e a chinesa, uma eminentemente individualista e a outra de muita subserviência, como já tinha feito em A arte de viver, seu primeiro filme. E, claro, a alienação e a repressão da sociedade voltam a impor suas marcas, algo tão latente em sua obra e observável em vários de seus filmes, inclusive os americanos e ingleses, como Razão e sensibilidade e Tempestade de gelo. Talvez fosse inevitável, sendo ele filho de chineses (perseguidos pela Revolução Cultural, por serem donos de terras), nascido em Taiwan, e que depois estudou nos EUA (se formando na Universidade de Nova York, e inclusive sendo Assistente de direção de Spike Lee em seu filme de formatura). Ang Lee sempre afirmou se sentir um andarilho, e que este sentimento de alienação e certa insegurança lhe é inescapável. E talvez isto o ajude a se adaptar a tudo, sem realmente pertencer a nada, e esta curiosa situação o auxiliasse a ter uma visão mais clara das situações apresentadas.

Em O banquete de casamento, o diretor teve bastante peito ao fazer um filme com um casal gay (e ainda por cima feliz), entre um chinês e um americano, e mesmo assim conseguiu sucesso de público até em Taiwan, algo que ninguém poderia prever (o filme foi o mais lucrativo do ano de 1993, custando um milhão de dólares e rendendo mais de 23 milhões mundo afora). Difícil, claro, foi conseguir um ator chinês, que falasse bem inglês e mandarim (o filme usa as duas línguas), e que topasse atuar como gay. Acabou usando Winston Chao, que era assistente de bordo no setor de aviação, além de modelo, mas que não tinha experiência no Cinema. Ang Lee teve que treiná-lo por dias a fio, para interpretar o papel. Sem brilhar nem nada, ele ao menos consegue conduzir bem o filme, já que seu papel é tão central. O mesmo ocorre com Mitchell Lichtenstein, que tem a dificuldade de se sentir deslocado por ser o único americano no meio dos chineses, e que tem uma atuação sem brilhos ou deslizes (filho de Roy Lichtenstein, famoso pintor pop, sempre foi homossexual assumido e ao menos facilitou a vida de Ang Lee neste sentido). As grandes atuações ficam por conta de May Chin, como a pobre Wei-Wei que, ao mesmo tempo que se beneficia pelo casamento de conveniência, sofre um pouco por gostar realmente de Wai-Tung, além dos atores que interpretam os pais de Wai-Tung. Ya-Lei Kuei, como a mãe dele, e Sihung Lung apresentam belas atuações, intercalando intromissão por uma visita quase infindável, vergonha por ver o filme pretendendo fazer um casamento tão simples, e uma estoica determinação chinesa, de quem quer devagarzinho ir impondo suas vontades. São o ponto emocional do filme, e é difícil não se identificar com eles, apesar de o filme todo não ter heróis e nem vilões, só vítimas de costumes, temores e circunstâncias.

O filme ainda tem o mérito de mostrar, na cerimônia do título, o quanto aquilo é um tormento para o casal em si. Todos parecem se divertir, menos o noivo e a noiva, que passam por provas e mais provas por parte dos convidados, inclusive no quarto de núpcias. O clima do casamento, bem mais brincalhão do que muitos poderiam prever, segundo o comentário de uma das convidadas é o resultado de milhares de anos de repressão sexual chinesa. Ang Lee era, de fato, o diretor ideal para mostrar tudo isso em 1993, por tudo o que passara em sua atribulada vida de andarilho, e o sucesso mundial do filme turbinou sua carreira, onde com o tempo ganhou não só o Oscar de diretor, como o Bafta (diretor e filme), além do Urso de Ouro em Berlim, Globo de Ouro de melhor diretor e Leão de ouro em Veneza (fora o Oscar, em todos os casos citados ganhou duas vezes cada um!). E isso tendo dirigido só doze longas até 2012. Só não ganhou a Palma de Ouro em Cannes (ainda), dentre os prêmios de maior expressão do Cinema. Não é mole, não. Uma carreira sólida como poucas, de um chinês obstinado, muito corajoso e versátil, que apresentou casais gays em dois filmes muito populares, filmou como estrangeiro uma adaptação de Jane Austen na Inglaterra em Razão e sensibilidade (talvez seja necessário mais coragem para isso do que para fazer filmes de temática gay, convenhamos), sintetizou como poucos os EUA dos anos 70 (Tempestade de gelo), além de ilustrar fenômenos díspares como os do Festival de Woodstock (Aconteceu em Woodstock) e o da Guerra Civil americana (Cavalgada com o diabo), inovou nas filmagens de artes marciais (O tigre e o dragão), e ainda assumiu o leme de uma adaptação de um herói de quadrinhos (Hulk), entre outras obras também expressivas. Talvez Ang Lee tenha sido o primeiro sinal, no Cinema, de que a China, passado o desastre da Revolução Cultural, viria para ficar, por ter capacidade de se adaptar ao novo mundo sem desprezar de todo as suas tradições. Ou, mais ainda, é possível que ele possa simbolizar o futuro, como um diretor que não se enxerga como pertencente a um país unicamente. Um diretor multinacional, que por isso mesmo entende os choques culturais (dessa época e do passado) como poucos, e sabe ilustrar os danos individuais disso no seu Cinema como ninguém.