Robert Bresson conseguiu unir a
crítica francesa e mundial em elogios ao seu Cinema, e isso numa época
explosiva, em que a geração da Cahiers Du Cinéma destroçava a reputação de
quase todos os cineastas anteriores à dela. Bresson, porém, não só passou
incólume por este massacre de reputações, como também era muito admirado pelos
integrantes da Nouvelle Vague, a ponto de Jean-Luc Godard dizer que seu status
em relação ao Cinema francês era o mesmo que desfrutava Fiodor Dostoievski em
relação à Literatura russa. Se assim o era, então em Uma mulher delicada houve
a lustrosa “parceria” destes dois artistas, com Bresson adaptando um conto de
Dostoievski (Uma criatura gentil), em seu primeiro filme colorido (o que foi
acontecer apenas em 1969).
Se o Cinema de Bresson sempre
recebeu aplausos da crítica em geral, em compensação ele nunca foi muito
popular, devido ao fato de Bresson apostar em filmes calcados em interpretações
minimalistas, reduzindo em muito a carga dramática delas que o público estava
acostumado a ver, e usando atores amadores, que ele chamava de “modelos”. E foi
justamente uma modelo (no caso, daquelas de passarelas mesmo) que ele colocou
no papel principal do título, talvez a única atriz a ter conseguido destaque posteriormente
na carreira após participar de um filme dele (como quase todos os atores eram
amadores, abandonavam a carreira em seguida, como o fez o ator principal deste
filme, Guy Frangin). E a escolha não poderia ter sido mais precisa. Dominique
Sanda, em sua estreia no Cinema, é perfeita para o filme, por características
que possivelmente apenas Vittorio de Sica, em seu clássico O jardim dos
Fizzi-Contini, soube aproveitar tão bem como Bresson. Ela plaina, flutua sobre
o filme, interpretando uma suicida que tem sua história lembrada pelo confuso e
arrasado marido, que, defronte a seu caixão, tenta entender o que a levou a tão
trágica atitude. O filme, consequentemente, tem este caráter de uma lembrança
emotiva, e é claro que a parcialidade do narrador tem que ser levada em conta. Mas
até que ponto, se é que seria o caso, a “culpa” de tal evento poderia ser
creditada ao marido? O enredo não oferece uma solução prontinha, fácil, de se
mostrar um marido abusivo, grosseiro, que agredisse a esposa e a forçasse a
escolher uma solução drástica, ou algo assim. Bresson nunca é maniqueísta a
este ponto. Cabe ao espectador formular a sua tese do porquê aquilo ter
acontecido.
Dominique Sanda apresenta aqui
algo que ela sabia fazer como ninguém, que é incorporar uma mulher doce,
gentil, delicada de fato, mas que sabe ser agressiva em sua passividade. As
coisas sempre parecem acontecer com ela, como se fosse sempre uma eterna
vítima, mas até que ponto ela mesma não estaria no comando dos acontecimentos? A
atriz consegue impor à sua personagem (tão etérea que nem é nomeada), a
singularidade de ser ausente em sua presença. Ela está sempre lá, mas é como se
não estivesse. É doce, mas não retribui muito o amor do marido. Delicada, mas
sabe agredir com seus doces olhares e gestos. Fala macio, mas nunca é submissa
ou obediente. E com isso, claro, quase enlouquece o certinho Luc de Guy
Frangin, assim como fez com Lino Capolicchio em O jardim dos Fizzi-Contini. Talvez
Luc não fosse mesmo o homem certo para ela. Assim como é possível que ninguém
fosse, que ela fosse uma pessoa tão delicada, que não conseguiria sobreviver às
inevitáveis agruras do cotidiano de um casal. O filme gira em torno desta
personagem quase indecifrável, e o tom quieto e sossegado de Bresson, seu
estilo minimalista, se encaixa com perfeição com o tom da história. É seu filme
mais facilmente assimilável pelo público comum, apesar de hoje Uma mulher
delicada ser um filme tão esquecido.
A atriz entrou pela porta
da frente no Cinema, e ainda pisando em tapete vermelho. Depois dessa estreia com
ninguém menos que Robert Bresson, seu segundo filme foi com Bernardo Bertolucci
(O conformista), o terceiro foi dirigido por Maximilian Schell (Erste liebe), e
no quarto atuou no clássico de Vittorio de Sica (O jardim dos Fizzi-Contini). E
sempre em papéis de destaque. E, poucos anos depois, ganhou o prêmio de atriz
em Cannes por A herdeira, de Mauro Bolognini, em 1976. Ainda trabalhou em O emissário
de Mackintosh (de John Huston) e 1900 (Bertolucci de novo). Atua até hoje, mas
claramente numa carreira mais discreta. Quem viu seu rosto, e escutou sua doce voz,
porém, nunca esquece Dominique Sanda. Não são só os personagens de seus filmes que ficam
hipnotizados por sua beleza e suavidade. Os espectadores caem no seu feitiço também,
apesar dela parecer alheia e até contrafeita a causar semelhante efeito. Mas
Bresson sabe controlá-la, e explorar o que ela tinha de melhor. Sua carreira
foi o contrário da dela, pois teve um começo modesto. Dirigiu um curta de
comédia (Les affaires de publique, com Marcel Dalio, em 1934), depois dois
longas mais convencionais (e de boa qualidade!), Os anjos do pecado (1943), com
Mila Parély, e As damas do Bois de Bologne (1945), com María Casares. Só com
Diário de um pároco de aldeia, em 1951, começaria seu Cinema mais
característico, onde passaria a desprezar trabalhar com atores profissionais ou
em sets de estúdios, por achar que eles não eram reais. O destino uniu este
diretor tão obcecado pela busca do real com uma atriz tão convidativa a uma
atmosfera de sonho inalcançável. O resultado deste encontro singular está em
Uma mulher delicada. Um filme que não está cotado como um dos melhores de
Bresson. Mas deveria estar. Pranteia-se seu esquecimento assim como Luc o faz
ao lado do caixão de sua esposa. Sem entender o porquê.
3 comentários:
É um Bresson que falta eu ver.
Vale conferir com certeza, Ailton. Acho que você vai curtir. Um grande abraço...
Um grande filme. Pena não se encontrar mais em DVD. Está fora de catálogo. É excelente. Bresson, um mestre.
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