Há uma parte substancial em Um
corpo que cai onde Scottie (James Stewart) faz de tudo para que Judy (Kim
Novak) vire a sua musa inspiradora, a ponto de exigir que ela se vista, se
maquie e se comporte exatamente como ele quer. Este comportamento obsessivo foi
um traço de Hitchcock que vazou para as telas, em possivelmente seu melhor
filme. O famoso diretor fez isto constantemente com suas atrizes, porém sempre
lidando com profissionais já de certa fama e experiência, como Ingrid Bergman e
Grace Kelly, por exemplo. Com Tippi Hedren, ele pegou uma modelo sem nenhuma
experiência como atriz, e fez o possível para transformá-la em uma estrela de
cinema e em seu ideal eterno de uma loura fria na aparência, mas fogosa por
dentro. O fracasso foi tão grande, porém, que ele jamais tentou fazer isso
novamente. A situação saiu totalmente de controle, a ponto de Tippi Hedren o
acusar desde então de a ter assediado o tempo todo e, consequentemente,
destruir seu futuro como atriz. O filme The girl, feito para a TV pela
prestigiada HBO, com Julian Jarrold na direção, tenta analisar exatamente esta
explosiva situação, que tanto machucou o diretor e a novata atriz, como
respingou até em Marnie, confissões de uma ladra, filme que foi terminado com
desgosto por um Hitchcock que mal teve ânimo para dirigi-lo até seu final.
A ressalva que se deve fazer,
desde o princípio, é que o filme é adaptado do livro Fascinado pela beleza –
Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, com roteiro de Gwyneth
Hughes, e que praticamente assume que apresenta a versão de Tippi Hedren para
tudo o que aconteceu. The girl sofre um pouco por justamente apresentar por
demais apenas uma versão dos fatos. Alguns dos eventos ocorridos foram
públicos, mas vários dos retratados aconteceram entre quatro paredes, com
apenas Hitchcock e Tippi Hedren presentes. A versão de Tippi Hedren está no
filme e no bom livro de Donald Spoto (um conhecido pesquisador de Cinema, que
já escreveu três livros sobre Hitchcock, inclusive, então não se trata de algum
simples enxerido). Quanto à versão de Hitchcock, provavelmente nunca saberemos.
Que Alfred Hitchcock, como
pessoa, não era fácil de se lidar, isso Hollywood toda sabia. Neurótico,
irônico, sarcástico, por vezes estúpido, Hitchcock nunca teve muito traquejo
social, e feriu muitas pessoas durante sua carreira (não só atores e atrizes,
mas também roteiristas, compositores, fotógrafos, etc.), morrendo em 1980
praticamente sem amigos no ramo. Alguns dos fatos apresentados em The girl são
indiscutíveis e foram muito testemunhados, como o tormento desnecessário que
ele fez Tippi Hedren passar, em uma semana de filmagens com pássaros reais sendo
jogados em seu rosto constantemente (a atriz não ficou cega por sorte). Digamos
que não bastaria vestir uma roupa vermelha em Hitchcock e colocar uma barba
branca nele para que o diretor virasse o Papai Noel. Do bom velhinho, ele só tinha a
barriga. Segundo Tippi Hedren, Donald Spoto, e o filme The girl, porém, seu
comportamento se tornou especialmente abusivo com Tippi nos dois filmes que fez
com ela (Os pássaros e Marnie, confissões de uma ladra). Talvez o fato dela ser
uma novata, e ter que depender mais dele do que dependeram as outras atrizes,
tenha piorado o quadro. Talvez o envelhecimento de Hitchcock tenha influído,
com o fim de sua vida se aproximando, e toda a sua neurose, suas fobias, a
notória baixa auto-estima por sua aparência (ele se considerava grotesco) e sua
repressão sexual tenham atingido o ponto de ebulição. Talvez a própria paixonite
que sentiu por Tippi Hedren (uma espécie de Judy da vida real, que topou inicialmente ser
moldada conforme ele queria), tenha sido maior do que sentira por outras
atrizes. O mais provável é que tenha sido, inclusive, uma soma de todos estes
fatores. E Tippi Hedren acabou personificando a última gota que fez transbordar
a taça. Hitchcock chamava todas as atrizes de seus filmes como “The girl”. “Todos
os atores devem ser tratados como gado”, costumava dizer. Mas o filme atesta
que essa girl teimou em mostrar que era uma woman também.
O filme inevitavelmente cativa um
pouco por mostrar os meandros da Hollywood clássica, e algo da intimidade de um
de seus maiores diretores. É quase impossível que um cinéfilo não se sinta
atraído pelo tema do filme, que, diga-se de passagem, não torna por demais
apelativas as cenas, nem exagera o sensacionalismo do que ocorreu (dentro do
que era possível de se fazer). Apesar de ser uma produção abaixo do (alto)
nível que a HBO se acostumou a fazer, The girl é satisfatório, visualmente
agradável, tem um bom ritmo e alguns bons momentos. Passa de ano. Mas passa
raspando, com direito a choro na diretoria para ganhar mais uns décimos na
nota. Imelda Staunton, como Alma, a esposa de Hitchcock (tão importante em sua
vida e carreira), é praticamente desperdiçada no filme, que não lhe dá a nuance
e complexidade necessária para ilustrar melhor toda aquela história. O roteiro
é incompleto e vago, e não espelha bem todo o histórico de Hitchcock até aquele
episódio, assim como o de Tippi Hedren. Em alguns
momentos, Hitchcock parece ser todo vil, o que não parece muito crível. O filme
não consegue evitar um certo maniqueísmo, como na cena de teste da atriz antes
de Os pássaros, rodada juntamente com Martin Balsam, que pode ser conferida em sites de vídeos, onde nota-se que ela
está muito mais espontânea, sexy e segura do que é mostrado no filme, onde
Hitchcock parecia um titereiro conduzindo uma pobre marionete indefesa.
Muita da preocupação de cinéfilos
para com o filme era com o ator que interpretaria Hitchcock, por acharem que
não ficaria nada parecido com o “Mestre do suspense”. Este, porém, foi um dos
acertos do filme. Toby Jones, se não fica de fato muito parecido com Hitchcock
visualmente, mesmo assim logo nos faz esquecer isto, pois sua voz está
absurdamente semelhante com a de Hitchcock, e ele também assume seus
maneirismos e forma de se portar com maestria. Toby Jones, aliás, está em uma
fase de muito destaque em sua carreira, atuando em um filme atrás de outro, e
vários de grande sucesso (como Jogos vorazes, Poder paranormal, Sete dias com
Marilyn, O espião que sabia demais, etc.). Mesmo assim, pode-se dizer que é um
tremendo de um azarado. Teve uma ótima atuação como Truman Capote em
Confidencial, só para vê-la ser eclipsada pela de Philip Seymour Hoffman em
Capote, um filme com muito mais prestígio e que deu a ele o Oscar de melhor
ator. E em 2012 vê sua atuação competente como Alfred Hitchcock provavelmente passar
pela mesma estrada, com o filme Hitchcock, onde Anthony Hopkins assume o papel
do diretor, tendo tudo para ser o mais lembrado.
Sienna Miller, porém, como Tippi
Hedren, não alcança o mesmo sucesso de Toby Jones no filme. E a culpa não é só
dela, deve ser repartida com o diretor e a roteirista, que não lhe deram muitas
ferramentas para compor melhor sua personagem. Entramos e saímos do filme sem
conhecer muito Tippi Hedren. A atriz também não se parece muito com Hedren, e
não consegue o que Toby Jones conseguiu, isto é, de fato entrar no papel,
convencer o público apesar deste problema inicial. Quem era Tippi Hedren?
Ingênua e inocente? Sedutora e ardilosa? Fracassou no seguir da carreira porque
Hitchcock a perseguiu, por uma possível falta de talento, ou a soma das duas
coisas? O filme não responde isso, e nem a atriz consegue atrair muito
interesse em sua personagem. The girl, com todas as suas virtudes e defeitos,
acaba por ser mais ou menos o que normalmente Hitchcock queria de suas atrizes
principais: É atrativo por fora, pois agrada em uma análise mais superficial, mas
acaba sendo frio por dentro, não tendo tanto impacto e complexidade como
poderia ter.
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