Ang Lee continua sua peregrinação
multinacional com As aventuras de Pi, um filme que cruza fronteiras, culturas e
religiões sem nenhum embaraço. A história de um rapaz indiano, que trabalhou
toda a sua infância em um zoológico na Índia, que procurou seguir todas as
religiões que travou contato (dirigindo preces para Deus, Vishnu e Alá, entre
outros), e sofre um naufrágio enquanto seguia com um barco japonês rumo ao
Canadá, de fato necessitava de um diretor como Ang Lee. Apenas um chinês que
emigrou para os EUA e que fez filmes os mais variados possíveis, como uma tradicional
de saga de artes marciais (O tigre e o dragão), um romance gay no Oeste
americano (O segredo de Brokeback mountain), uma adaptação de um texto inglês clássico
de Jane Austen (Razão e sensibilidade), dois filmes sobre os rebeldes anos 60 e
70 americanos (Tempestade de gelo e Aconteceu em Woodstock), e mais um sobre um
super-herói dos quadrinhos (Hulk), poderia casar tão bem com um projeto tão
intercultural.
Desta vez, porém, Ang Lee lida
com uma trama de realismo mágico, que inclusive se assemelha a uma parábola de
um texto sagrado, pelas mensagens e leituras possíveis a serem formuladas sobre
algumas situações apresentadas. O roteirista David Magee adaptou o livro de
Yann Martel, que ganhou o prestigiado Booker Prize na Inglaterra, que manteve aberta
no filme a porta entre a dura realidade e a imaginação permeada pela fé. Ang
Lee transita sobre estes dois mundos no filme, e não disfarça muito qual a sua
preferência, ilustrando com algumas belíssimas sequências a (longa) passagem do
garoto em um pequeno barco no meio do Oceano Pacífico, onde tem que conviver
com uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre, este último chamado de Richard
Parker. Visualmente o filme é lindíssimo e irretocável, uma festa para os
olhos, um trabalho excelente de Claudio Miranda, o diretor de fotografia (de O
curioso caso de Benjamin Button e Tron: O legado). E os efeitos especiais são
muito convincentes (nenhuma vez Suraj Sharma, que interpreta o jovem Pi Patel,
de fato teve que interagir com um tigre no pequeno barco durante as filmagens,
mas o filme nos ilude totalmente quanto a isso), e essa parceria de fotografia
trabalhada com efeitos especiais ressalta todo o tom de realismo mágico para o
espectador.
Em relação ao texto e ao ritmo,
porém, o filme tem seus pequenos tropeços. Toda a passagem no barco, ainda que
marcante (com certeza é do que muitos se lembrarão do filme, passados alguns
anos), é um pouco longa demais, e uma ruptura com a trajetória do garoto, que
até então se demonstrava muito interessante, pela forma com que ele abraçava
todas as religiões que travava contato, e também pelas relações dele com seus
pais, com uma breve namorada, e com a própria Índia, que ele é obrigado a
abandonar, já sentindo saudades desde a partida. O ator Irrfan Khan (O
espetacular homem-aranha, Quem quer ser um milionário?, Um guerreiro solitário),
que interpreta o Pi Patel já adulto (e que é quem narra a história), tem uma
atuação muito rica e complexa, mas o mesmo não se pode dizer do resto do
elenco. Gérard Depardieu, que atua apenas em uma curta cena, é o único rosto mais
conhecido do elenco, cuja maioria se ressente de ter pouco tempo de tela. Suraj
Sharma e Rafe Spall (este, no papel do escritor que entrevista o Pi adulto),
porém, não têm essa desculpa, e apresentam atuações mais rasas, em um filme que
justamente pedia algo mais complexo por parte destes dois atores. Se o filme impressiona em
vários momentos, é apesar deles, e não por causa deles.
As aventuras de Pi tem em seu
cerne esta escolha entre uma vida mais cínica, objetiva e de pouca ou nenhuma
religiosidade, versus uma lírica, emotiva e carregada de fé. Não surpreende que
um escritor, um roteirista e um diretor escolham a segunda forma enxergar o
mundo, mas há que se registrar que estes três artistas deixaram aberta a opção
para que os que preferem a primeira escolha de vida tenham também uma visão da
situação que não afronte com suas filosofias individuais. Algumas pessoas
ficaram irritadas com a parte final do filme justamente por causa disso, por
essa possibilidade de dupla leitura, que nem sempre agrada a todos. Mas As
aventuras de Pi é o típico filme que faz o próprio espectador olhar para dentro
e pensar qual é a sua própria forma de ver a vida. Como ele vê o personagem de
Pi Patel diz muito sobre quem ele é, o que deseja e o que receia. E nem sempre
é fácil se fazer isso. O filme tem uma certa semelhança com Don Juan de Marco
(com Johnny Depp e Marlon Brando), pois são filmes que lidam com a tênue
fronteira entre fantasia e realidade, deixando espaço para as duas leituras
(mesmo que, claro, privilegiando a narrativa mais lírica), e também relatam a auto-construção
de um personagem. Pi Patel não tem nada de Don Juan, mas é um garoto que
descobre uma forma de deixar em segundo plano seu estranho nome (Piscine
Molitor Patel), sempre alvo de piadinhas no colégio, ao criar para si seu
apelido Pi, que é ligado ao próprio símbolo matemático tão conhecido. Este
espírito ativo e autônomo também se faz presente na forma com que lida com as
religiões e os bichos do zoológico, para consternação de seu pai. E, claro,
tudo isso desemboca na louca aventura dele no meio do mar, tendo que se virar
em um barco com aqueles animais. Um barco onde ele atende pelo singelo apelido
de Pi, e um tigre se chama Richard Parker, e o humano e o bestial se confundem
na narrativa.
O livro de Yann Martel conseguiu
conquistar um bom público, e foi alvo de uma grande polêmica, curiosamente
envolvendo o escritor brasileiro Moacyr Scliar (falecido em 2011). Segundo
Martel, sua inspiração teria surgido ao ler uma resenha negativa de John Updike
para o livro Max e os felinos de Scliar, onde teria lido sobre a convivência de
um homem com um jaguar em um pequeno barco. Apesar de John Updike não ter
escrito nenhuma resenha sobre o livro, e de Martel ter sido indelicado com
Scliar, dando a entender que uma boa ideia tinha sido desperdiçada por um
talento menor, o escritor brasileiro foi elegante e, após ler o livro de
Martel, concordou que houve uma narrativa diferente por parte do escritor
espanhol, não se configurando assim nenhum plágio em relação à sua obra, e
declinou qualquer tentativa de se ir aos tribunais por conta disso. Ao se
assistir ao filme As aventuras de Pi, é fácil imaginar que o personagem Pi
Patel teria feito o mesmo, pois é um personagem que acredita em gentileza e
humildade, mesmo que em confronto com algumas realidades difíceis. Ele quer continuar
vendo bondade nos olhos do tigre, mesmo contra todos os prognósticos. Nem que
tenha que criar uma narrativa para si mesmo, assim como se cunhou um novo
apelido. A maior aventura de Pi sempre foi contra si mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário