quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

As aventuras de Pi (Life of Pi – 2012)




Ang Lee continua sua peregrinação multinacional com As aventuras de Pi, um filme que cruza fronteiras, culturas e religiões sem nenhum embaraço. A história de um rapaz indiano, que trabalhou toda a sua infância em um zoológico na Índia, que procurou seguir todas as religiões que travou contato (dirigindo preces para Deus, Vishnu e Alá, entre outros), e sofre um naufrágio enquanto seguia com um barco japonês rumo ao Canadá, de fato necessitava de um diretor como Ang Lee. Apenas um chinês que emigrou para os EUA e que fez filmes os mais variados possíveis, como uma tradicional de saga de artes marciais (O tigre e o dragão), um romance gay no Oeste americano (O segredo de Brokeback mountain), uma adaptação de um texto inglês clássico de Jane Austen (Razão e sensibilidade), dois filmes sobre os rebeldes anos 60 e 70 americanos (Tempestade de gelo e Aconteceu em Woodstock), e mais um sobre um super-herói dos quadrinhos (Hulk), poderia casar tão bem com um projeto tão intercultural.

Desta vez, porém, Ang Lee lida com uma trama de realismo mágico, que inclusive se assemelha a uma parábola de um texto sagrado, pelas mensagens e leituras possíveis a serem formuladas sobre algumas situações apresentadas. O roteirista David Magee adaptou o livro de Yann Martel, que ganhou o prestigiado Booker Prize na Inglaterra, que manteve aberta no filme a porta entre a dura realidade e a imaginação permeada pela fé. Ang Lee transita sobre estes dois mundos no filme, e não disfarça muito qual a sua preferência, ilustrando com algumas belíssimas sequências a (longa) passagem do garoto em um pequeno barco no meio do Oceano Pacífico, onde tem que conviver com uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre, este último chamado de Richard Parker. Visualmente o filme é lindíssimo e irretocável, uma festa para os olhos, um trabalho excelente de Claudio Miranda, o diretor de fotografia (de O curioso caso de Benjamin Button e Tron: O legado). E os efeitos especiais são muito convincentes (nenhuma vez Suraj Sharma, que interpreta o jovem Pi Patel, de fato teve que interagir com um tigre no pequeno barco durante as filmagens, mas o filme nos ilude totalmente quanto a isso), e essa parceria de fotografia trabalhada com efeitos especiais ressalta todo o tom de realismo mágico para o espectador.

Em relação ao texto e ao ritmo, porém, o filme tem seus pequenos tropeços. Toda a passagem no barco, ainda que marcante (com certeza é do que muitos se lembrarão do filme, passados alguns anos), é um pouco longa demais, e uma ruptura com a trajetória do garoto, que até então se demonstrava muito interessante, pela forma com que ele abraçava todas as religiões que travava contato, e também pelas relações dele com seus pais, com uma breve namorada, e com a própria Índia, que ele é obrigado a abandonar, já sentindo saudades desde a partida. O ator Irrfan Khan (O espetacular homem-aranha, Quem quer ser um milionário?, Um guerreiro solitário), que interpreta o Pi Patel já adulto (e que é quem narra a história), tem uma atuação muito rica e complexa, mas o mesmo não se pode dizer do resto do elenco. Gérard Depardieu, que atua apenas em uma curta cena, é o único rosto mais conhecido do elenco, cuja maioria se ressente de ter pouco tempo de tela. Suraj Sharma e Rafe Spall (este, no papel do escritor que entrevista o Pi adulto), porém, não têm essa desculpa, e apresentam atuações mais rasas, em um filme que justamente pedia algo mais complexo por parte destes dois atores. Se o filme impressiona em vários momentos, é apesar deles, e não por causa deles.

As aventuras de Pi tem em seu cerne esta escolha entre uma vida mais cínica, objetiva e de pouca ou nenhuma religiosidade, versus uma lírica, emotiva e carregada de fé. Não surpreende que um escritor, um roteirista e um diretor escolham a segunda forma enxergar o mundo, mas há que se registrar que estes três artistas deixaram aberta a opção para que os que preferem a primeira escolha de vida tenham também uma visão da situação que não afronte com suas filosofias individuais. Algumas pessoas ficaram irritadas com a parte final do filme justamente por causa disso, por essa possibilidade de dupla leitura, que nem sempre agrada a todos. Mas As aventuras de Pi é o típico filme que faz o próprio espectador olhar para dentro e pensar qual é a sua própria forma de ver a vida. Como ele vê o personagem de Pi Patel diz muito sobre quem ele é, o que deseja e o que receia. E nem sempre é fácil se fazer isso. O filme tem uma certa semelhança com Don Juan de Marco (com Johnny Depp e Marlon Brando), pois são filmes que lidam com a tênue fronteira entre fantasia e realidade, deixando espaço para as duas leituras (mesmo que, claro, privilegiando a narrativa mais lírica), e também relatam a auto-construção de um personagem. Pi Patel não tem nada de Don Juan, mas é um garoto que descobre uma forma de deixar em segundo plano seu estranho nome (Piscine Molitor Patel), sempre alvo de piadinhas no colégio, ao criar para si seu apelido Pi, que é ligado ao próprio símbolo matemático tão conhecido. Este espírito ativo e autônomo também se faz presente na forma com que lida com as religiões e os bichos do zoológico, para consternação de seu pai. E, claro, tudo isso desemboca na louca aventura dele no meio do mar, tendo que se virar em um barco com aqueles animais. Um barco onde ele atende pelo singelo apelido de Pi, e um tigre se chama Richard Parker, e o humano e o bestial se confundem na narrativa.

O livro de Yann Martel conseguiu conquistar um bom público, e foi alvo de uma grande polêmica, curiosamente envolvendo o escritor brasileiro Moacyr Scliar (falecido em 2011). Segundo Martel, sua inspiração teria surgido ao ler uma resenha negativa de John Updike para o livro Max e os felinos de Scliar, onde teria lido sobre a convivência de um homem com um jaguar em um pequeno barco. Apesar de John Updike não ter escrito nenhuma resenha sobre o livro, e de Martel ter sido indelicado com Scliar, dando a entender que uma boa ideia tinha sido desperdiçada por um talento menor, o escritor brasileiro foi elegante e, após ler o livro de Martel, concordou que houve uma narrativa diferente por parte do escritor espanhol, não se configurando assim nenhum plágio em relação à sua obra, e declinou qualquer tentativa de se ir aos tribunais por conta disso. Ao se assistir ao filme As aventuras de Pi, é fácil imaginar que o personagem Pi Patel teria feito o mesmo, pois é um personagem que acredita em gentileza e humildade, mesmo que em confronto com algumas realidades difíceis. Ele quer continuar vendo bondade nos olhos do tigre, mesmo contra todos os prognósticos. Nem que tenha que criar uma narrativa para si mesmo, assim como se cunhou um novo apelido. A maior aventura de Pi sempre foi contra si mesmo. 

Nenhum comentário: