A cada ano, o Cinema apresenta
casos que são logo marcados pela crítica como “filmes feitos para ganhar Oscars”.
Talvez este seja também o caso de Os miseráveis, por ser uma adaptação de um
musical de enorme sucesso na Broadway, por tantos anos. Porém, talvez o filme
integre também uma categoria mais seleta e muito inusitada de “filmes que foram
influenciados pelo próprio Oscar”. Em Fevereiro de 2009, Hugh Jackman
impressionou os que o conheciam apenas por suas atuações em filmes de ação,
mais notadamente os da série X-Men como Wolverine, pois foi o apresentador do
Oscar, onde cantou e dançou com Beyoncé e, entre outros, Amanda Seyfried, e também
chamou Anne Hathaway para o palco, onde ambos fizeram um dueto muito elogiado (são
muito amigos, inclusive). Já em Fevereiro de 2011 foi a vez de Anne Hathaway
apresentar o Oscar (junto com James Franco), e ela cantou uma versão irônica de
“On my own” (justamente do repertório de Os miseráveis) que brincava com Hugh
Jackman, enquanto na plateia também estava Tom Hooper (vencedor do Oscar daquele
ano por O discurso do Rei), que já tinha iniciado o processo de escolha de
atores para Os miseráveis. Anne Hathaway jura que foi uma coincidência. Tom
Hooper sempre desconfiou que não, mas não se incomodou nem um pouco com isso pois assim foi possível ver, em primeira mão, como eles poderiam funcionar muito bem em seu próximo
filme.
Coincidência ou não, os dois atores
foram escalados para Os miseráveis, e valorizam demais o filme. Ambos receberam
duas muito justas indicações aos prêmios de Ator e Atriz coadjuvante. Hugh Jackman
chegou a passar fome e sede para poder convencer como o Jean Valjean enquanto prisioneiro,
e canta com competência, em um difícil papel. Com experiência em musicais desde
o começo da carreira (atuou nos palcos em Oklahoma, e na versão musical de
Sunset Boulevard, no papel clássico de Joe Gillis), se sai muito bem cantando,
e também ao passar para a tela o quase infindável périplo de Valjean, sempre
fugindo da lei, principalmente da figura de Javert (Russell Crowe, que está
deslocado no filme, até por não cantar muito bem). Anne Hathaway, também com
boa experiência em musicais (é uma soprano, inclusive, e competente), rouba o
filme na sua curta aparição, aproveitando cada segundo em que aparece,
mostrando a decadência moral e física de Fantine, uma personagem que come e
vomita o pão que o diabo amassou. Sua interpretação de “I dreamed a dream”
(canção que recebeu grande destaque recente por ter sido a que Susan Boyle cantou no
programa de TV Britain’s got talent, que foi dos vídeos mais vistos na história
da Internet) é fascinante pelo desespero da sua personagem, que sabe que não
tem mais qualquer esperança. É uma cena que já nasceu clássica, e que não tem
um corte sequer, Anne Hathaway a cantou do início ao fim, emocionando até a
equipe de filmagem. E cantou mesmo, porque o filme tem a raríssima distinção de
não ter sido filmado com as músicas já gravadas, onde os atores apenas se
preocupando em movimentar corretamente suas bocas, como acontece em 99% dos
musicais. Nada disso, Tom Hooper queria o máximo de realismo e de interpretação
de todos os seus atores, e todos eles tiveram que cantar de verdade, durante a
gravação, algo extenuante para os atores e para a equipe, que não pôde fazer
qualquer barulho. O resultado final reflete a importância desta medida, de fato
trazendo interpretações mais ricas dos personagens e das canções.
Os outros atores também se saem
bem em seus papéis e em suas respectivas cantorias, como Amanda Seyfried
(Cosette), Eddie Redmayne (Marius) e Samantha Barks (Éponine). Há até uma
simpática homenagem a Colm Wilkinson, o Jean Valjean original dos palcos
americanos e ingleses, que no filme interpreta o bispo que muda o destino de
Jean Valjean. As exceções ficam por conta do já citado Russel Crowe (que, no
fundo, não pertence muito ao ambiente de um musical), e também de Sacha Baron
Cohen e Helena Bonham Carter, como o casal Thénardier, que preferem partir para
algo mais caricato e voltado para a comédia, tirando um pouco a ameaça que o
casal representa à dupla Valjean e Cosette. O próprio Tom Hooper erra e acerta no
filme. Acertou, sem dúvidas, na exigência de se gravar as vozes durantes as
filmagens mesmo, e em registrar parte da crueza e desesperança da trama. Em compensação,
ele abusa um pouco dos closes nos atores (talvez até para realçar a cantoria “ao
vivo” deles), tirando com isso parte do caráter épico da história. É claro que
este Os miseráveis deve boa parte de seu DNA ao musical da Broadway, mais até
do que ao ultra-clássico livro de Victor Hugo, e com certeza deverá ser mais
comparado com o musical do que com o livro propriamente dito. Mas mesmo assim a
história parece por demais acelerada no começo, com algumas partes da trama,
importantes no enredo (como o drama de Valjean de se entregar ou não para a
justiça, e livrar um pobre condenado que fora confundido com ele) se
desenrolando rápido demais, e toda a parte final ficando curiosamente um pouco
esticada. Os mais focados no livro de Victor Hugo e em uma adaptação de sua
obra mais fidedigna devem continuar com a mira apontada para a adaptação
francesa de 1934, dirigida por Raymond Bernard, com Harry Baur como Jean
Valjean e Charles Vanel como Javert, até por esta versão contar com 281 minutos
de duração (talvez a obra de Victor Hugo exija mesmo uma duração deste quilate,
para ser mais corretamente adaptada).
Os miseráveis, com toda a sua inegável
competência musical e artística (a fotografia, direção de arte e figurinos são
todos de primeiríssimo nível), demonstra o peso de seus 158 minutos (mais do
que o clássico do cinema francês de 1934 demonstrava em seus 281 minutos, o que
prova que tudo é relativo), tendendo a cansar um pouco o espectador,
principalmente o que não curte muito os musicais. É difícil, aliás, que as
pessoas que desprezem musicais mudem de ideia por causa de Os miseráveis.
Quando isso acontece e o preconceito é vencido, geralmente ocorre por causa de um
musical que apresente danças mirabolantes, e/ou canções “justificadas” (isto é,
que os personagens cantam por algum propósito real, como ter que se apresentar
num show, por exemplo). Cantando na chuva, dentre muitos outros exemplos, vence o espectador
resistente muito por causa de sua fenomenal dança, e um filme como All that
Jazz o faz por (ótimas) canções quase sempre justificadas e reforçadas por um
excelente roteiro. Os miseráveis, porém, só tem cantoria (quase que o tempo
todo, pouquíssimos são os diálogos “normais”) e todos cantam sem esta tal “justificativa”
que facilitaria a vida dos que não curtem muito os musicais, apesar do roteiro do
filme ser muito bom, até por derivar do clássico de Victor Hugo.
O saldo final é satisfatório,
principalmente para os fãs do gênero e/ou para os que tem doces recordações do
musical da Broadway. O repertório, o mais importante de qualquer
musical, é de notória qualidade e muito bem executado. Porém, fica um pouco no
ar o senso de que falta alguma coisa. Não faltou crueldade e desesperança, isso
Tom Hooper e os atores retrataram muito bem. Nem nada referente às canções ou a
boa parte dos atores. Nem coragem, pois gravar as vozes no set de filmagens
cheira a loucura completa para muitos produtores, e Tom Hooper bancou isto,
junto com seus atores. Talvez tenha faltado um pouco de magia, de impacto, que
sobrou, por exemplo, na cena em que Anne Hathaway barbariza cantando “I dreamed
a dream” entre lágrimas. Uma grande cena em um filme correto, competente, que
porém carece de outros grandes momentos como este. Os miseráveis agrada, mas
não brilha, e era de se esperar que brilhasse um pouco mais, por ser a extensão
cinematográfica de um livro e uma peça tão famosos e elogiados.