segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Os miseráveis (Les misérables – 2012)




A cada ano, o Cinema apresenta casos que são logo marcados pela crítica como “filmes feitos para ganhar Oscars”. Talvez este seja também o caso de Os miseráveis, por ser uma adaptação de um musical de enorme sucesso na Broadway, por tantos anos. Porém, talvez o filme integre também uma categoria mais seleta e muito inusitada de “filmes que foram influenciados pelo próprio Oscar”. Em Fevereiro de 2009, Hugh Jackman impressionou os que o conheciam apenas por suas atuações em filmes de ação, mais notadamente os da série X-Men como Wolverine, pois foi o apresentador do Oscar, onde cantou e dançou com Beyoncé e, entre outros, Amanda Seyfried, e também chamou Anne Hathaway para o palco, onde ambos fizeram um dueto muito elogiado (são muito amigos, inclusive). Já em Fevereiro de 2011 foi a vez de Anne Hathaway apresentar o Oscar (junto com James Franco), e ela cantou uma versão irônica de “On my own” (justamente do repertório de Os miseráveis) que brincava com Hugh Jackman, enquanto na plateia também estava Tom Hooper (vencedor do Oscar daquele ano por O discurso do Rei), que já tinha iniciado o processo de escolha de atores para Os miseráveis. Anne Hathaway jura que foi uma coincidência. Tom Hooper sempre desconfiou que não, mas não se incomodou nem um pouco com isso pois  assim foi possível ver, em primeira mão, como eles poderiam funcionar muito bem em seu próximo filme.

Coincidência ou não, os dois atores foram escalados para Os miseráveis, e valorizam demais o filme. Ambos receberam duas muito justas indicações aos prêmios de Ator e Atriz coadjuvante. Hugh Jackman chegou a passar fome e sede para poder convencer como o Jean Valjean enquanto prisioneiro, e canta com competência, em um difícil papel. Com experiência em musicais desde o começo da carreira (atuou nos palcos em Oklahoma, e na versão musical de Sunset Boulevard, no papel clássico de Joe Gillis), se sai muito bem cantando, e também ao passar para a tela o quase infindável périplo de Valjean, sempre fugindo da lei, principalmente da figura de Javert (Russell Crowe, que está deslocado no filme, até por não cantar muito bem). Anne Hathaway, também com boa experiência em musicais (é uma soprano, inclusive, e competente), rouba o filme na sua curta aparição, aproveitando cada segundo em que aparece, mostrando a decadência moral e física de Fantine, uma personagem que come e vomita o pão que o diabo amassou. Sua interpretação de “I dreamed a dream” (canção que recebeu grande destaque recente por ter sido a que Susan Boyle cantou no programa de TV Britain’s got talent, que foi dos vídeos mais vistos na história da Internet) é fascinante pelo desespero da sua personagem, que sabe que não tem mais qualquer esperança. É uma cena que já nasceu clássica, e que não tem um corte sequer, Anne Hathaway a cantou do início ao fim, emocionando até a equipe de filmagem. E cantou mesmo, porque o filme tem a raríssima distinção de não ter sido filmado com as músicas já gravadas, onde os atores apenas se preocupando em movimentar corretamente suas bocas, como acontece em 99% dos musicais. Nada disso, Tom Hooper queria o máximo de realismo e de interpretação de todos os seus atores, e todos eles tiveram que cantar de verdade, durante a gravação, algo extenuante para os atores e para a equipe, que não pôde fazer qualquer barulho. O resultado final reflete a importância desta medida, de fato trazendo interpretações mais ricas dos personagens e das canções.

Os outros atores também se saem bem em seus papéis e em suas respectivas cantorias, como Amanda Seyfried (Cosette), Eddie Redmayne (Marius) e Samantha Barks (Éponine). Há até uma simpática homenagem a Colm Wilkinson, o Jean Valjean original dos palcos americanos e ingleses, que no filme interpreta o bispo que muda o destino de Jean Valjean. As exceções ficam por conta do já citado Russel Crowe (que, no fundo, não pertence muito ao ambiente de um musical), e também de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, como o casal Thénardier, que preferem partir para algo mais caricato e voltado para a comédia, tirando um pouco a ameaça que o casal representa à dupla Valjean e Cosette. O próprio Tom Hooper erra e acerta no filme. Acertou, sem dúvidas, na exigência de se gravar as vozes durantes as filmagens mesmo, e em registrar parte da crueza e desesperança da trama. Em compensação, ele abusa um pouco dos closes nos atores (talvez até para realçar a cantoria “ao vivo” deles), tirando com isso parte do caráter épico da história. É claro que este Os miseráveis deve boa parte de seu DNA ao musical da Broadway, mais até do que ao ultra-clássico livro de Victor Hugo, e com certeza deverá ser mais comparado com o musical do que com o livro propriamente dito. Mas mesmo assim a história parece por demais acelerada no começo, com algumas partes da trama, importantes no enredo (como o drama de Valjean de se entregar ou não para a justiça, e livrar um pobre condenado que fora confundido com ele) se desenrolando rápido demais, e toda a parte final ficando curiosamente um pouco esticada. Os mais focados no livro de Victor Hugo e em uma adaptação de sua obra mais fidedigna devem continuar com a mira apontada para a adaptação francesa de 1934, dirigida por Raymond Bernard, com Harry Baur como Jean Valjean e Charles Vanel como Javert, até por esta versão contar com 281 minutos de duração (talvez a obra de Victor Hugo exija mesmo uma duração deste quilate, para ser mais corretamente adaptada).

Os miseráveis, com toda a sua inegável competência musical e artística (a fotografia, direção de arte e figurinos são todos de primeiríssimo nível), demonstra o peso de seus 158 minutos (mais do que o clássico do cinema francês de 1934 demonstrava em seus 281 minutos, o que prova que tudo é relativo), tendendo a cansar um pouco o espectador, principalmente o que não curte muito os musicais. É difícil, aliás, que as pessoas que desprezem musicais mudem de ideia por causa de Os miseráveis. Quando isso acontece e o preconceito é vencido, geralmente ocorre por causa de um musical que apresente danças mirabolantes, e/ou canções “justificadas” (isto é, que os personagens cantam por algum propósito real, como ter que se apresentar num show, por exemplo). Cantando na chuva, dentre muitos outros exemplos, vence o espectador resistente muito por causa de sua fenomenal dança, e um filme como All that Jazz o faz por (ótimas) canções quase sempre justificadas e reforçadas por um excelente roteiro. Os miseráveis, porém, só tem cantoria (quase que o tempo todo, pouquíssimos são os diálogos “normais”) e todos cantam sem esta tal “justificativa” que facilitaria a vida dos que não curtem muito os musicais, apesar do roteiro do filme ser muito bom, até por derivar do clássico de Victor Hugo.

O saldo final é satisfatório, principalmente para os fãs do gênero e/ou para os que tem doces recordações do musical da Broadway. O repertório, o mais importante de qualquer musical, é de notória qualidade e muito bem executado. Porém, fica um pouco no ar o senso de que falta alguma coisa. Não faltou crueldade e desesperança, isso Tom Hooper e os atores retrataram muito bem. Nem nada referente às canções ou a boa parte dos atores. Nem coragem, pois gravar as vozes no set de filmagens cheira a loucura completa para muitos produtores, e Tom Hooper bancou isto, junto com seus atores. Talvez tenha faltado um pouco de magia, de impacto, que sobrou, por exemplo, na cena em que Anne Hathaway barbariza cantando “I dreamed a dream” entre lágrimas. Uma grande cena em um filme correto, competente, que porém carece de outros grandes momentos como este. Os miseráveis agrada, mas não brilha, e era de se esperar que brilhasse um pouco mais, por ser a extensão cinematográfica de um livro e uma peça tão famosos e elogiados. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O lado bom da vida (Silver linings playbook -2012)




My chérie amour, pretty little one that I adore, you’re the only girl my heart beats for, how I wish that you were mine...

O personagem Pat, interpretado por Bradley Cooper, enlouquece quando escuta (ou acha que escuta) esta canção de Stevie Wonder, um lembrete de seu casamento e também de quando flagrou sua esposa tendo um caso com um colega seu de trabalho. Bipolar, recentemente saído (com condicional) de uma instituição, planeja se curar abandonando os medicamentos e fazendo uso apenas de pensamentos e atitudes que julga positivos, e, se possível, recuperar sua esposa. Volta a morar com seus pais, e entra em choque constante com seu pai (Robert De Niro), um homem apaixonado pelo Philadelphia Eagles (time de futebol americano) e extremamente supersticioso, a ponto de deixar o espectador na dúvida sobre quem é o mais doido, o pai ou o filho. E logo entra em contato com Tiffany (Jennifer Lawrence), uma garota mais nova, recentemente viúva e com uma visão bem mais negativa da vida, com problemas sérios de auto-estima.

Como esta trama funciona, e por extensão o próprio filme O lado bom da vida, é um razoável mistério. O fato é que este pequeno filme de David O. Russell (de O vencedor, Huckabees – A vida é uma comédia e Três reis) conquistou os EUA, tanto a crítica como o público, e conseguiu indicações de Peso para o Oscar, como Filme, Direção, Roteiro adaptado e também nas quatro categorias de atuação, algo que não acontecia desde Reds, dirigido por Warren Beatty, em 1981. O filme consegue conviver numa tênue fronteira entre o drama, a comédia e o romance, sem forçar nunca para nenhum lado. E é absolutamente charmoso, apesar de que, se for analisado friamente, ao menos o roteiro, e várias das situações apresentadas, não fazem lá muito sentido.

Mas O lado bom da vida não foi feito para ser servido frio. Um espectador mais analítico e reflexivo provavelmente jamais vai entender a mística do filme, e vai julgar que todos enlouqueceram quando valorizaram o filme. E talvez tenha sua razão, pois o filme se ancora mesmo em sua capacidade de tirar o espectador do estado cínico habitual e fazê-lo embarcar nesta curiosa história, que por vezes é banal, e em outras ocasiões totalmente alucinada. O lado bom da vida pulsa forte, e boa parte disso se deve pela bela sintonia de seus quatro atores principais, todos nas pontas dos cascos, e com indicações merecidas ao Oscar. O casal principal tem uma bela química em tela, em um romance em muito baseado na aceitação das limitações e neuroses alheias, em compreensão mútua, enfim. Bradley Cooper vem se firmando com um ator mais “sério”, após ter ficado mundialmente conhecido pela comédia rasgada Se beber, não case. Após estrelar recentemente As palavras e Sem limites (este, inclusive, com Robert De Niro também), ele segue numa boa toada e mostra complexidade em um difícil papel, que poderia ter facilmente caído numa caricatura. É o ator do momento, assim como Jennifer Lawrence, que teve uma ascensão ainda mais meteórica desde o excelente Inverno da alma, de 2010. Em 2012 mesmo estrelou um sucesso absurdo de público com Jogos vorazes, e conseguiu com O lado bom da vida mais uma indicação de melhor Atriz (além de ganhar o Globo de Ouro na categoria de Atriz de musical ou comédia). Ele é parte fundamental da difícil explicação do mistério do sucesso deste filme. Dos quatro, é a que tem a melhor atuação, e é a alma de O lado bom da vida, que poderia ser apenas mais um filme de Sessão da tarde com uma atriz menos afiada. Sua Tiffany tem profundidade e personalidade, é decidida, mas sabe a hora de pisar em ovos e aguentar a constante lembrança de Pat por sua esposa. Ela carrega boa parte da fatia de romance do enredo, sem torná-lo açucarado ou pouco crível (apesar da trama não a ajudar nem um pouco neste sentido). Com 22 anos de idade, ela já é uma inegável estrela, e lida bem com seu papel urbano, após as quase selvagens personagens que interpretou em Inverno da alma e Jogos vorazes (se bem que, de certa forma, sua Tiffany também mantenha as garras bem afiadas).

Os dois atores veteranos também estão ótimos, dando respaldo para o casal principal, e mais molho para a trama. Jacki Weaver (antes indicada ao Oscar por Reino animal, onde teve uma grande atuação, que infelizmente foi pouco vista) tem que conviver com dois homens de gênio forte (bota forte nisso), e mostra força e ternura, além de conseguir deixar sua marca, pois seria bem fácil se tornar uma personagem apagada atuando entre Bradley Cooper e Robert De Niro. Está sempre tendo que evitar que um desastre aconteça, e quando ele acontece, deve logo apagar as chamas. E Robert De Niro parece estar justamente querendo retirar sua carreira das cinzas. Após anos atuando, quase sempre, em papéis de pouco destaque (alguns até ridículos, deve-se ressaltar), ele volta à grande forma em O lado bom da vida. Não se tem aqui o Robert De Niro ameaçador, seguro, dos filmes que fez com Martin Scorsese. Aqui sua neurose está a mil, e ele tenta conviver com a frustração de ver seu filho não emplacar na vida, além de sua própria constante derrocada no meio de apostas e superstições estapafúrdias. Ele é a válvula de escape da comédia da trama, sem deixar de ser o mais triste personagem. O espectador ri, e concomitantemente se compadece dele.

Ao final, é difícil esconder o sorriso nos lábios, mesmo que o público não entenda bem o porquê de estar sorrindo. Em tese, cada espectador já viu centenas de filmes semelhantes. Mas este tem o indefinível algo a mais, que faz toda a diferença. O algo a mais que faz com que um homem se apaixone por uma mulher, e não por outra que até faria mais sentido, que seria muito mais adequada ao seu perfil. O lado bom da vida é apaixonante, como poucos filmes foram no Cinema recente. Tem Robert De Niro voltando a honrar seu glorioso passado. Tem David O. Russell provando que o sucesso de O vencedor não foi um evento isolado. Tem um Bradley Cooper cada vez mais se firmando como um ator respeitável. Tem uma trama deliciosa, mesmo que mais furada que queijo suíço. E tem a bela e inesquecível Jennifer Lawrence. É, talvez o sucesso de O lado bom da vida não seja tão inexplicável assim... Talvez ele seja como a canção “My chérie amour”, parecida com milhares de outras, mas que costuma ficar na cabeça de quem a escuta, mesmo se a pessoa for amante de Heavy Metal e odiar qualquer balada romântica. O desprezo intelectual, baseado em argumentos concretos, pode até despontar publicamente, até por uma questão de se manter uma fachada. Mas no fundo, bem lá no fundo, é possível que muito metaleiro curta a canção quando vê que não tem ninguém por perto para lhe azucrinar por isso. E em paz pode cantar baixinho, mesmo que com uma certa vergonha, os versos dela, com “La, la, la” e tudo:

Oh, chérie amour, pretty little one that I adore, you’re the only girl my heart beats for, how I wish that you were mine…

La, la, la, la, la, la
La, la, la, la, la, la

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Django livre (Django unchained - 2012)




Só Quentin Tarantino mesmo para misturar Western-Spaghetti e filmes com temática de Blaxploitation dos anos 70 e fazer isso funcionar tão bem, como ele conseguiu com Django livre. Os anos passam, e Tarantino segue o mesmo. Para irritação de alguns críticos, que enxergam em seu Cinema uma grande imaturidade e superficialidade. E para a delícia de sua grande legião de fãs, que quer que ele continue fazendo exatamente esta salada de referências e influências que ele é tão conhecido por fazer. Django livre segue de perto a linha Tarantinesca, da qual, na verdade, o diretor nunca se afastou. Temos de novo os diálogos cortantes e divertidos, o uso de inúmeras canções e homenagens cinematográficas das procedências mais diversas, várias cenas com uma disputa tensa de poder entre os personagens, outras alucinantes e criativas de ação, e, claro, um personagem procurando vingança a qualquer custo.

Porém, Django (Jamie Foxx, muito seguro no papel) não busca vingança apenas para si mesmo. Assim como em Bastardos inglórios Tarantino tinha, junto com seus espectadores, se “vingado” dos nazistas, dando um bico para escanteio na História e chegando a metralhar o próprio Adolf Hitler, em Django livre ele cria outra catarse coletiva, com um ex-escravo negro se vingando, à bala, dos escravocratas brancos. Tarantino declarou, em uma entrevista, com muita razão, que os Westerns antigos hollywoodianos nunca tinham como cenário o Sul dos EUA, para evitar qualquer questão escravocrata, e com isso não melindrar o público da época. Aliás, mesmo algumas décadas depois, o racismo, com Barack Obama à frente da Presidência e tudo o mais, continua sendo um assunto espinhoso e delicado nos EUA. Mas não para o diretor, que joga um balde de sal grosso na ferida, usando Django como instrumento de vingança coletiva contra uma injustiça histórica, em várias cenas memoráveis. Ele se vinga dos latifundiários brancos, e, por que não, até dos negros que davam respaldo àquela situação, principalmente representado no filme pelo personagem de Samuel L. Jackson (quase um talismã do diretor, usado em diversos de seus filmes, de novo em grande atuação). Talvez nada irritasse mais os escravos do que um de seus semelhantes que puxasse o saco do patrão branco, e que fosse implacável nos castigos a outros escravos para “mostrar serviço” para ele. Criticado por Spike Lee, dentre outros, pelo que compreende por agressões aos negros em seus filmes (principalmente pelo uso indiscriminado da polêmica palavra “nigger”, que causa dissabores enormes nos EUA, e que Tarantino de novo usa à torto e à direito), Tarantino ao menos deixa claro que não apresentará, de jeito nenhum, um “Uncle Tom”, ou seja, mais um negro servil e bonzinho em sua história, que é escravo mas segue sorridente e feliz. Ninguém ali está feliz. Muito menos Django, evidentemente.

Entretanto, é quase desnecessário ressaltar que o Cinema de Tarantino não busca grandes reflexões, e muito menos o distanciamento do espectador, tão pretendido por artistas como o dramaturgo Bertolt Brecht, por exemplo. Muito pelo contrário, ele quer mesmo é pegar o espectador de jeito e fazê-lo embarcar numa jornada alucinante focado nos prazeres sensoriais, principalmente os visuais. Ele quer o público saindo de si e babando após ver mais uma grande cena de ação ou confronto entre os personagens. Dúvidas, reflexões, filosofias, e até os registros históricos propriamente ditos, tudo isto ele está sempre pronto a desprezar, principalmente se estiverem entre sua câmera e o seu Cinema hedonista.

Seus atores, mais uma vez, o ajudam a atingir seus objetivos. Christoph Waltz de novo está brilhante, dessa vez como um alemão caçador de recompensas, que ajuda Django em seu intento. Se antes tinha sido um nazista ardiloso em Bastardos inglórios (com direito a Oscar de coadjuvante pelo filme), dessa vez ele é mais humano, a ponto de claramente ir mudando de postura com relação a Django e, por que não, sãos escravos em geral. Leonardo DiCaprio surpreende em um papel de vilão, sem nenhuma amarra. Consegue ser tão ardiloso e odioso quanto tinha sido o nazista Landa de Waltz em Bastardos inglórios (curiosamente, DiCaprio era o ator que interpretaria este personagem, mas Tarantino preferiu então apostar em um ator que dominasse o alemão, como evidentemente era o caso do austríaco Waltz). E consegue ser um vilão perfeito, algo inédito em sua carreira, e tão necessário para um filme com heróis e vilões tão definidos como Django livre. Jamie Foxx carrega o filme com competência e raiva, é a locomotiva daquele trem, e demonstra um grande autocontrole mesmo nas situações mais tensas. E Samuel L. Jackson está perfeito em seu papel, sendo o mais inteligente de todos aqueles homens, pois consegue controlar, de certa forma, o seu patrão, e ao mesmo tempo impor distância aos outros escravos, que o temem mais que o odeiam. Com a exceção de Christoph Waltz, lembrado na categoria de coadjuvante, o Oscar esnobou indicações aos restantes, que mereciam ser destacados em suas atuações.

A trilha sonora é um show desde os créditos iniciais, que remetem diretamente aos Western-Spaghettis, inclusive com o uso da versão americana da canção de Django, de 1966 (filme dirigido por Sergio Corbucci, e que criou uma infinidade de imitações e cópias), composta por Luis Bacalov. Além de Bacalov (também usa-se trilhas dele de Lo chiamavano King, curiosamente um filme de um caçador de recompensas, e o personagem de Christoph Waltz em Django livre se chama King também), Tarantino faz uso de trilhas de Ennio Morricone (Os abutres tem fome, filme de Don Siegel com Clint Eastwood e Shirley MacLaine; Cidade violenta, de Sergio Sollima, com Charles Bronson e Telly Savalas; e Os cruéis, também de Sergio Corbucci, com Joseph Cotten e... Norma Bengell), dentre outros compositores, usando até canções modernas, e fazendo-as funcionar naquele contexto. Mais uma vez, Tarantino mostra-se um ótimo DJ de um filme seu. E as brincadeiras também se estendem ao uso de Franco Nero, o Django inicial do filme de 1966, que é curiosamente ensinado a falar corretamente o nome de Django, com o tal D mudo. A própria apresentação do personagem de Leonardo DiCaprio remete muito à de Henry Fonda em Era uma vez no Oeste, onde Fonda foi apresentado de forma justamente para dar um susto no público, tão acostumado a vê-lo nos papéis de mocinho, assim como acontece com DiCaprio. E o nome da personagem Broomhilda von Shaft, de Kerry Washington (que também foi parceira de Jamie Foxx em Ray, onde ele ganhou o Oscar de melhor ator), segundo o próprio Tarantino era mesmo uma referência ao clássico Shaft  interpretado por Richard Roundtree, um detetive negro que marcou época nos anos 70, que seria uma espécie de tataraneto do casal principal de Django livre. O filme é recheado de piscadelas para cinéfilos (muito) atentos, mas não exige este tipo de conhecimento para que seja desfrutado, é apenas um bônus a mais.

Ao final de suas quase três horas (que passam voando), Django livre tem tudo para agradar demais ao público que ama Tarantino, e até a seus críticos, desde que eles compreendam que, pelo visto, Tarantino não quer mudar, que seus filmes sempre seguirão com essa toada de vingança, com tensão total, embalada por sangue jorrando e diálogos marcantes, e com qualquer plausibilidade histórica sendo descartada desde o início. Nem todos são ecléticos. Outros diretores históricos também pouco mudaram, como Hitchcock, que fez uma carreira quase inteira no gênero  suspense, e com muitas vezes apresentando tramas onde um inocente tinha que provar que não era culpado, ou Yasujiro Ozu, com enredos familiares muito similares, filmados com sua câmera-baixa habitual, e usando geralmente os mesmos atores. Nenhum desses dois diretores deixou de ser grande por causa disso, talvez porque muitos sejam os caminhos da grandeza. Tarantino parece ter encontrado o dele desde Cães de aluguel, e não parece querer trilhar outro, venham as críticas que vierem. Ele bota seu prazer em primeiro lugar, como se filmasse diretamente para o Quentin Tarantino dos anos 80, que era funcionário de uma locadora de filmes, e que curtia exatamente este tipo de filmes. Pelo que se pode notar, pela reação quase sempre entusiasmada de boa parte do público e crítica, a locadora de Tarantino nunca vai ficar vazia. Sempre vai ter muita gente disposta a pegar seus filmes, alguns já clássicos estabelecidos do Cinema.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Lincoln (2012)




Abraham Lincoln hoje é muito bem visto, mas teve que se equilibrar numa corda muito bamba durante todo o seu Governo. Ele poderia inclusive ter sido o último Presidente dos EUA, ao menos do país que hoje conhecemos. Com sua eleição (com praticamente nenhum voto do Sul do país), o dissabor dos estados rebeldes do Sul aumentou muito, gerando a criação dos Estados Confederados da América, que, em suma, era a saída destes da Federação, e a criação de um novo país, com a Capital em Richmond, na Virgínia. Claro que o Norte não deixou barato, e Lincoln muito menos, e a Guerra Civil Americana foi consequência disso. Atuando algumas vezes como um ditador (ignorando habeas corpus de vários detidos, por exemplo), era odiado por pelo menos metade do país, e ainda tinha a pachorra de tentar acabar de vez com a escravidão nos EUA, um assunto por demais polêmico. Mexer com tanto ódio e ressentimento cobrou seu preço, com seu assassinato por John Wilkes Booth, um ator de teatro e sulista ressentido, apenas cinco dias após a rendição do Sul.

É conveniente que tal Presidente, antes tão contestado e odiado, e hoje tão amado, tenha tido parte de sua história contada pela batuta de Steven Spielberg, talvez o mais clássico dos diretores americanos atuais. E Spielberg dirigiu Lincoln, o filme, da forma mais tradicional possível, virando as costas para qualquer modernismo, como o uso de câmera-na-mão, edição frenética ou similares. É como se Spielberg pensasse que uma figura clássica como Lincoln merecesse um tratamento igualmente clássico. Se diretores como Tarantino brincam com a História, Spielberg segue o caminho inverso, ele a reverencia, e faz o tratamento sóbrio que julga adequado (com direito à sua equipe de sempre, Janusz Kaminski na fotografia, John Williams com a trilha sonora, Michael Kahn na edição, todos com belos trabalhos no filme). Em 1997 ele tinha dirigido Amistad, um filme que lidava com a causa abolicionista, no caso a luta de um punhado de escravos que lutavam pela liberdade, após causarem um motim em um navio negreiro. Foi um dos poucos fracassos de sua carreira, apesar de contar com um belo discurso final, proferido por Anthony Hopkins. Talvez o problema maior de Amistad é que ele não tinha um trunfo como Lincoln, o coringa que por si só torna especial um jogo de cartas. Com este super coringa nas mãos, Spielberg não fez por menos para acrescentar ainda mais respeitabilidade ao seu novo filme, escalando Daniel Day-Lewis para o papel do Presidente, um ícone das artes para interpretar um ícone da política. Um sucesso já garantido de antemão, e comprovado nas telas. Alguns puristas reclamaram de um inglês interpretar um americano tão emblemático (reclamação antiga e recorrente, egressa desde a inglesa Vivien Leigh interpretar o cobiçado papel da sulista Scarlett O’Hara em ...E o vento levou). Mas, de novo, isso foi muito adequado. Os americanos enxergam Lincoln quase como membro de um realeza, com o mesmo porte que uma Rainha Elizabeth I ou um Lord Nelson detém na Inglaterra. Logo, acaba nada destoando que um inglês atue num papel deste porte, pois esse tipo de coisa eles fazem com um pé nas costas. Ainda mais um ator do porte de Daniel Day-Lewis, estimadíssimo no mundo inteiro, filho de poeta e neto de Michael Balcon (produtor lendário na Inglaterra em sua época, e quase que um patrono para Alfred Hitchcock). Sua interpretação praticamente valida o filme, um escorregão neste quesito seria fatal. Ele de fato incorpora muito bem o jeito resoluto, quieto, contador de histórias, quase enrolador de Lincoln, um homem que ninguém punha muita fé em um primeiro momento, mas que aos poucos ia conquistando o seu público, e fazendo valer suas ideias. Daniel Day-Lewis teve o mérito de entender isso e não tentar criar “momentos grandiosos” para seu personagem, e sim mostrar como o estilo “devagar e sempre” de Lincoln, suave mas decidido, ia ganhando adesões e desarmando espíritos, sem ele precisar abrir mão de suas convicções para isso (e sem ignorar, também, o toma-lá-dá-cá eterno da política, existente e inescapável em qualquer país e em qualquer época).

Daniel Day-Lewis é boa parte da razão de ser do filme, mas ele não está sozinho. Sally Field também teve seu lado “Lincoln”, já que em tese era uma baixinha de voz fina que ninguém botava fé, que surgiu ainda por cima numa série de TV como A noviça voadora. Mas ela logo largou a batina e alçou grandes voos, ganhando dois Oscars no processo (Norma Rae e Um lugar no coração), com uma garra que surpreendia público e crítica. E ela usa toda essa fibra no papel da esposa de Lincoln, Mary Todd, que inferniza sua vida com reclamações mil, e ameaças caso o filho mais velho deles tenha que servir na Guerra. Spielberg e o roteirista Tony Kushner (de Munique, o último grande filme de Spielberg até Lincoln, e criador também da peça Angels in America, de grande sucesso nos teatros e na TV) souberam mostrar o quanto o casal era infeliz e de como, no fundo, a vida de Lincoln era sofrida, e o quanto ele conseguia sucesso justamente por saber lidar com as constantes frustrações de sua vida. Tommy Lee Jones também traz brilhantismo ao filme, como Thaddeus Stevens, um abolicionista que faz o possível para ver sua causa finalmente vencer. Estes três atores foram indicados ao Oscar, com muita justiça. Mas o resto do elenco também é valoroso, e merece distinção, como David Strathairn (William Seward, grande companheiro de Lincoln), Joseph Gordon-Levitt (como Robert, o filho mais velho de Lincoln, que se envergonha por não servir no Exército, a pedido de seu pai), e mais James Spader, Hal Holbrook, John Hawkes e Jackie Earle Haley, dentre outros. Um elenco deste peso já demonstra, por si só, a importância do filme e do personagem retratado.

O que, porém, pode causar certa decepção no público é que Lincoln, apesar deste nome, não é exatamente uma biografia do Presidente americano. O que se vê é um recorte de um período de sua vida, no caso toda a luta pela abolição da escravatura americana, através da aprovação da 13ª Emenda na Constituição, e a árdua luta em fazê-la ser aprovada no Congresso. É o período mais importante de sua vida, claro, até por também ser o mesmo de boa parte da Guerra Civil (também deixada em um certo segundo plano, apesar de evidentemente estar misturada à questão principal), mas sente-se falta de cenas que tratassem de como aquele homem se formou. Talvez fosse interessante mostrar também outros aspectos de sua vida que foram menos registrados pela letra fria da História (como o filme faz, com brilhantismo, em relação a seu malsucedido casamento). Há um certo romanceamento, e uma simplificação, quase inevitáveis de todo o processo abolicionista (seria mesmo impossível tratar de tudo em apenas a duração de um filme), e o papel dos negros em acabar com ela parece por demais passivo (salvo as reclamações de dois soldados negros na cena inicial), o que talvez seja o maior pecado do filme (assim como no Brasil após a Guerra do Paraguai, os ianques logo viram que não dava para tornar soldados, que foram fundamentais em uma guerra decisiva, em escravos novamente. O status deles tinha se alterado, e ainda por cima muitos continuaram armados, e não aceitariam de bom grado voltarem a ser meramente escravos). Em compensação, é curioso ver como a História muda, pois o filme demonstra (acertadamente) que em 1861-65 os abolicionistas eram os do Partido Republicano, e os políticos Democratas eram reacionários e eminentemente escravocratas. Com o tempo, os partidos mudaram totalmente de perspectiva, quase que “trocando de lado”, com os Republicanos se tornando mais conservadores, e os Democratas, mais liberais.  

De qualquer forma, com erros e acertos, dentro a que se propõe o filme tem um inegável sucesso, demonstrando a dificuldade que foi dar a injeção definitiva para acabar com o câncer da escravidão americana (câncer este que ainda apresenta sequelas, mesmo 150 anos depois), em um ritmo envolvente, mesmo sendo um filme de muitos diálogos, que poderia cansar o público. Mas Spielberg bebe na fonte de outros diretores clássicos como Frank Capra e William Wyler há um bom tempo, e sabe conduzir a trama com competência e um ótimo embalo, evitando com que fique aborrecida. E, assim, atinge seu objetivo final, que é lembrar a História e torná-la fascinante para o público moderno, algo sempre difícil de conseguir. Sem, claro, abrir mão de certa reverência para com o personagem principal do filme. O filme Lincoln exala respeitabilidade e patriotismo, a ponto de deixar um americano praticamente em lágrimas e saudando a bandeira. Para os espectadores do resto do mundo, todavia, deve-se  ressaltar que boa parte do fascínio permanece, por um homem que mais escutava do que falava, mas que quando se expressava atraía a atenção, e os corações, de todos. Políticos são eleitos a todo o momento. Mas políticos de verdade, como Abraham Lincoln, merecem mesmo serem lembrados, e como seria bom que estes poucos e valorosos homens e mulheres recebessem o tratamento de luxo que Spielberg, juntamente sua talentosa equipe e o renomado elenco, dispensaram a este ícone americano. 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Amor (Amour - 2012)




Amor é um filme duro, seco, servido sem gelo ou limão, sobre perdas, tanto de um passado como de qualquer perspectiva de um futuro. E os três personagens principais desta tragédia mundana (que pode chegar a qualquer um de nós), Michael Haneke, Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, fazem parte dela, tanto em suas profissões e carreiras de diretor e atores, como em suas próprias vidas. O passado dessas pessoas e personagens reverbera na trama, lhe acrescentando riqueza e complexidade, por si só.

Além do título, este filme pode de fato ser o mais romântico de Michael Haneke. Mas não que com isso se espere beijos, abraços e música melosa ao fundo. É um romantismo Hanekeano, ou seja, por um filme apenas ele parece segurar seu não muito oculto desprezo e incompreensão pelos integrantes de uma vida burguesa, de cidade grande. Dessa vez, nota-se uma certa compaixão de Haneke pelo casal principal de idosos, que tem que lidar com a doença degenerativa de Anne, esposa de Georges (ambos nomes de personagens que se repetem na filmografia de Haneke, com leves variações). Com certeza ajudou que o diretor tenha visto de perto um caso semelhante em sua família, e que tenha tentado recriar, de certa forma, o apartamento de seus pais no filme, que é inclusive muito confinado, pois raramente a câmera abandona este ambiente, retratando assim ainda mais o isolamento do casal. De novo, porém, é bom ressaltar que, mesmo mais diretamente envolvido na trama, Haneke não consegue fugir muito de si mesmo, dirigindo esta história sem sentimentalismos. Amor é um filme que deixa o espectador triste, inevitavelmente, e pensativo sobre o fim inevitável de uma vida, mas não é um filme que necessariamente exija o pranto dos espectadores. É tudo conduzido de forma lenta, gradual e crua, como Haneke sempre soube fazer, com seus longos planos estáticos (apesar de neste filme ele não abusar disso). Não há nenhuma glamourização. É a miséria humana exposta sem filtros, e sem nenhuma comédia para atenuá-la. Vire o rosto quem quiser virar, mas Haneke não foge ao lado feio e triste da vida.

O casal de atores é fundamental para que Amor funcione, e talvez só A professora de piano e Caché, dos filmes anteriores do diretor, dependessem tanto dos atores. Haneke, inclusive, deixou bem claro que nem faria o filme se Jean-Louis Trintignant não aceitasse fazê-lo, tendo sempre sido um admirador do estilo do ator. Trintignant acredita que os melhores atores do mundo são os que sentem muito e expressam pouco. E é exatamente isso que ele faz no filme, suportando com a dignidade possível a derrocada de sua esposa, sem grandes prantos, e tentando ao máximo não demonstrar o quieto desespero de sua situação, ao ver sua mulher se apagar diante de si, e com isso o estilo de vida que levavam, de um amor às artes (são professores de música) que não pode mais ser desfrutado da forma mais apropriada. Quando uma pessoa não pode mais curtir suas maiores paixões, a vida perde quase todo o sentido, e nota-se isso nos olhares de Riva e Trintignant. Chega a ser até sofrido ouvir alguma bela obra, ou saber do futuro de um pianista que tenha sido aluno deles. É muito duro ver o futuro promissor dos outros, e saber que não resta nenhum a você, é o que Haneke parece dizer. Trintignant, décadas antes, ficara famoso, dentre muitos outros filmes, por seu papel em Um homem, uma mulher, de Claude Lelouch, ao lado de Anouk Aimée. Um filme leve como poucos, com trilha de Bossa Nova, onde o romance de um homem e uma mulher típicos (quase simbólicos de seus respectivos sexos) embalou o mundo. A comparação de seu papel no filme de Lelouch, de seu sorriso dirigindo um carro em alta velocidade, em contraste com sua decadência física e a dor de seus olhos, por ver uma decadência ainda mais acentuada de sua esposa em Amor, é de cortar o coração de qualquer cinéfilo, e acrescenta tristeza ao filme. Não são dois atores quaisquer em cena. São dois atores com história.

Emmanuelle Riva, por sua parte, conquistou o mundo com seu papel em Hiroshima, mon amour, no distante 1959, mas após cinquenta anos teve que conquistar também Michael Haneke, participando de testes para o filme, algo que muitas atrizes de sua idade e currículo não aceitariam fazer. No clássico filme de Alain Resnais, ela sequer é nomeada, e se envolve com Eiji Okada (também não nomeado no filme), em uma trama onde o casal também acaba sendo representativo de seus gêneros, e o senso de memória é fundamental, fascina ali a sua personagem e ao mesmo tempo persegue todos que passaram pelo drama da Segunda Guerra Mundial, que no fundo querem se esquecer de tudo aquilo. E memória é exatamente o que a personagem de Riva começa a perder lentamente em Amor. A ponto de, aos poucos, começar a perder a sua própria identidade. A câmera de Haneke segue implacável em mostrar como a personagem Anne, claramente uma intelectual de grande personalidade e carisma, vai se apagando, se dirigindo a um nada completo. Assistir a isto é ver a perda completa de um ser humano, que com o tempo se torna uma mera lembrança na mente dos que ficam.

E aí entra em cena Isabelle Huppert. Seu papel dessa vez é muito mais discreto do que em A professora de piano, onde assombrou o mundo com sua interpretação vulcânica. Aqui ela é a filha egoísta, mas também isolada, do casal. Parece sempre estar fora de tom com o casal, nunca conseguindo ser aceita, e não parece ser algo que brotou apenas da doença de sua mãe. A sintonia do casal não se estende à filha, e não parece ser apenas culpa dela, apesar de seu egoísmo, e de chegar a discutir negócios quando sua mãe não tem mais condição nenhuma de responder ou sequer entender o que ela está falando. Suas visitas parecem mais incomodar do que confortar, e isso vale para todos os envolvidos. Amor, com seu jeito resoluto, abarca inclusive isso, o amor que incomoda, de amigos e parentes, que machuca tanto quem está em seu fim, por não querer ser visto no ápice de sua limitação física, assim como quem vislumbra de perto o lento apagar da pessoa amada.

Sem misericórdia aos personagens, e por extensão ao público, Michael Haneke conduz esta história a um final envolvente e simbólico, já prenunciado logo na primeira cena do filme, mas exposto com um pouco mais de lirismo ao final. Talvez até Michael Haneke precisasse de um pouco de lirismo, um mínimo que fosse para tornar o filme um pouco mais palatável. Uma breve e sutil concessão às agruras da vida, da qual ninguém escapa um dia de ver ou até mesmo de sentir na própria pele. Lirismo que também se voltou para o diretor e os atores, com o filme sendo premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 2012 (e que só não teve os dois atores premiados porque o regulamento de Cannes proibia outro prêmio para o vencedor da Palma de Ouro, para grande irritação de Nanni Moretti, então Presidente do Júri). Os três foram juntos convidados a receber o prêmio, algo inusitado na história de Cannes, e um símbolo de como o filme é visto como uma parceria indissociável dos três artistas. Posteriormente, Emmanuelle Riva teria a honra de se tornar a mais idosa a concorrer ao Oscar de melhor atriz, com 85 anos. Se este filme, e a vida de todos nós, termina inevitavelmente numa nota triste, ao menos a arte neste caso permitiu alguns bons momentos, e um senso de realização para os envolvidos. E com envolvidos, leia-se diretor, atores e, porque não, público. Goste-se ou não do filme Amor, todos estamos envolvidos no drama da vida, e no seu triste escoar. Alguns fogem, muitos viram a cara, e outros encaram de frente (Haneke, claro, faz parte destes últimos). Não importa, o fim chega de qualquer modo, e quando rolam os créditos, só resta a quem assiste se levantar e ir embora, lamentando o fim de uma bela obra. The end, mon amour.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Além das montanhas (Dupa dealuri – 2012)




Em 2007, Cristian Mungiu marcou o Cinema da Romênia ganhando a Palma de ouro em Cannes com o excelente filme 4 meses, 3 semanas e 2 dias. Com Além das montanhas, ele volta a tratar de um tema polêmico no país (antes o aborto ilegal, agora a Igreja ortodoxa), focado de novo em duas amigas que tem uma relação de amizade íntima e ao mesmo tempo tensa, e que veem um homem forte e decidido se interpor entre elas (no filme anterior, um médico clandestino, e neste um padre rígido). Em relação a Cannes, o raio não chegou a cair no mesmo lugar, mas chegou perto, levando os prêmios de 2012 de roteiro para Mungiu, e de atriz para duas estreantes no Cinema, Cristina Flutur (que interpreta Alina, e já tinha uma boa experiência no teatro romeno) e Cosmina Stratan (a Voichita do filme, com mais experiência em curtas).
                     
Em relação ao filme em si, porém, o raio caiu um pouco mais longe. Apesar dessas semelhanças entre os dois longas mais recentes de Mungiu, é claro que Além das montanhas tem sua originalidade, tratando de uma adaptação livre de um caso que causou furor no país, relacionado a uma tentativa de exorcismo praticado por uma seita católica ortodoxa (que ganhou projeção nacional ao ser escrito por Tatiana Niculescu Bran, jornalista da BBC na Romênia na época). Mas o impacto de Além das montanhas não chega nem perto do de 4 meses, 3 semanas e 2 dias, apesar do filme ter seus méritos. Mungiu preferiu se ater mais à estranha relação entre as duas personagens principais, que conviveram por muito tempo em um orfanato e que parecem ter tido alguma relação afetiva neste período, e à tensa convivência delas dentro deste monastério rigoroso.  Alina regressa da Alemanha, e tenta resgatar Voichita deste estranho lugar, mas logo descobre que Voichita parece bem adaptada ao local, sob o jugo de um padre de forte liderança. A situação é bem mais complicada do que Alina pensara a princípio, pois Voichita ama Deus, e repudia os avanços de Alina, ao mesmo tempo em que quer que sua amiga fique perto de si, até para ajudá-la a ter paz e a se reencontrar com Deus. Alina resiste o quanto pode, mas também não quer abandonar a única pessoa que ama no mundo. Nesta difícil situação, em que ninguém quer ceder, e também ninguém desiste, o próprio padre, junto com as outras freiras, fica também em situação difícil, pois repudia Alina, não a enxerga como pertencente àquele meio (com razão), mas não consegue se livrar dela, pois sempre Voichita aparece com mais súplicas para que sua amiga continue ali, por não ter onde ficar. O espectador vê o muro chegando perto, e nenhum personagem parece capaz de frear o carro. O desastre parece iminente.

O maior problema de Além das montanhas, porém, é que Mungiu estica por demais o filme, tornando o miolo deste um pouco repetitivo. A tensão sim cresce, mas em doses homeopáticas, tirando um pouco do impacto de um começo muito interessante, e de um final também marcante. Enquanto em 4 meses, 3 semanas e 2 dias a tensão era crescente e, por vezes, praticamente insuportável, neste filme aqui o diretor e roteirista afrouxa um pouco a tensão, e dá a impressão dos 150 minutos do filme serem desnecessários (provavelmente, seria um filme melhor com apenas duas horas). Em compensação, ele demonstra uma grande maturidade ao não demonizar aquela seita, não criar “vilões” automáticos para o filme (segundo o diretor, seguindo até a linha do texto de Tatiana Niculescu Bran). O padre e as freiras do monastério são rígidos, evidentemente, mas não desumanos ou estúpidos. Dentro de suas filosofias, tentam fazer sua parte, e ajudar Alina e Voichita dentro do possível. Não tentam converter Alina à força, apesar de deixarem claro que não aprovam a sua conduta, que é mesmo agressiva frente a seus credos. Além das montanhas não é um filme que demonize a religião ou seus seguidores, mesmo os mais ortodoxos dentre eles. O que não quer dizer que Mungiu não saiba criar boas cenas explorando a pouca fé e o comportamento anárquico e agressivo de Alina, em contraste com um ambiente tão austero, sem energia elétrica, e onde as freiras tem que pegar água de um poço. Uma cena, ao mesmo tempo triste e hilariante, mostra as freiras lendo para Alina uma lista enorme de pecados, onde ela tem que anotar em um caderninho quais ela cometeu. O que começa divertido para as freiras, logo vai se tornando aflitivo para elas, ao verem que Alina marca quase tudo, e a freira que lê os pecados apressa a leitura, para acabar logo com isso, enquanto Alina esconde um pouco o caderno, para que as freiras não vejam mais o que está marcando ou não.

As atuações são, de fato, de alto nível. As vencedoras do prêmio em Cannes, um raro caso em 2 atrizes do mesmo filme levarem o prêmio, estão muito bem, ressaltando o amor entre elas, e a difícil situação em que se encontram. Cristina Flutur está até um pouco acima da companheira, até por seu papel ser um pouco mais rico, tentando desafiar tudo aquilo, e sentindo ciúmes da amiga em relação ao padre e a Deus. Mas Cosmina Stratan também está ótima, tentando fazer com que nem o veado morra e nem a onça passe fome, ou seja, quer manter Alina em um ambiente em que ninguém quer que ela conviva (nem a própria Alina), sem cogitar abandonar o monastério junto com a amiga. Mas o padre, brilhantemente atuado por Valeriu Andriuta, também é fundamental. Cristian Mungiu teve que buscar Andriuta na Irlanda, pois ele tinha abandonado já o Cinema. Mas Mungiu se lembrou de seu companheiro, que atuou em seus curtas (inclusive os de faculdade), assim como em seu primeiro longa (Occident), e fez questão de sua presença no filme. Valeu a pena o esforço. Andriuta paira sobre o filme, sente-se sua presença mesmo quando não está em cena. Consegue aliar firmeza com um certo equilíbrio, demonstrando sensatez ao ver que sua filosofia de vida não é para todos, e até certa constrição ao ver as agressões de Alina.

Como era de se esperar, mesmo assim Mungiu recebeu críticas de religiosos em seu país. Talvez fosse inevitável, pelo tema polêmico, inclusive. E também porque em Além das montanhas o diretor expõe como alguns médicos e policiais desprezam os religiosos ortodoxos, fazendo pouco caso deles, de seus hábitos e crenças. Mas Mungiu não tem medo de botar a mão no vespeiro, e tem mostrado que sabe lidar com temas fortes, sem forçar demais a mão para um lado ou para o outro. Tudo filmado de forma barata, focado em bons atores, em um ambiente austero, e sem grandes malabarismos de câmera. Com um pouco mais de agilidade no ritmo deste filme, teria feito um outro clássico. Mesmo errando um pouco na medida dessa vez, Cristian Mungiu vai se estabelecendo como um diretor cada vez mais renomado, que sabe vencer o mundo falando dos problemas e conflitos de sua aldeia. 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A viagem (Cloud Atlas – 2012)




Tanto os irmãos Wachowski (com Matrix) como o alemão Tom Tykwer (com Corra, Lola, corra) ajudaram a modernizar os thrillers do fim dos anos 90, e não surpreende que se entendam bem, a ponto de trabalharem juntos em todo o longo processo de A viagem. Tudo começou em 2005, com Natalie Portman mostrando o livro de David Mitchell que lia nos sets de filmagens de V de vingança (dirigido por James McTeigue, mas com roteiro dos Wachowskis) para Lana Wachowski (que antes era Larry, que fez operação para mudança de sexo). Natalie criou a fagulha que os fez querer adaptar um livro em tese “infilmável”, e deveria ter atuado no filme, mas sua súbita gravidez impediu isso. Tom Hanks também foi importante, por motivar o trio de diretores o tempo todo, não deixando o (caro) projeto ir para o brejo (como tantas vezes ameaçou ir). Ações em tese pequenas, de indivíduos, que ajudaram a tornar um filme ambicioso como este uma realidade.

A viagem lida, entre muitas outras coisas (bota muitas nisso), exatamente com uma certa conectividade entre eventos a princípio nada conectados. A sua complexa trama (na sua forma, não no seu conteúdo) abarca seis subtramas, de diferentes épocas, desde o Século XIX até um futuro distante. E, famosamente, faz isto com um conjunto de atores que interpretam, cada um, diversos personagens nas mais diferentes épocas e situações. Se a maquiagem não acerta 100% das vezes (alguns personagens ficaram falsos, deve-se ressaltar), ela chega perto disso em um projeto absurdamente desafiante, a ponto de em algumas situações os atores famosos estarem irreconhecíveis. Assim sendo, Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving e Jim Sturgess estão presentes em cada uma das 6 tramas (mesmo que com cor de pele ou até mesmo sexo diferente), e Jim Broadbent, Hugh Grant, Susan Sarandon, James D’Arcy, Ben Whishaw e Doona Bae, entre outros, atuam na maioria das histórias apresentadas. Este artifício, brilhante em termos de marketing, atrai uma tremenda atenção para o filme, lhe concedendo um charme extra, além de ajudar a realçar o contexto de vidas passadas que o filme apresenta em seu cerne. Entretanto, por vezes o tiro sai pela culatra, pois pode perfeitamente também distrair o público, que pode ficar mais preocupado em “achar” os atores no filme do que em imergir na trama. Os próprios atores acabam ficando um pouco eclipsados por esta multiplicação de atuações, tendo sempre pouco tempo para desenvolverem melhor seus personagens. Este não é um filme de grandes atuações, apesar de nenhum ator destoar.

Os diretores dividiram o filme em dois blocos, com os irmãos Wachowski ficando com os extremos temporais, isto é, a história do passado mais remoto, assim as duas justamente passadas no futuro, enquanto Tykwer encarou os enredos mais “contemporâneos” (forçando uma barra, claro, pois um deles é da década de 30). Uma divisão que reservou aos Wachowski partes mais focadas em ação, e Tykwer lidando mais diretamente com o drama, o que talvez tenha sido a decisão mais acertada, de fato, dentro das especialidades de cada um (é bom lembrar que Tykwer dirigiu o belo Paraíso, adaptado de um roteiro do falecido Krzysztof Kieslowski). A divisão foi tão completa, que até as equipes técnicas eram diferentes, com apenas os atores em comum entre eles. A chance de desastre era grande, mas o trabalho entre eles foi afinado, não resultando, de forma alguma, em um filme errático e irregular. A viagem impressiona pelo ótimo ritmo, conseguindo que um filme de quase três horas, com diversos saltos temporais, não fique chato, ou difícil demais para o público entender. O filme exige, claro, atenção do espectador, mas não uma que o deixe tenso ou aflito para não perder nenhum mínimo detalhe. É um filme razoavelmente fácil de acompanhar, apesar de, evidentemente, no começo o espectador ficar um pouco perdido. Em pouco tempo, porém, o público tende a se acostumar com o andar das coisas, e a aproveitar a bela viagem.

Este é um filme que engloba temas caros aos irmãos Wachowski, que são a luta pela verdade dentro de um sistema, assim como a resistência dos oprimidos, mesmo frente a prognósticos muito adversos. O filme tem um eco claro de Matrix e V de vingança, e também evoca explicitamente No mundo de 2020 (a ponto de inclusive se utilizar de seu diálogo mais famoso), assim como também ao próprio Intolerância, de Griffith, feito quase cem anos antes, mas que também era um filme muito ambicioso, com tramas diferentes (inclusive no tempo) interligadas por um tema comum. Mas isto não muda o fato de A viagem ser bastante original. Aos que reclamam da enxurrada de refilmagens e continuações no Cinema comercial atual, a viagem é com o se fosse uma chuva no deserto, um filme bastante criativo e feito para impressionar por sua grandiloquência, com maquiagem, efeitos especiais, fotografia, trilha sonora (esta com participação de Tom Tykwer) e direção de arte de primeiro nível. Além disso, tem um escopo enorme, tentando analisar o que move as relações humanas, abarcando piedade, compaixão, desprezo, preconceitos, indiferença, conservadorismo, rebeldia, misticismo, fé, etc. É um filme com um claro viés político, por debaixo de toda a questão de vidas passadas, que tenta demonstrar que quem está por cima da carne seca em uma vida, agindo implacavelmente, no futuro poderia estar comendo o pão que o diabo amassou, dependendo exatamente da compaixão que negara no passado.

Alguns filmes são belos por serem pequenos, terem objetivos muito modestos, e merecem aplausos por isso. Mas filmes como A viagem também merecem encorajamento justamente por apostarem muito alto, por terem uma ambição rara de se ver, quase insana. A viagem não quer só participar das Olimpíadas. Quer ganhar a medalha de ouro e trucidar o recorde mundial. Se consegue isso, depende de cada espectador, e as reações ao filme tem sido praticamente na linha “ame ou odeie”. Mas uma coisa ele com certeza conseguiu: Não é só “apenas mais um filme”, não é daqueles que são quase imediatamente esquecidos. E isso é um feito, em uma época de uma avalanche cultural incrível, onde os filmes logo são suplantados por outros, sem ter o mínimo tempo de se afirmar, como acontecia num passado não muito distante. A viagem é um show, um exemplo claro do que se chamava de “cinemão” americano (apesar do filme ser mais alemão que americano, devido a seu financiamento e produção). Uma espécie de “pague 1 e leve 6”, com o espectador assistindo vários filmes em um só, vendo alternadamente um pouco de ficção-científica, filme de época e épico, estrelado por vários atores famosos “multiplicados” pela maquiagem, em uma trama que lida com uma salada de emoções e sentimentos, calcados numa filosofia razoavelmente simples, acessível a todos os públicos. Quem tiver o espírito aberto para embarcar nesta insólita viagem, tem tudo para curtir bastante. E quem sabe até pode querer viajar outras vezes.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Detona Ralph (Wreck-it Ralph – 2012)




Com Detona Ralph, a Disney dessa vez se debruça sobre o universo dos antigos fliperamas, assunto esse que tem tudo para agradar à geração que gastava mesadas quase inteiras em fichinhas de jogos como Pac-Man e Donkey Kong. O que não quer dizer que as crianças de 2012 fiquem de fora da festa (até porque a Disney não seria burra de fazer isso), pois o filme faz uma divertida mistura de jogos antigos com modernos (focando mais nos de fliperama, jogos de console ficaram praticamente de fora), com personagens díspares convivendo entre si. Detona Ralph, com direção de Rich Moore (que dirigiu diversos episódios das séries clássicas de animação Os Simpsons e Futurama), lida com personagens de um jogo muito simples em que Ralph (John C. Reilly) quer destruir um prédio, e tem seus planos sempre frustrados por Conserta Felix Jr. (Fix-it Felix Jr. no original, com voz de Jack McBrayer), que aparece com seu martelinho mágico, que tenta restaurar toda a destruição de Ralph. Mas Ralph, com o tempo, se cansa de ser sempre o vilão e de não ser respeitado, e parte em busca de uma mísera medalha que seja (já que Felix ganha uma toda hora, em seu jogo), nem que para isso tenha que invadir o mundo de outros jogos.

A premissa básica é muito interessante, e rende boas piadas, principalmente na relação entre os personagens famosos de jogos, que mostram suas facetas quando os jogos acabam. O filme lembra bastante a trilogia de Toy Story neste sentido, pois é quando os personagens não estão sendo observados por humanos, que eles podem revelar seus reais anseios e angústias (em algumas cenas muito divertidas, por sinal). Outro filme que logo salta aos olhos é Uma cilada para Roger Rabbit, que contava com “figurações” de vários personagens de animação famosos, circulando em volta dos que foram criados apenas para o filme. Em Detona Ralph vemos presenças rápidas de Q-bert, do fantasma de Pac-Man, de Ryu e Zangief (Street Fighter), Bowser, Sonic e Dr. Eggman, dentre muitos outros, contracenando com os duplamente fictícios Ralph e Felix. Detona Ralph é hilariante e mágico quando lida com estas questões, até por mostrar a diferença de jogos antigos e modernos, a ponto de Felix ficar impressionado com a ótima definição de uma personagem de um jogo de guerra (no original com voz de Jane Lynch, a vilã da série Glee).  

O filme só parte para um certo conservadorismo quando Ralph entra em um jogo que se assemelha muito aos de Mario Kart e Sonic All-Star Racing (assim como o de Felix  e Ralph lembra muito o de Donkey Kong), onde conhece Vanellope (voz de Sarah Silverman), que tem “defeitos” que se assemelham aos tilts tão detestados prelos jogadores. Apesar da relação entre eles ser interessante, e do filme lidar, mesmo que tangencialmente, com temas como rejeição, velhice o obsolescência, o fato é que o filme entra em uma certa fórmula, já muito seguida em outros filmes, que tira parte do fascínio criado pelo começo do filme. Detona Ralph, com todos os seus méritos (e são muitos), deixa a sensação de que poderia ter ido um pouco mais longe, ter brincado mais com o universo dos games, ter confiado mais no seu taco e criar uma trama mais original em sua segunda metade.

De qualquer forma, como está, é um filme especial para os saudosos amantes de fliperamas, assim como para a geração que se debruça sobre Ipads, celulares e Playstations mundo afora. Os jogos mudaram muito dos anos 80 para cá (quem jogou Pong sabe disso muito bem...), mas o fascínio que eles provocam em quem os joga continua o mesmo. Para desespero de muitos pais que torcem o nariz para eles, mas que podem, porém, dessa vez interagir com os filhos enquanto assistem com eles a Detona Ralph. A Disney nunca jogou para perder, e continua fazendo sucesso mesmo após 80 anos. Seu game nunca está over. É só comprar mais uma ficha, ou um ingresso de Cinema, que ela continua entretendo a todos os públicos, com a competência habitual.