A maioria dos filmes de época
capricha na direção de arte e nos figurinos, mas a volta no passado se resume a
isso. Todo o resto é moderno, incluindo a direção e o modo de se comportar dos
atores, que nos dão a impressão que voltam a seus computadores e celulares assim
que o diretor grita “Corta!”. Em muitos casos, deve-se ressaltar, isso é
proposital, para fazer o espectador assimilar melhor o conteúdo, sem lhe causar
nenhuma estranheza ver pessoas se comportando de forma tão estranha ao que está
acostumado a ver no dia-a-dia. Raúl Ruiz foge de tudo isso em Mistérios de
Lisboa, seu projeto de mais de quatros horas e meia que aborda o (também
enorme) romance homônimo de Camilo Castelo Branco. Fazendo uso o tempo todo de
planos longos, sem o uso de closes, e de uma câmera que sempre se move devagar
e elegantemente pelos cenários (quase como se bisbilhotasse os personagens), a sensação de volta no tempo é completa. Um diretor com base muito literária como Ruiz se
casou perfeitamente com o projeto, tornando o resultado muito orgânico, ao
contrário do que provavelmente faria um diretor egresso de videoclipes, por
exemplo (que entupiria o filme de câmera nervosa e um milhão de cortes, e
consequentemente o modernizaria). Com uma mão muito segura, apesar de sua frágil
saúde (passou inclusive por uma cirurgia durante o projeto, pois sofria de
câncer no fígado, que o vitimou em 2011), Ruiz nos deixa, com este filme, uma
bela e sofrida herança cinematográfica (pensar que estava perto da morte ao
filmar Mistérios de Lisboa aumentou sua dramaticidade, conforme declarou em
entrevistas).
Os atores também nos ajudam muito
a voltar ao Século XIX em Portugal, principalmente Adriano Luz (Padre Diniz),
Maria João Bastos (Àngela de Lima), Ricardo Pereira (Alberto de Magalhães), Clotilde
Hesme (Elisa de Monfort) e Rui Morrison (Marquês de Montezelos). Suas
performances quietas, resolutas (com a exceção de Ricardo Pereira, que causa
faíscas na trama), nos transportam a um outro tempo, onde se apressar era
considerado indigno de um aristocrata, ser filho bastardo era uma inglória
inescapável, não ser o primogênito definia o seu destino, e duelos resolviam
questões de honra. A trama é labiríntica, e o que começa com um menino, chamado
apenas de João, procurando por seus pais e sendo ajudado por Padre Diniz, acaba
desembocando em diversas outras tramas que nascem umas das outras, com
personagens que inclusive adotam múltiplas personalidades, e tudo isso demanda
muita atenção do espectador, para não se perder. Com algumas imagens oníricas,
Raúl Ruiz reforça o romantismo de uma época, sendo ajudado pelo roteiro de
Carlos Saboga, a trilha de Jorge Arriagada (chileno como o diretor, e parceiro de
sua carreira desde o começo) e principalmente pela sensacional fotografia de
André Szankowski (brasileiro de nascimento, mas que constrói sua carreira em
Portugal). A fotografia evoca quadros da época, e cada frame é de uma poesia
irretocável. É das melhores fotografias dos últimos tempos, até por se casar
com o estilo do filme à perfeição.
Mistérios de Lisboa é um belo
filme, que conquista os cinéfilos, os apaixonados por literatura
(principalmente de grandes romances antigos), e igualmente os interessados
pelas tradições e costumes do Século XIX. Devido ao ritmo lento do filme e à
sua metragem, porém, é inegável que o público-alvo dele é restrito (poucos têm
disposição para ver um filme de mais de quatro horas, e ainda mais um filme
lento). Talvez até ajude vê-lo como se fosse uma minissérie mesmo, aos poucos
(inclusive existe a versão para a TV portuguesa, de quase seis horas, mas Raúl Ruiz
prefere a cinematográfica), para evitar um cansaço que prejudique o prazer do espectador.
Principalmente levando-se em conta que Camilo Castelo Branco o escreveu assim,
sendo publicado periodicamente no Diário portuense O Nacional, em 1854. Isso numa
época em que romances deste quilate eram publicados diariamente em jornais para
atrair o público, que os comprava majoritariamente por causa desses romances de
escritores famosos, e não para ler notícias. O mundo avançou demais desde 1854,
mas obviamente não em tudo.