Em 1998 Thomas Vinterberg causou
furor em Cannes, e posteriormente no mundo inteiro, ao apresentar seu já
clássico Festa de família, feito seguindo fielmente as regras rígidas do
movimento Dogma 95, cujos maiores expoentes eram ele e Lars Von Trier. Neste
filme havia uma tentativa de um dos filhos de um patriarca expor o abuso sexual
que sofrera em suas mãos na infância, e a tentativa de todos da família de acobertar
tudo o que aconteceu, tentando ao máximo calar a boca do filho rebelde. Em A
caça, Thomas Vinterberg mostra que já superou a fase de radicalização do Dogma
95, mas que continua sendo um cineasta muito contundente (como poucos,
inclusive), em um cinema muito realista e detalhista, trabalhando com primor
uma trama (elaborada por ele e pelo roteirista Tobias Lindholm) onde
curiosamente vemos uma cidade inteira acusando um homem de ter abusado
sexualmente de crianças, enquanto o espectador sabe que ele é inocente e que
nada aconteceu. Uma situação inversa, mas talvez ainda mais impactante.
O personagem central é Lucas
(Mads Mikkelsen), um modesto professor de jardim de infância de uma cidade
pequena da Dinamarca, que começa a ver sua vida engrenar e já até cogita
conseguir fazer com que seu filho more com ele, e não com a ex-esposa. Tem
vários amigos na cidade, e é muito querido pelos alunos, principalmente por
Klara (Annika Wedderkopp), filha de Theo (Thomas Bo Larsen, que atuara também
em Festa de família, além de em outros filmes do diretor), o maior amigo de
Lucas. Infelizmente, a menina se confunde toda em sua inocência e em seu amor
infantil por Lucas, e é o estopim de um desastre na carreira e na vida íntima
deste pobre professor. Assim como acontecera em Festa de família, Vinterberg
não só põe o dedo, como abre a ferida com tudo e expõe as vísceras da histeria
coletiva de uma cidade que acredita piamente no ditado “onde há fumaça, há fogo”.
O filme tem alguma semelhança com a peça “The children’s hour”, de Lillian
Hellman, adaptada para o Cinema com o título de Infâmia em 1937 e 1961 (a
versão mais famosa, com Audrey Hepburn e Shirley MacLaine), onde boatos e
maledicências destroem reputações, e adultos talvez até mais infantis que as
crianças se recusam a aceitar a hipótese de que elas poderiam estar mentindo ou
inventando tudo. Mas claro que Vinterberg vai mais longe em 2012, sem a censura
a atrapalhá-lo, e também com o bom-senso de não apelar para cenas de caráter
duvidoso. Ele trabalha a tensão como ninguém, e o ritmo do filme é impecável,
de deixar o espectador grudado na cadeira e suando frio. A caça perdeu a Palma
de Ouro em Cannes para Amor, de Michael Haneke, e a indicação dinamarquesa ao
Oscar de filme estrangeiro para O amante da rainha (curiosamente, outro filme
estrelado por Mads Mikkelsen), ambos ótimos filmes, mas que podem perfeitamente
serem considerados inferiores a este A caça.
Um que foi premiado em Cannes, porém,
foi Mads Mikkelsen. Um ator na crista da onda, fazendo um filme bom atrás do
outro, e com uma persona cinematográfica mais reconhecida como de durão (foi
até vilão de um filme de James Bond, no caso 007 – Cassino Royale), em A caça
ele possivelmente teve a melhor atuação de sua carreira, em um papel onde alia
resistência e vulnerabilidade. Um dos maiores atores do Cinema atual (recebe
destaque desde o também notável Depois do casamento, de 2006), ele dá um show
no filme, valorizando ainda mais os ótimos roteiro e direção. Ele é um ator que
alia certas características de Humphrey Bogart com outras de Marlon Brando, ou
seja, um exterior duro e frio, e algumas atitudes mais grosseiras, mas onde por
vezes podemos ver um homem muito emotivo por baixo de toda esta couraça. Ele
está no tom certo para o filme, que não cai nem no dramalhão, e nem num
thriller puro e simples. Mas Mikkelsen é muito bem assessorado também por
Thomas Bo Larsen, por Susse Wold (como Grethe, a sua chefe que dá o pontapé em
toda a neurose) e pela iniciante Annika Wedderkopp, que consegue demonstrar uma
fragilidade e um desamparo tão tocantes que deixam o espectador sem saber se
ela não seria ainda mais vítima do que Lucas de toda aquela confusão, mesmo
sendo a causadora involuntária de tudo aquilo. Seu olhar doce e perdido, e sua
frustração por ver a bela relação que tinha com seu professor desmoronar,
marcam o espectador do filme, principalmente na última cena em que os dois
contracenam, de rara beleza, e comandada por um diretor que expõe mazelas com a
mesma capacidade com que enxerga os detalhes.
É difícil determinar qual foi o melhor filme
de um ano, qualquer que seja o ano. Prêmios e listas variados tentam fazer isso
sempre, e o resultado nunca vai deixar de ser polêmico e de atrair aplausos e
vaias. Num universo de milhares de filmes, é até injusto pegar apenas um e
dizer “este é o melhor”. Feita esta ressalva, é difícil não pensar que A caça
tem bala na agulha para ser cogitado como o melhor filme de 2012. Também é improvável
que não vire um novo clássico desta década, assim como o foi Festa de família
para a década de 90. Aliás, A caça tem tanta contundência quanto o clássico
anterior de Vinterberg, e ainda se beneficia de um diretor mais maduro e menos
engessado do que o então jovem seguidor (e co-fundador) do Dogma 95. De fato,
ainda mais importante do que superar a todos em um ano ou até mesmo se inserir
entre os melhores de uma década, A caça pode ter conseguido quase o
inimaginável para a carreira do diretor, que seria superar seu antes presumidamente
inalcançável Festa de família. Um feito e tanto, de um diretor que mostra em
cores vivas que ainda tem muita garrafa para vender, e muita gente para
influenciar.