sexta-feira, 22 de março de 2013

A caça (Jagten – 2012)




Em 1998 Thomas Vinterberg causou furor em Cannes, e posteriormente no mundo inteiro, ao apresentar seu já clássico Festa de família, feito seguindo fielmente as regras rígidas do movimento Dogma 95, cujos maiores expoentes eram ele e Lars Von Trier. Neste filme havia uma tentativa de um dos filhos de um patriarca expor o abuso sexual que sofrera em suas mãos na infância, e a tentativa de todos da família de acobertar tudo o que aconteceu, tentando ao máximo calar a boca do filho rebelde. Em A caça, Thomas Vinterberg mostra que já superou a fase de radicalização do Dogma 95, mas que continua sendo um cineasta muito contundente (como poucos, inclusive), em um cinema muito realista e detalhista, trabalhando com primor uma trama (elaborada por ele e pelo roteirista Tobias Lindholm) onde curiosamente vemos uma cidade inteira acusando um homem de ter abusado sexualmente de crianças, enquanto o espectador sabe que ele é inocente e que nada aconteceu. Uma situação inversa, mas talvez ainda mais impactante.

O personagem central é Lucas (Mads Mikkelsen), um modesto professor de jardim de infância de uma cidade pequena da Dinamarca, que começa a ver sua vida engrenar e já até cogita conseguir fazer com que seu filho more com ele, e não com a ex-esposa. Tem vários amigos na cidade, e é muito querido pelos alunos, principalmente por Klara (Annika Wedderkopp), filha de Theo (Thomas Bo Larsen, que atuara também em Festa de família, além de em outros filmes do diretor), o maior amigo de Lucas. Infelizmente, a menina se confunde toda em sua inocência e em seu amor infantil por Lucas, e é o estopim de um desastre na carreira e na vida íntima deste pobre professor. Assim como acontecera em Festa de família, Vinterberg não só põe o dedo, como abre a ferida com tudo e expõe as vísceras da histeria coletiva de uma cidade que acredita piamente no ditado “onde há fumaça, há fogo”. O filme tem alguma semelhança com a peça “The children’s hour”, de Lillian Hellman, adaptada para o Cinema com o título de Infâmia em 1937 e 1961 (a versão mais famosa, com Audrey Hepburn e Shirley MacLaine), onde boatos e maledicências destroem reputações, e adultos talvez até mais infantis que as crianças se recusam a aceitar a hipótese de que elas poderiam estar mentindo ou inventando tudo. Mas claro que Vinterberg vai mais longe em 2012, sem a censura a atrapalhá-lo, e também com o bom-senso de não apelar para cenas de caráter duvidoso. Ele trabalha a tensão como ninguém, e o ritmo do filme é impecável, de deixar o espectador grudado na cadeira e suando frio. A caça perdeu a Palma de Ouro em Cannes para Amor, de Michael Haneke, e a indicação dinamarquesa ao Oscar de filme estrangeiro para O amante da rainha (curiosamente, outro filme estrelado por Mads Mikkelsen), ambos ótimos filmes, mas que podem perfeitamente serem considerados inferiores a este A caça.

Um que foi premiado em Cannes, porém, foi Mads Mikkelsen. Um ator na crista da onda, fazendo um filme bom atrás do outro, e com uma persona cinematográfica mais reconhecida como de durão (foi até vilão de um filme de James Bond, no caso 007 – Cassino Royale), em A caça ele possivelmente teve a melhor atuação de sua carreira, em um papel onde alia resistência e vulnerabilidade. Um dos maiores atores do Cinema atual (recebe destaque desde o também notável Depois do casamento, de 2006), ele dá um show no filme, valorizando ainda mais os ótimos roteiro e direção. Ele é um ator que alia certas características de Humphrey Bogart com outras de Marlon Brando, ou seja, um exterior duro e frio, e algumas atitudes mais grosseiras, mas onde por vezes podemos ver um homem muito emotivo por baixo de toda esta couraça. Ele está no tom certo para o filme, que não cai nem no dramalhão, e nem num thriller puro e simples. Mas Mikkelsen é muito bem assessorado também por Thomas Bo Larsen, por Susse Wold (como Grethe, a sua chefe que dá o pontapé em toda a neurose) e pela iniciante Annika Wedderkopp, que consegue demonstrar uma fragilidade e um desamparo tão tocantes que deixam o espectador sem saber se ela não seria ainda mais vítima do que Lucas de toda aquela confusão, mesmo sendo a causadora involuntária de tudo aquilo. Seu olhar doce e perdido, e sua frustração por ver a bela relação que tinha com seu professor desmoronar, marcam o espectador do filme, principalmente na última cena em que os dois contracenam, de rara beleza, e comandada por um diretor que expõe mazelas com a mesma capacidade com que enxerga os detalhes.

É difícil determinar qual foi o melhor filme de um ano, qualquer que seja o ano. Prêmios e listas variados tentam fazer isso sempre, e o resultado nunca vai deixar de ser polêmico e de atrair aplausos e vaias. Num universo de milhares de filmes, é até injusto pegar apenas um e dizer “este é o melhor”. Feita esta ressalva, é difícil não pensar que A caça tem bala na agulha para ser cogitado como o melhor filme de 2012. Também é improvável que não vire um novo clássico desta década, assim como o foi Festa de família para a década de 90. Aliás, A caça tem tanta contundência quanto o clássico anterior de Vinterberg, e ainda se beneficia de um diretor mais maduro e menos engessado do que o então jovem seguidor (e co-fundador) do Dogma 95. De fato, ainda mais importante do que superar a todos em um ano ou até mesmo se inserir entre os melhores de uma década, A caça pode ter conseguido quase o inimaginável para a carreira do diretor, que seria superar seu antes presumidamente inalcançável Festa de família. Um feito e tanto, de um diretor que mostra em cores vivas que ainda tem muita garrafa para vender, e muita gente para influenciar.

domingo, 10 de março de 2013

Loucamente apaixonados (Like crazy - 2011)




2011 foi um ano “like crazy”, meio louco no Cinema americano, quase como o título original deste filme de Drake Doremus (diretor também de Douchebag, de 2010). Foi um ano de um filme mudo, em preto e branco, francês, com atores e diretor franceses desconhecidos nos EUA, que passou o rodo nas principais premiações americanas (dentre elas o Oscar), como foi o caso de O artista. E foi também o ano de Loucamente apaixonados, um romance leve mas contundente, de uma inglesa e um americano de alto nível social, que conquistou o público mais intelectualizado do Festival de Sundance, levando o principal prêmio. O gênero de comédia romântica, bem ou mal, se sustenta bem e continua sendo popular (muito mais com o público do que com a crítica, que costuma apedrejar o gênero, apesar desta cultivar exceções como O lado bom da vida). Mas o Romance em si, puro, que se recusa a se escorar na comédia, como Love story ou Em algum lugar do passado, por exemplo, é um gênero em desuso, quase como o Western e o Musical. Aparece um ou outro aqui ou ali, mas não há muita continuidade, quase como se não fossem mais contemporâneos, como se fossem dissonantes deste milênio mais cínico. Quando aparece um bom exemplar deste tão combalido gênero, e Loucamente apaixonados com certeza é um deles, o público, principalmente o feminino, porém, costuma apreciá-lo muito.

Mas Loucamente apaixonados, por ser uma obra modesta, filmada em menos de um mês e com baixíssimo orçamento (apenas 250.000 dólares), não teve muita chance de alcançar muito o público, principalmente fora dos EUA, e o fato de ser um filme de clima mais sereno e de procurar evitar os clichês de filmes românticos tornou esta tarefa ainda mais difícil. A sua gestação foi totalmente pessoal, calcada nas relações de Drake Doremus e do coroteirista Ben York Jones (que foi ator de Douchebag e que é amigo de infância do diretor, e inclusive roteirizou um filme dirigido por Doremus quando ambos ainda eram adolescentes). Principalmente no que tange à relação do diretor com Desiree Pappenscheller, uma austríaca que fora ex-namorada dele e que também passara por problemas com visto nos EUA (na verdade, ainda mais sérios do que os retratados no filme). Aliás, se há alguma lição prática de Loucamente apaixonados, é que não se pode deixar o visto americano de estudante expirar quando ainda se está no país. A personagem Anna, interpretada por Felicity Jones (A tempestade, Chéri) vacila nesta questão após concluir sua faculdade, justamente por não querer se afastar, durante o verão seguinte, de Jacob (Anton Yelchin, de Star Trek (2009) e O exterminador do futuro – A salvação), por quem é apaixonada. O casal sofre justamente porque Anna logo descobre que não pode voltar aos EUA, e Jacob não quer largar sua pequena empresa e ir morar na Inglaterra. Sim, mesmo uma inglesa (ou uma austríaca, na vida real) pode passar por um aperto desses, até um cidadão de um país que fora metrópole dos EUA parece ter que seguir fielmente os trâmites diplomáticos para não se enrascar.

O romance apresentado no filme, por se basear na vida real dos escritores, parece muito verídico, e Felicity Jones e Anton Yelchin se entendem muito bem desde o começo. Extremamente charmosa, Felicity Jones comanda com elegância um filme em que uma das coadjuvantes é ninguém menos que Jennifer Lawrence, a atriz recém-oscarizada por O lado bom da vida, e que em 2010 surgira com estardalhaço no próprio Festival de Sundance com Inverno da alma. E Felicity Jones consegue esta façanha em um filme em que Jennifer Lawrence parece estar no auge da beleza. Mas esta, mesmo com um bom desempenho, tem um papel discreto (talvez o último de sua carreira, pois quando fez o filme ainda não era tão famosa), como Sam, uma secretária da mini-empresa de Jacob, e também sua amante durante os longos períodos de afastamento do casal principal, assim como Simon (Charlie Bewley) também tenta conquistar Anna durante esses sofridos intervalos. O romance de Anna e Jacob, sem dúvida com um começo muito sólido e uma química evidente, conseguirá sobreviver a estas dificuldades, de dois jovens no começo de suas carreiras, bonitos e muito assediados? Sam e Simon parecem ser bons parceiros para ambos, será que não seria melhor cada um deles prosseguir com suas vidas? Conseguirão abandonar um ao outro, deixar a relação lentamente morrer? Estarão eles lutando apenas por uma doce lembrança de uma primeira paixão, ou terão de fato algum futuro? Loucamente apaixonados lida com sensibilidade com todas estas questões, e tem tudo para atingir o público, que pode perfeitamente remeter várias das situações apresentadas no filme com suas próprias vidas. Não é um filme com vilões declarados, todos parecem bem intencionados, e os quatro (o casal principal e os amantes) sofrem por um romance que nem pode ser totalmente consumado, nem consegue ser inteiramente destruído.

Drake Doremus demonstra dominar cada vez mais a direção de um filme calcado em relacionamentos (além de Douchebag, outros filmes seus como Spooner (2009) e Moonpie (2006) também apresentam um mínimo de enfoque romântico, mesmo que aliados à comédia). Tem uma mão precisa para isso, e ainda pôde contar com uma dupla muito afiada de atores, principalmente Felicity Jones, que parece estar a meio caminho andado de se tornar uma estrela (talento, beleza e carisma ela tem, mas se tornar uma estrela nunca foi uma ciência exata). Um filme romântico, mais do que um de qualquer outro gênero, precisa de uma dupla de atores muito entrosada, que se entenda perfeitamente, e que cative o público e o faça se identificar com eles, e Loucamente apaixonados foi abençoado nessa questão, contando ainda com um diretor na ponta dos cascos e com um belo roteiro, tratado com improviso em cena pelos atores, segundo o diretor. E o filme ainda tem uma belíssima Jennifer Lawrence de lambuja, é bom lembrar. Esta é uma obra bela, suave, inteligente e profunda, sobre paixão, romance e maturidade, que conquistou muitos dos mais céticos, que normalmente se recusam a se aproximar de filmes com esta temática. Se passou meio despercebido nos cinemas mundo afora (no Brasil, já foi lançado direto em DVD...), pelo seu escopo modesto, por não carregar no sentimentalismo e por ignorar muitos dos clichês que costumam confortar parte do público (e também por não apresentar nenhuma cena caliente de nudez), não deveria ter passado. Quem se dispor a abrir esta concha tem tudo para descobrir uma pérola.

domingo, 3 de março de 2013

As sandálias do pescador (The shoes of the fisherman – 1968)




O livro de Morris West As sandálias do pescador foi um best seller mundial, e foi lançado em 03 de Junho de 1963, o mesmo dia em que o Papa João XXIII faleceu (na primeira das incríveis coincidências que cercam esta obra). Não demorou muito para que se desejasse fazer um filme sobre este livro tão popular, com seu lançamento ocorrendo justamente quando o mundo estava em ebulição, em pleno 1968. O diretor Michael Anderson (de A volta ao mundo em 80 dias e Fuga no Século 23) encarregou-se da tarefa, com roteiro de John Patrick (Suplício de uma saudade) e James Kennaway (Glória sem mácula). O resultado foi um fracasso de público na época, e um filme um pouco lento e arrastado, até por abandonar por vezes a trama central ao mostrar a pouco interessante relação de um jornalista americano (David Janssen, o Richard Kimble da antiga série de TV O fugitivo) com sua esposa e também sua amante. A direção pouco inspirada de Michael Anderson não ajuda, infelizmente.

Mas o interesse maior que As sandálias do pescador desperta é exatamente a sua estranha capacidade de prever o futuro. Até porque o filme e o livro que o originou, mesmo produzidos na década de 60, se debruçavam sobre o que poderia acontecer na década de 80, ou seja, há um quê de ficção-científica no meio daquela trama de cardeais. Anthony Quinn interpreta Kiril Lakota, um padre ucraniano (sendo que, naquela época, costumava-se chamar qualquer um daquela região como “russo”) que, após décadas na Sibéria, é libertado pelo Premier Soviético, interpretado por Laurence Olivier (em uma de suas atuações mais discretas). Em uma ascensão inacreditável, logo é nomeado como Cardeal pelo Papa vigente (John Gielgud, que atua apenas em uma cena). E, com a morte repentina deste Papa, há um conclave que o efetiva, após várias rodadas, como o novo Papa, com apoio de cardeais interpretados por Leo McKern e Vittorio de Sica (ele mesmo, o diretor de Ladrões de bicicleta). É curioso ver a reação de surpresa e desgosto, inclusive, quando os americanos descobrem que o novo Papa é “russo”, no meio de uma tremenda Guerra Fria...

Um elenco desta envergadura acrescenta respeitabilidade a qualquer filme, e As sandálias do pescador de fato necessitava disso, para uma realidade tão formal quanto a do Vaticano. Nenhuma das interpretações é genial, mas Anthony Quinn decerto está crível como Papa, muito solene e consciente de sua grande responsabilidade. A ascensão tão surpreendente de seu personagem de certa forma evoca o que aconteceu em sua carreira, onde começou estereotipado como indígena (inclusive em filmes de seu então sogro Cecil B. de Mille), sem nenhum futuro brilhante à vista, mas que paulatinamente foi subindo na carreira até ganhar 2 Oscars de coadjuvante (por Viva Zapata! e Sede de viver), transpor o Oceano Atlântico para brilhar na Europa (em clássicos como A estrada da vida), até finalmente conseguir o respaldo curricular para poder interpretar um Papa neste filme. Leo McKern faz um bom contraponto a ele, como um cardeal que resiste um pouco até se deixar conquistar por Kiril Lakota, e Oskar Werner está na sua especialidade, como um padre amargurado e repleto de dúvidas (ele parece um pouco um James Dean mais velho neste sentido, aliás até fisicamente).  Estes três atores juntos são responsáveis pelas melhores cenas do filme, juntamente com os grandiloquentes momentos de escolha do Papa e algumas cerimônias de grande vulto, que são muito bem retratadas (até por se usar também material real, registrado quando da escolha do novo Papa em 1963). O que não funciona tão bem é a trama comunista, de crise entre URSS, China e EUA (que estariam fazendo um bloqueio comercial aos chineses, por causa das expansões territoriais deles), que ameaçaria uma 3ª Guerra Mundial, e que fazem o Papa Kiril tentar intermediar aquilo, propondo uma bela solução, mesmo que bastante utópica. O filme acaba prometendo mais do que cumprindo, apesar de algumas cenas emocionantes e de certo impacto, e de contar com uma bela trilha sonora de Alex North (usando partes justamente da trilha que compusera para 2001: Uma odisseia no espaço, que entretanto fora então recusada por Stanley Kubrick).

Mas um Papa vindo de trás da então Cortina de Ferro, que quebrava uma tradição de Pontífices italianos que durava mais de 400 anos (desde 1522), de grande popularidade, e que queria se chegar mais no povo e sair o possível da clausura do Vaticano... Não tem como não ver este filme e não pensar em Karol Wojtyla, que se tornou o Papa João Paulo II em 1978. Bizarramente, até os nomes Karol Wojtyla e Kiril Lakota são semelhantes. As sandálias do pescador não prevê, claro, a influência decisiva de João Paulo II em derrubar o regime polonês, e ressuscitar a Igreja Católica em regimes comunistas que a agrediam, assim como não visualizou o próprio desabamento coletivo dos regimes comunistas no fim da década de 80 e começo da de 90, a partir da queda do muro de Berlim. Seria pedir demais. Mas a visão da possibilidade de uma Igreja um pouco mais ligada no mundo real, e a busca por Papas não-italianos, que visitavam lugares onde antes nem se sonhava receber a visita de um Papa (Brasil, entre eles), para justamente integrar mais o mundo, são méritos inegáveis do filme e do livro. A própria renúncia recente do Papa Bento XVI encontra certo eco no filme, quando Kiril Lakota ameaça renunciar, se suas ações não forem do agrado dos cardeais, o que causa grande rebuliço entre eles (aliás, Morris West escreveu outro livro depois, Os fantoches de Deus, que trata justamente de um Papa que renuncia ao cargo). Assim como a tentativa de aproximação com outras religiões, como aconteceu com João Paulo II e com o próprio Bento XVI, um vislumbre do futuro que se pode verificar em uma cena onde o Papa Kiril, mesmo que incógnito, reza para um judeu, e em hebraico.

Rumores na época indicavam que Morris West poderia ter baseado o seu Kiril Lakota em Albino Luciani, tendo em vista suas ideias mais liberais e boa fama dentre muitos cardeais, pela sua correção e postura. Luciani se tornaria justamente o Papa João Paulo I, que ficou pouquíssimo tempo no cargo, apenas 33 dias (inclusive com alguns boatos de que poderia ter sido assassinado, o que o próprio O poderoso chefão III de certa forma alude, usando outros nomes, evidentemente). No conclave seguinte, Karol Wojtyla seria o escolhido (e até homenagearia seu antecessor usando o mesmo nome), e começaria sua peregrinação mundial marcada por muitos beijos em solos de aeroportos (sua marca registrada) e em muito carisma, e que indiretamente contribuiu para o fim dos severos regimes comunistas no leste europeu (de forma mais ativa na Polônia, evidentemente). E com o tempo Karol Wojtyla acabou criando uma amizade com o próprio Anthony Quinn, que sempre foi muito religioso. Não chega a ser absurdo afirmar que as coincidências e profecias involuntárias de As sandálias do pescador são mais interessantes do que o próprio filme em si.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Atrás da porta (The door – 2011)




Em Atrás da porta, István Szabó volta a trabalhar com temas caros à sua cinematografia, como a resistência (ou não) à corrupção de valores pessoais, e a briga pelos artistas frente a um ambiente bruto e hostil. Desta vez, porém, ele o faz numa escala bem menor do que fez em seus consagrados Mephisto (vencedor do Oscar de filme estrangeiro de 1981) e Coronel Redl, por exemplo. Com uma vida atribulada, envolto inclusive em um escândalo recente onde teria sido acusado de delatar colegas na Hungria Comunista nos anos 50 e 60, Szabó teve que andar em uma constante corda bamba para conseguir continuar filmando, mesmo sob as pressões constantes de um regime político tão severo em seu país. A ponto de alguns críticos seus verem em Mephisto (um filme sobre um artista alemão que inicialmente se beneficia de sua ligação com nazistas, e depois vai sendo pressionado pelos mesmos), como uma obra de teor autobiográfico.

Desta vez, porém, a biografia retratada é a da escritora e autora do livro que gerou este filme, Magda Szabó (apesar do sobrenome, não é parente de István), que também sofreu pressões e censuras do regime comunista, e teve que inclusive dar aulas no interior da Hungria por um tempo. Magda inclusive é também o nome da personagem de Martina Gedeck (de A vida dos outros e O grupo Baader Meinhof), que juntamente com seu marido Tibor (Károly Eperjes), ambos intelectuais, precisa arrumar alguém para fazer todo o serviço caseiro. Com dificuldade, conseguem finalmente contratar Emerenc (Helen Mirren), que é competente em seu serviço, mas é uma pessoa bastante difícil de lidar. Ela trabalha quando acha adequado, é rebelde e orgulhosa, tem um gênio muito forte, e seu estilo cria constantes fagulhas com o de Magda. O embate constante entre uma mulher ligada à natureza e aos animais, que trabalha pesado desde quando era muito criança, com uma escritora intelectual, produz alguns dos melhores momentos de Atrás da porta. Aliás, talvez os únicos, porque o filme de fato praticamente só se detém nesta questão. O filme é a relação entre as duas, não resta muita trama fora isso.

Martina Gedeck faz um trabalho correto como Magda, conseguindo não ser por demais eclipsada por Helen Mirren. Mas é claro que Helen Mirren é a razão de ser do filme. Sem ela, Atrás da porta seria um filme para sair direto na TV, até por ter um escopo bastante modesto. István Szabó fez questão de esperar um bom tempo por ela, que estava com a agenda cheia. Fez bem. Atuando sem qualquer maquiagem, e até envelhecida, ela dá dignidade e credibilidade a Emerenc, em um papel que à primeira vista seria o total oposto da Elizabeth II que ela interpretou em A rainha, mas que guarda alguma semelhança no orgulho e na pouca flexibilidade destas duas personagens. Emerenc tem critérios rígidos de conduta, e não permite muitos desvios nem seus, nem dos outros. Guarda sua privacidade como ninguém, a ponto de não deixar nunca alguém entrar em sua casa (daí o título em português do filme). Ela representa como uma defesa pessoal dos húngaros à natural intromissão comunista, que prezava praticamente um clima de privacidade zero. Emerenc é capaz de bastante afeto, mas demonstrado de seu jeito, a conta-gotas. Confia mais nos animais do que nas pessoas, e é difícil julgá-la por isso, em um ambiente tão hostil. E desconfia ainda mais de intelectuais, que se debruçam demais em livros e não fazem trabalhos caseiros simples. Em sua visão de mundo, se identifica mais com Jesus do que com Deus, pois Jesus ela via como um real trabalhador, filho de trabalhadores, como ela. Já um pretenso ser divino, cheio de poderes, que não punha fim aos horrores da guerra e, depois, do comunismo, estava acima de sua compreensão.

As duas atrizes fazem o seu trabalho, apoiado por um elenco coadjuvante apenas discreto, até por muitos serem claramente dublados em inglês e não estarem muito à vontade. Ser falado em inglês já demonstra o quanto Atrás da porta foi feito visando o mercado internacional, tendo em vista ser uma co-produção húngaro-germânica. István Szabó declarou ter tido dificuldades com isso, por não dominar propriamente a língua inglesa, mas isto não foi um empecilho para o belo Adorável Julia, que dirigira em 2004, com Annette Bening e Jeremy Irons, ou para o seu épíco Sunshine – O despertar de um Século, de 1999, com Ralph Fiennes  e Rachel Weisz. Apesar de que o ideal é que o filme fosse falado em húngaro, este não é o maior problema de Atrás da porta. Se István Szabó teve méritos na condução das duas atrizes, o mesmo não se pode dizer do andamento da trama. O filme parece por demais episódico, pulando abruptamente de partes interessantes para outras menos relevantes, o que prejudica a inserção do público na história. A edição do filme parece mutilada, quase como se fosse um filme húngaro de 50 anos atrás, todo censurado, com cortes muito estranhos, sem o menor sentido. Réka Lémhenyi, o editor, com certeza teve sua culpa, mas como diretor Szabó tinha a obrigação de saber conduzir melhor uma trama, ainda mais uma tão simples como esta. Ele parece aqui pouco imaginativo e por vezes burocrático mesmo, quase como se só estivesse preocupado em apenas registrar aquelas atrizes. A trilha sonora, escorada em Robert Schumann, e a bela fotografia de Elemér Ragályi fazem o possível para enobrecer o filme, mas István Szabó parece, desta vez, só ter tido olhos para conduzir as duas atrizes principais mesmo.

Desta feita, Atrás da porta acaba sendo muito mais um filme de Helen Mirren do que de István Szabó. Seus fãs não sairão desapontados, aqui ela tem mais uma grande atuação, de uma atriz veterana que domina a câmera como ninguém. Sua Emerenc domina o filme e faz o espectador pensar na força, quieta rebeldia e determinação daquela mulher, que faz o possível para manter sua modesta vida inexpugnável. Se é bruta e inculta, em compensação tem uma solidez de uma rocha, e impressiona Magda, que aos poucos começa a entender aquela estranha empregada sua. A convivência próxima entre uma camponesa simplória e uma intelectual respeitada garante o interesse do filme, e que ele angarie o interesse de ao menos uma parcela do público. Atrás da porta é um filme pequeno, modesto, e com uma porção de defeitinhos. Mas tem uma Helen Mirren perfeita. O que já é o bastante para muita gente. 

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Hitchcock (2012)




2012 foi um ano badalado para a memória de Alfred Hitchcock. Primeiramente a HBO fez para a TV americana o filme The girl, com Toby Jones como o Mestre do suspense e Sienna Miller como Tippi Hedren. Um filme que incomodou muitos fãs de Hitchcock por mostrá-lo sob uma ótica mais pesada, de homem que perdeu totalmente a linha na tentativa de sedução à Tippi Hedren. Este filme do diretor Sacha Gervasi, porém, joga uma luz bem mais suave em cima do diretor inglês, reconhecendo alguns de seus notórios defeitos, mas em um tom mais reverente para com ele, até por retratar um período muito feliz (mesmo que atribulado) de sua vida, o da produção de Psicose, um dos maiores clássicos do Cinema de todos os tempos, que foi um fenômeno de bilheteria e valorizou muito o gênero Terror, além de mudar inclusive a forma com que as pessoas iam ao Cinema (terminando com o antigo hábito de muitos chegarem no meio de uma sessão), para que o charme e os segredos de Psicose não se perdessem.

Hitchcock vinha num embalo fenomenal desde 1954, enfileirando grandes sucessos icônicos como Janela indiscreta, Disque M para matar, Ladrão de casaca, O homem que sabia demais (a refilmagem de 1956) e Intriga internacional, e mais dois então vistos como “artísticos”, O homem errado e Um corpo que cai, que foram razoavelmente ignorados na época (o filme Hitchcock até brinca com isso), mas que depois cresceram em muito de prestígio (principalmente Um corpo que cai, recentemente eleito o melhor filme da História pela Sight & Sound). E Psicose foi seu ápice, agradando em cheio, de imediato, tanto a crítica quanto o público (e foi seu maior sucesso de bilheteria). Mas a produção dele, como de quase todo filme, foi atribulada, até por Hitchcock ter trabalhado ali muito com sua equipe de seus programas de TV, para baratear custos. O filme de Sacha Gervasi, baseado no livro de Stephen Rebello sobre a produção de Psicose, e com roteiro de John J. McLaughlin (Cisne negro), dramatiza um pouco mais a história, acrescentando tintas extras para encorpar a história (Hitchcock não corria tanto perigo financeiro com o filme, até por ele ter sido barato), algo presente a quase todos os tais filmes “baseados em fatos reais”.

A experiência de assistir o filme é muito agradável, principalmente para os cinéfilos de plantão (o espectador comum perde parte da graça por não conhecer de antemão situações e pessoas apresentadas). Gervasi, porém, preferiu dividir atenções entre a relação de Hitchcock (Anthony Hopkins) com sua esposa Alma Reville (Helen Mirren), junto com a produção de Psicose. E isto pode frustrar parte dos cinéfilos, pois, no fundo, o filme não conta nada de realmente novo para quem conhece razoavelmente bem a produção do clássico de 1960. Curiosamente, nem mostra aspectos engraçados como Hitchcock mandar duas vezes a mesmíssima edição para os censores da famosa cena do chuveiro, onde estes viram coisas diferentes em cada “versão” apresentada, como aconteceu realmente. Também, estranhamente, oculta a presença de Patricia Hitchcock, filha do casal e que tinha feito uma pequena participação em Psicose (a última em um filme de seu pai). Talvez a intenção fosse mesmo focar na relação de Alfred e Alma. Anthony Hopkins tem, aqui, uma atuação muito parecida com a que apresentou em Nixon, de Oliver Stone, pois ele não se parece muito com Hitchcock (nem fisicamente, nem no tom de voz), mas aos poucos vai envolvendo o público e isto deixa de ser um problema. Não tem nenhuma atuação lendária, longe disso, mas é firme o suficiente para carregar o filme. Porém, deve-se ressaltar que Toby Jones, em The girl, estava muito mais convincente como o Mestre do suspense, com uma voz igualzinha, e numa atuação mais rica também. Helen Mirren também não lembra muito fisicamente a Alma Reville (Imelda Staunton, em The girl, estava muito mais parecida com ela). Aliás, nenhum ator está muito parecido com a personagem que retratava, com a exceção de James D’Arcy como Anthony Perkins, que infelizmente atua por pouco tempo (o porquê deste filme ter recebido indicação ao Oscar na categoria de maquiagem é um mistério). Mas Helen Mirren tem uma atuação mais rica (a melhor do filme, na verdade), em uma obra que parece ter a bandeira de mostrar sua importância para a carreira de Hitchcock, que nem ele mesmo negava. Tudo passava por suas mãos, e sua opinião era sempre a mais importante para seu marido. Este filme atesta que ao lado do grande diretor tinha uma mulher pequena em estatura, mas gigante em espírito, que se satisfazia em ficar nos bastidores, enquanto seu marido amava ficar sob o maior número de holofotes possível.

Com um ritmo leve e aprazível, e contando com o que de fato são breves participações especiais de Scarlett Johansson (como Janet Leigh), Jessica Biel (Vera Miles), Toni Collette, Richard Portnow, Danny Huston, Ralph Macchio e Kurtwood Smith, Hitchcock agrada aos olhos e ao espírito, remetendo ao auge de um cineasta que sempre visou a satisfação de seu público, mesmo que o fizesse aterrorizando-o. E conseguiu isso com Psicose, um filme perfeito que ainda tem enorme impacto, ajudado por uma equipe genial (Bernard Herrmann, Saul Bass, todo o elenco, etc.). E, claro, contando com a ajuda da eterna Alma Reville, que foi quem impulsionou sua carreira desde o início, quando ele era um reles ilustrador de intertítulos de uma sucursal da Paramount na Inglaterra no princípio da década de 20. Mas por volta de 1960, ele já era um figurão, e convenceu a própria Paramount a ajudá-lo na produção deste clássico. Sacha Gervasi consegue mostrar um pouco desse homem, da mulher que sempre o defendeu de tudo (principalmente de seus próprios temores e neuroses), e também alguns aspectos da produção de um de seus maiores filmes. Mas não consegue nem de perto a contundência que conseguira com o documentário Anvil: The story of Anvil (um fascinante acompanhamento de uma banda de metaleiros que prossegue por décadas no anonimato). Ele deixa um gostinho de “quero mais” no espectador, e uma sensação de que quis mais imprimir a lenda do que contar a história real do diretor. Junto com The girl, este Hitchcock acaba funcionando de forma complementar para o público, pois as lacunas deste filme são os méritos do outro, e vice-versa. Não foi feito o filme definitivo sobre o célebre diretor inglês ainda, mas ambos tem o seu lugar e cumprem o papel de peças que ajudam a tentar completar o quebra-cabeças que foi o enigmático e taciturno Alfred Hitchcock. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Anna Karenina (2012)




Em 2007, Joe Wright dirigiu uma pérola cinematográfica chamada Desejo e reparação. De condução e ritmo praticamente irretocáveis, o filme só saiu de tom em um único momento, justamente na cena de evacuação das tropas inglesas da Europa Continental, um longo plano ininterrupto que isoladamente faria qualquer cinéfilo babar, mas que dentro do contexto do filme soou como um soluço na trama, tirando um pouco o peso do enredo durante aqueles poucos minutos. Com Anna Karenina, Joe Wright faz quase que o inverso, ele subordina a intrincada trama de Tolstoi ao visual esplendoroso do filme, dando pouca relevância à trama em si e baseando boa parte de seus esforços em criar, de acordo com uma citação sua, uma espécie de “balé em palavras”.

Anna Karenina tem mesmo um pouco disso,como se fosse um musical sem canções, pois é todo artificialmente criado, nos mínimos detalhes, com o intuito de deslumbrar o espectador a cada segundo. E deslumbra. Visualmente, Anna Karenina é dos mais belos filmes produzidos nos últimos anos. Todas as suas indicações foram merecidas no Oscar (Fotografia, Figurinos, Trilha sonora e Design de Produção), e em algumas delas é o trabalho de maior peso dentre os indicados (merecia indicação de Edição também, muito criativa nas transições entre cenas, por exemplo). Os outros filmes de época do diretor, Orgulho e preconceito e Desejo e reparação, já eram produções de grande esmero, mas Anna Karenina está em outro patamar, se utilizando muito bem de um grande palco de um teatro londrino abandonado para sediar boa parte do filme. O visual é propositalmente artificial, que pode incomodar algumas pessoas, isso se elas ainda tiverem algum senso crítico no meio de tanta beleza. Algumas cenas, como a da dança entre Anna Karenina (Keira Knightley mais uma vez, o amuleto de Joe Wright) e Vronsky (Aaron Taylor-Johnson), a corrida de cavalos, e a própria cena final são inacreditavelmente belas. A câmera de Joe Wright dança ao redor dos personagens e cenários, com uma elegância raramente vista, e o próprio trabalho sonoro é muito interessante, em vários casos enfatizando a solidão e rejeição de Anna no meio daquela rígida sociedade, com um interessante uso de silêncios.

No meio de tanta criatividade, esplendor e esmero, porém, o texto de Tolstoi fica um pouco para escanteio, quase que sem-graça de lembrar ao diretor que ele existe e que muitos poderiam ficar decepcionados de ver uma obra desta envergadura com tanta predominância do visual sobre o texto. Não há problema nenhum em se fazer uma adaptação que altere bastante a obra original, vários filmes de sucesso seguiram esse rumo. O problema é quando a obra original é um dos maiores clássicos da História da Literatura. Com esse tipo de coisa não se brinca, sob pena de se sofrer uma saraivada de críticas. Alfred Hitchcock sempre entendeu isso, e nunca quis adaptar grandes obras, justamente para não sofrer este tipo de escrutínio e ficar livre para fazer o que quisesse (numa exceção em sua carreira, sofreu muito na produção de Rebecca, a mulher inesquecível justamente porque era um livro de enorme sucesso na época, e foi obrigado a ser fiel ao texto de Daphne Du Maurier). É de se perguntar o porquê de Joe Wright não fazer o mesmo tratamento em cima de um livro ou peça de menor expressão. Como escolheu Anna Karenina, ele e o roteirista Tom Stoppard (de Shakespeare apaixonado, Brazil - O filme e Império do Sol) sofreram críticas não por deformar a história (que é aceitavelmente fiel ao livro), mas por reduzirem seu peso e importância, com a exceção da parte final do filme, onde eles tentam se emendar neste sentido, e acrescentar relevância no meio de toda aquela beleza.

O elenco coadjuvante está afiado e contribui muito com o filme, contando com Matthew Macfadyen (Oblonsky), Olivia Williams (Condessa Vronsky), Alicia Vikander (a atriz de O amante da rainha, como Kitty), e Emily Watson (Condessa Lydia Ivanova), dentre outros. O mesmo, infelizmente, não se pode dizer da dupla principal, logo ela, tão fundamental para qualquer adaptação deste clássico de Tolstoi. Keira Knightley, que deve boa parte da elevação de prestígio de sua carreira à sua parceria com Joe Wright, dessa vez não convence no papel. Ela parece jovem demais e, pior, apresenta pouca profundidade no papel-título. Em comparação com Greta Garbo e Vivien Leigh, as mais famosas intérpretes de versões americanas no Cinema deste livro, ela sai perdendo feio (concorrência forte, é claro, mas quem se propõe a um papel desses deve saber de antemão que o nível de comparação será elevado). Ela já provou que rende bem em filmes de época (não só em filmes de Joe Wright, mas também em A duquesa, por exemplo), mas dessa vez não parece tão compenetrada quanto antes, demora a esquentar e só apresenta uma boa atuação na parte final, onde até demonstra um interessante aspecto quase-esquizofrênico da sua personagem. Aaron Taylor-Johnson (de Selvagens e Kick-Ass – Quebrando tudo) também parece um pouco jovem demais, e não demonstra ainda ter capacidade de encarar um papel de peso em uma produção tão avantajada. A falta de química entre ambos também atrapalha, evitando que a relação deles ganhe o peso que deveria ter. Jude Law, como Karenin, o marido de Anna, é o de melhor desempenho dentre os três (talvez até do filme inteiro), surpreendendo a muitos que costumam duvidar de sua capacidade de atuação. Ele sim parece ter a consciência de que está numa adaptação do clássico de Tolstoi, e que é bom estar nas pontas dos cascos para não comprometer. Seu olhar triste e amargurado carrega boa parte do filme, sem cair na tentação de virar uma espécie de vilão estereotipado.

Joe Wright mostra em Anna Karenina, mais uma vez, que é um diretor de mão-cheia, que domina a arte cinematográfica como poucos no Cinema atual. De certa forma, mostra até demais, Anna Karenina tem um quê de exibicionismo de sua parte. É possível que o resultado final fosse mais harmonioso e enfático se ele servisse um pouco mais à história do que o contrário, que fosse um instrumento dela, e não o principal artífice desta versão, deixando interpretações e o próprio texto em segundo plano. Este seu filme termina sendo com um belíssimo restaurante de luxo cinco estrelas, com uma vista fantástica, serviço de primeira e clientela expressiva de VIPs, mas que peca um pouco justamente na qualidade dos pratos servidos, que são lindos, mas um tanto insossos. Falta drama e contundência no meio de tanta exuberância. Falta Tolstoi e sobra Joe Wright, o que acarreta em uma versão belíssima de Anna Karenina, mas um tanto vazia em sua essência, e que custa a empolgar e envolver o público. 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Indomável sonhadora (Beasts of the southern wild – 2012)




Indomável sonhadora não parece muito um filme americano. Em parte por se passar na Louisiana, um estado de certa forma mais aparentado com as Américas Central e do Sul culturalmente do que com o resto do país onde está localizado. E também pelo tratamento proporcionado pelo diretor Benh Zeitlin, estreante em longas-metragens, mas que segue o realismo mágico de seu último curta, Glory at sea, um estilo no qual o Cinema latino costuma ser rotulado (estereotipado, inclusive) mundo afora. Este não é um filme de roteiro cirúrgico, definido, apesar de derivar de uma peça de Lucy Alibar (que também escreveu o roteiro do filme, junto com Zeitlin). O que importa aqui é a atmosfera, as impressões e sensações que são captadas pelo público. O espectador segue uma jornada emotiva e lírica através dos inocentes e impressionáveis olhos da menina Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), e esse olhar infantil, rodeado de um mundo assustador e fascinante, assevera que a lógica e a racionalidade ficarão em segundo plano, tendo em vista que Hushpuppy mal entende o que acontece ao seu redor. Em uma luta pela sobrevivência no meio de uma enchente (que ela entende como resultante das calotas polares se derretendo), ao lado de seu pai e em busca de sua mãe, Hushpuppy vai lidando com o aprendizado de sua vida e com seus temores.

Benh Zeitlin conduz esta quase-odisséia da menina muito ancorado na bela fotografia de Ben Richardson (também egresso de Glory at sea), formando com ele essa parceria tão importante para os dois filmes. É uma fotografia que abusa de câmera-na-mão e de algumas imagens desfocadas, porém, que podem irritar boa parcela do público. Indomável sonhadora não é um filme “fácil”, de público definido, nem visa o entretenimento puro e simples. Sua bandeira é outra, de um filme independente vencedor do Festival de Sundance, que visa desde o princípio um público um pouco mais seleto. Dos nove indicados ao Oscar de melhor filme referente ao ano de 2012, é sem dúvida o menos acessível ao grande público, que tende a ficar entediado com ele ou se sentir perdido em meio a eventos quase surrealistas, muitas vezes pouco (ou nada) explicados, mesmo que estes sejam envoltos em algumas belas cenas. É estranho, mas as indicações ao Oscar, que o trouxeram visibilidade e contato com um público que poderia nem saber de sua existência, também expõem Indomável sonhadora a uma rejeição muito maior do que sofreria se estivesse restrito a um público mais identificado com este tipo de filme.

O elenco é formado por não-atores, que Benh Zeitlin cuidadosamente escolheu em um longo período. Quvenzhané Wallis conseguiu se projetar no meio de 4000 meninas entrevistadas, tendo até que mentir a idade (tinha apenas 5 anos quando ingressou no processo de seleção). Conseguiu a façanha de se tornar a mais jovem indicada ao Oscar de melhor atriz, com 9 anos (de todas as categorias competitivas, o recorde ainda é de Justin Henry, com 8 anos por Kramer vs. Kramer), e impressiona porque na verdade ela tinha apenas 6 anos quando foram realizadas as filmagens. Não chega a ser uma atuação deslumbrante, até por ser muito dependente de narração em voz over, e algumas atuações infantis famosas são de fato mais complexas do que a dela (a de Justin Henry mesmo, por exemplo), mas mesmo assim é digna de elogios, pois não é qualquer criança que carrega um filme desta envergadura nas costas. Se ela não funcionasse em seu papel o filme desabaria, e o mesmo pode ser dito de Dwight Henry, que interpreta Wink, o pai de Hushpuppy. Curiosamente, ele era apenas o dono da padaria localizada defronte à produção do filme, onde inclusive eram afixados pôsteres chamando as pessoas para atuar no projeto. Em um momento de calmaria, participou do processo de seleção sem grandes ambições, e logo sumiu do mapa quando abriu seu negócio em outro local. Benh Zeitlin teve dificuldades em encontrá-lo, mas fez questão de contar com ele, fazendo malabarismos para filmá-lo em horários em que não estivesse trabalhando (de noite ou de madrugada). Ele traz uma vitalidade importante para o filme, e instabilidade estranhamente misturada com proteção para a jovem Hushpuppy, ao tentar ensiná-la a viver naquele ambiente tão hostil, já que sabe que não conseguirá protegê-la por muito tempo.

O filme de Benh Zeitlin, se afasta parte significativa do público com sua narrativa não-linear e lírica, em contrapartida costuma agradar em cheio ao público mais intelectualizado, não só pela questão da ecologia, como também por uma certa inocência ao retratar os habitantes daquele local, em especial Hushpuppy, sob a ótica de serem “nobres selvagens”. Há um evidente olhar afetivo para aquelas pessoas, que encontra eco em uma maioria do público atual que vive em cidade grande e que de certa forma idolatra viver uma vida mais ligada à natureza. Igualmente, há também uma certa divinização da pobreza extrema, que faria Joãosinho Trinta soltar uma bela de uma gargalhada e dizer “Eu não disseque intelectual adora pobreza?”, se ainda estivesse vivo. Indomável sonhadora pode ser perfeitamente criticado por abusar um pouco desta questão por espectadores mais cínicos. Aliás, o filme pressupõe mesmo um certo mergulho de cabeça, uma aceitação de peito aberto das premissas da história e do estilo do diretor. E muitos o fizeram, inclusive o Presidente dos EUA Barack Obama, que o elogiou aos quatro ventos, ajudando a trazer ainda mais publicidade para o filme. Aliás, a campanha política de sua reeleição usou a trilha sonora do curta Glory at sea, composta por Dan Romer e pelo próprio Benh Zeitlin, o que já demonstra a identificação de Obama com o estilo de Zeitlin, desde antes de Indomável sonhadora.

Se o diretor e os atores Quvenzhané Wallis e Dwight Henry serão sambistas de uma nota só, conseguindo muito sucesso (mais de crítica do que de público) com este filme, para desaparecerem de cena poucos anos depois, o futuro dirá. A possibilidade existe, e qualquer um que estude sobre a História do Cinema verá que isso é muito comum. O próprio Oscar, a cada ano, apresenta indicações de “jovens promessas” que depois muita gente tem dificuldade de lembrar. Quvenzhané Wallis e Dwight Henry em breve aparecerão em Twelve years a slave, o próximo filme de Steve McQueen (diretor de Shame), o que pode indicar um mínimo de continuidade em suas recém-iniciadas carreiras. Quanto ao diretor, a proximidade temática entre os dois filmes mais recentes da breve carreira de Benh Zeitlin apontam o risco de possivelmente ele ser um homem com um discurso único, apesar dele demonstrar ser eclético por mostrar talento também como compositor, tendo em vista a bela trilha sonora do filme. O caminho à frente destes três artistas tende a ser tão espinhoso quanto o de Hushpuppy em Indomável sonhadora. Talento eles tem, mesmo os maiores críticos do filme tendem a reconhecer isso, cabe saber se vão resistir ao realismo nada mágico de dirigir e atuar em filmes, em ambientes ainda mais inóspitos do que os dos pântanos da Louisiana. 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

As sessões (The sessions – 2012)




O diretor Ben Lewin teve poliomielite aos 6 anos de idade, o que acabou lhe forçando a usar uma bengala pelo resto da vida. Poderia ter sido muito pior, e não surpreende que tenha se emocionado ao ler o relato de Mark O’Brien em “On seeing a sex surrogate”, texto de um homem que também teve a mesma doença (e com a mesma idade) de Lewin, mas que ficou confinado a passar boa parte de sua vida em um pulmão de aço para conseguir respirar, e com quase todo o corpo paralisado e deformado por uma doença nada misericordiosa. O relato de Mark O’Brien e sua busca por, aos 38 anos, finalmente tentar começar uma vida sexual, em meio a temores mil, é de fato fascinante e encontrou o receptor perfeito em um diretor naturalmente empático ao seu suplício.

Mark O’Brien, um poeta muito mais do que um deficiente físico, já tivera antes sua vida registrada no Cinema em Breathing lessons: The life and work of Mark O’Brien, que ganhou o Oscar de curta de documentário de 1996, que fora dirigido por Jessica Yu. As sessões é um filme de ficção, mas ancorado na vida real (mais do que a maioria dos filmes que assumem esta chancela), até por também se basear em relatos de Cheryl Cohen Greene, a terapeuta sexual (que sempre tem que explicar que não é uma prostituta) que tenta atender a um cliente tão inocente, reprimido e de certa forma apavorado como Mark. Helen Hunt se interessou muito pelo filme justamente após entrar em contato com Cheryl, onde viu o quanto esta tinha orgulho de seu trabalho, que em sua opinião ajudava muitas pessoas como Mark a enxergarem o sexo como algo natural. De fato As sessões é dos filmes americanos que mais encara o ato sexual de frente, sem filtros excessivamente eróticos ou quase místicos. Helen Hunt por diversas vezes está totalmente nua em tela, de acordo com o estado de espírito e o profissionalismo de sua personagem. Cheryl tenta ser a voz da aceitação e da tranquilidade a um personagem tão compreensivelmente complexo como o de Mark, mas ela também tem seus problemas, com a carência que sente por sentir seu marido e filho tão pouco afetuosos com ela (Helen Hunt fez por merecer sua indicação de atriz coadjuvante no Oscar, a única do filme). As sessões tem o mérito de evitar se debruçar apenas no personagem principal, acrescentando complexidade ao filme ao dar um certo espaço para quem está em torno de Mark, como o padre que o aconselha (William H. Macy) e suas ajudantes (Moon Bloodgood e Annika Marks).

Mesmo assim, é claro que o foco principal é em Mark, e John Hawkes tem um brilhante trabalho em retratá-lo. Um ator que vem obtendo grande destaque nos últimos anos (principalmente com Inverno da alma e Martha Marcy May Marlene, e com atuação também em Lincoln, de Steven Spielberg), mas que demorou muito a se firmar, atuando no Cinema desde 1985. Aparentando bem menos que a sua idade real (52 anos durante as filmagens), ele convence neste difícil papel, onde se preparou longamente, aprendendo a escrever e teclar num computador com a boca e, principalmente, fazendo uso do que chamou de “bola de tortura”, uma espuma grande que colocava em suas costas para simular a curvatura na espinha que o verdadeiro Mark O’Brien tinha. Seu esmero foi tão grande que alguns de seus órgãos saíram de suas posições naturais, e ele acabou tendo um real desvio de coluna que lhe causou (e ainda causa) algumas dores. Se tal sacrifício valeu a pena só o ator pode dizer, mas ao menos seu trabalho na tela parece impecável (foi realmente esnobado por não ter sido indicado ao Oscar de melhor ator). Ele demonstra grande humanidade e fragilidade, e vai conquistando os outros personagens (e o público) com sua franqueza e suas palavras. É curioso ver como os namorados e maridos de suas ajudantes sentem ciúmes dele, mesmo sendo um homem com limitações físicas tão grandes. O que lhe falta em locomoção, sobra em atenção e carinho para com as mulheres de sua vida. Após a inevitável resistência inicial que todas têm com ele, seu lado poeta acaba se sobrepujando sobre sua aparência e limitação física.

John Hawkes e Ben Lewin desde o começo quiseram retratar a trama de forma a evitar qualquer autopiedade do personagem. Isto evita que o filme seja daqueles de causar prantos coletivos no Cinema. Curiosamente, As sessões é até um filme razoavelmente leve e bem-humorado, que surpreende os que eventualmente o assistem com temor de encarar uma trama barra-pesada. Talvez apenas a nudez frontal de Helen Hunt possa afastar parte do público, pois se  este aspecto não existisse poderia ser até um filme exibível de tarde na TV aberta, dentro de poucos anos. Se tal tratamento atrai mais público, e alivia o espírito de quem assiste o filme, em contrapartida também tira um pouco o potencial de As sessões. É como se o diretor e roteirista Ben Lewin tivesse exagerado ao tirar o tempero da história, fugido com tanta vontade do pranto e da maioria das agruras da vida de Mark O’Brien, que fizesse um filme um pouco leve demais. A mesma câmera que desnuda a Cheryl de Helen Hunt teme chocar o público ao mostrar o corpo retorcido de Mark O’Brien, por exemplo. Ao mesmo tempo, os temores dele no texto “On seeing a sex surrogate”, inclusive seu fatalismo e pessimismo depois das sessões retratadas no filme, são praticamente ignorados na trama, e lamenta-se isso pois poderia criar um enredo ainda mais fascinante, ainda que menos triunfalista. As sessões é um filme independente americano, exibido com sucesso no Festival de Sundance e tudo o mais, mas em alguns aspectos se assemelha a uma produção B de grande estúdio (pelo orçamento modesto, não pela qualidade), pois parece pensar demais na aceitação do público durante sua produção, se esforça em criar uma obra mais palatável a todos.

Aos interessados em ver uma bela história, muito bem atuada (principalmente por John Hawkes, Helen Hunt e William H. Macy), com um tratamento tranquilo e frontal sobre sexo, e uma dose razoável de romantismo inocente à moda antiga, As sessões tem tudo para satisfazer. É daqueles pequenos filmes que deixam um gosto doce e suave na boca. Consegue a inusitada distinção de ser um filme sobre uma vítima de poliomielite com um tom otimista e agradável. Aos mais interessados em uma análise mais incisiva de pessoas em situações semelhantes à de Mark O’Brien, porém, sente-se a falta de mais tempero. Principalmente para quem experimentou o próprio belo texto de Mark O’Brien, que gerou o filme, ou devorou obras como o livro da brasileira (também vítima de pólio) Eliana Zagui, “Pulmão de aço”. São obras mais abertas ao conflito interno dos personagens, e a passagens otimistas e pessimistas, sem pesar demais para um lado ou outro. Sobrou boa vontade e faltou um pouco de acidez para As sessões. Esta acidez pode até afastar parte do público, mas poderia aproximar mais o filme de Ben Lewin do status de um novo clássico, que ele poderia perfeitamente ostentar com um pouco mais de coragem.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O voo (Flight – 2012)




Robert Zemeckis cresceu no Cinema com um franco suporte de Steven Spielberg, que produziu seus primeiros filmes e acreditou nele, mesmo com alguns fracassos iniciais de bilheteria. Após este começo um pouco claudicante, porém, ele justificou tanta confiança com sucessos como Tudo por uma esmeralda, Contato, Náufrago e Revelação, além de dois clássicos do Cinema, De volta para o futuro (que gerou uma popular trilogia) e Forrest Gump, o contador de histórias (com o qual ganhou seu Oscar como diretor). Teve, inevitavelmente, por um tempo que aturar certas piadinhas como sendo um sub-Spielberg, até por serem diretores de estilo parecido, mais clássico e narrativo, e que buscam sempre o uso de inovações tecnológicas para contarem melhor suas histórias. Não à toa, são diretores tão populares entre o público, que costuma apreciar muito seus filmes, já que ambos visam exatamente isto, ou seja, o deleite do espectador.

O voo não se encaixa realmente num perfil de um sucesso de arrasar quarteirão, até por ser um filme de produção mais modesta (para padrões do Zemeckis, ou seja, não é algo tão modesto assim, e tem uma cena impressionante de acidente aéreo, das melhores da História do Cinema, sem exagero). Mas é o típico filme que agrada a um público vasto, e consegue seu lugar ao Sol, porque Zemeckis sabe conduzir o público para onde quer. Técnicas narrativas ele tem de sobra, a ponto de parecer um mágico que conduz o olhar do público para uma mão, enquanto puxa o lenço vermelho com a outra. Sua mágica em O voo é fazer o público torcer e simpatizar com um piloto de avião amargo, que comanda uma aeronave bêbado e drogado, e que demonstra uma tendência alucinante de autodestruição, como é o caso de Whip Whitaker, interpretado brilhantemente por Denzel Washington. Claro que a própria escalação de tão renomado ator já garante metade da mágica. Dotado de incrível carisma, e sendo uma estrela por mais de 25 anos (desde que despontou por sua atuação central em Um grito de liberdade, de 1987), Denzel Washington consegue cativar o público com desenvoltura, fazendo algo difícil parecer muito fácil. Ele acrescenta dimensões ao seu personagem que enriquecem o filme de Zemeckis, e facilitam o seu trabalho. Conseguiu uma indicação ao Oscar pelo filme, mais uma em sua brilhante carreira, repleta de personagens marcantes (e pensar que seu primeiro papel no Cinema foi como um reles bandido em Desejo de matar!).

O brilho do filme não se detém apenas em Denzel Washington, porém, apesar dele ser seu ponto alto. Os outros atores lhe dão um bom respaldo, como Don Cheadle (Hotel Ruanda), como seu advogado, que tenta fazer milagres jurídicos para evitar sua derrocada; Bruce Greenwood (o Presidente Kennedy de Treze dias que abalaram o mundo) que é tão experiente como ele, além de ser seu maior amigo; e John Goodman (que também brilhou em Argo), de novo roubando cenas como o homem que lhe fornece suas drogas. Melissa Leo (O vencedor), cuja personagem é tantas vezes anunciada pelo filme, acaba tendo uma participação mais discreta, mesmo que decisiva para a trama. Mas, além dos atores, o roteiro também é instigante, escrito por John Gatins (também indicado ao Oscar). Ele lida com uma situação inusitada, onde o herói e o vilão são a mesma pessoa, onde a experiência e a negligência pertencem ao mesmo corpo. O voo divide espectadores dentre os que acusam Whip Whitaker de ser um bêbado irresponsável, que nunca poderia dirigir uma aeronave, e outros que preferem focar nos seus atos heroicos do que em sua condição de alcoólatra. O filme chega a deixar implícito, em alguns momentos, que a bebida e a cocaína poderiam ter inclusive ajudado Whip, deixado-o mais calmo e controlado em uma situação tensa, o que soa como sacrilégio absoluto em uma época tão eivada de correção política como esta atual. No meio desta turbulência, Zemeckis (ele também um piloto, adora voar) conduz seu avião cinematográfico com serenidade por quase todo o filme, demonstrando sua experiência de tantos anos como diretor.

O problema é que todo avião tem que pousar, e que todo filme tem que ter o seu final. A competência e a coragem que O voo demonstra em quase toda a sua duração cai por terra em um final pouco crível e que soa artificial. Denzel Washington faz o possível, talvez até mais que o possível, para evitar o desastre, com uma rica atuação, mesmo com o roteiro soltando fumaça por tudo quanto é lado na parte final do filme. Do começo dos anos 30 até os anos 60, muitos filmes americanos tiveram que incluir finais moralistas para atender ao Código Hayes (uma espécie de autocensura imposta pelos estúdios, com o intuito de não perder uma parcela conservadora importante do público), o que de certa forma os descaracterizou (talvez o gênero noir tenha sido o que mais sofreu com isso, por em geral conter tramas e personagens imorais). Neste sentido O voo parece um filme desta época, com um final que tenta seguir, se não o finado Código Hayes, um outro possivelmente ainda mais pernicioso: O Código do Politicamente Correto. É um final que parece panfletário, a ser citado entre lágrimas em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos. Em comparação com Náufrago (o último filme que Zemeckis dirigira que não fora uma animação), outro filme em que um acidente aéreo muda toda a trama e a história do personagem central, O voo apresenta um desenlace bem menos lógico e natural. Este fim do filme agrada certa parcela do público, é justo lembrar isso, nem todos que o assistem sentem-se insatisfeitos com ele, mas deixa um gosto amargo na boca de outros espectadores que não compram a ideia de tamanha reviravolta na trama e na conduta do personagem central.

Robert Zemeckis dirigiu um belo filme, que mesmo com este final controverso continua tendo méritos e gerando discussões interessantes e relevantes sobre a prevalência, ou não, da competência sobre a responsabilidade. Mas aterrisou feio no final, logo ele, que soube criar alguns belos finais em seus filmes, que eram sim em geral moralistas, mas não pareciam forçados, tudo fluía naturalmente. E, pior, ao que parece Zemeckis e o roteirista John Gatins fizeram isso sóbrios. Ambos passariam em qualquer blitz da Lei Seca, mas fizeram uma barbeiragem mesmo assim. Zero pontos na carteira e nenhuma multa para os dois, algo muito meritório, mas tiveram um carro batido no final das contas. Mais ou menos o oposto do que fez Whip Whitaker no filme... 

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O amante da rainha (En kongelig affære – 2012)




No final do Século XVIII, ainda havia algo de podre no Reino da Dinamarca. Não havia o Hamlet fictício de William Shakespeare, é claro, mas as intrigas da corte e as disputas pelo trono continuavam atribuladas. Um país então bastante atrasado em relação ao resto da Europa, a Dinamarca teimava em se ater a tradições feudais, com uma nobreza e um clero que não queriam largar o osso, e com quase todos os camponeses presos a relações de servidão em relação aos nobres. Para piorar tudo mais um pouco, o Rei em exercício era Christian VII, considerado devasso e com rompantes de insanidade. Sua jovem esposa, recém-vinda da Inglaterra, passa vários apertos a seu lado, sendo maltratada o tempo todo, mesmo dando ao Reino de cara um herdeiro masculino ao trono. É neste cenário nada acolhedor que Johann Friedrich Struensee chega para ser o médico pessoal do Rei. Mesmo sem grandes currículos, e em certo ostracismo por ter ideias iluministas (até escrevera panfletos assim, que o relegaram a ser um mero médico de província), Struensee conquista o Rei inicialmente com sua erudição, paciência e cumplicidade. Mas é uma conquista árdua, sujeita a perseguições e suspeitas de um Rei profundamente instável, que podia sorrir para ele num momento, e ordenar sua execução no minuto seguinte. É andando nesta corda bamba balouçante que Struensee tenta se equilibrar, ao mesmo tempo em que vai conquistando a confiança da Rainha com sua cultura e seus ideais.

O infeliz título em português do filme tenta desmanchar um pouco os prazeres, mas não consegue, pois este é um filme fascinante, baseado em incríveis fatos reais, sobre um passado pouco conhecido de um país hoje visto como progressista, mas que era profundamente retrógrado na época. O filme tem alguns paralelos com As loucuras do Rei George, mas vai mais fundo do aquele filme ia, se concentrando também na vida ao redor do monarca. Struensee tenta influenciar aos poucos o Rei, querendo que ele faça as reformas necessárias, mas como fazer isso com um Rei tão instável, e com a nobreza e o clero em seus percalços? Struensee enxerga toda a floresta, mas os homens no poder só querem defender as suas árvores em particular, e estão dispostos a tudo para defender seus status e privilégios.

A atuação do trio principal de atores ajuda sobremaneira a que o diretor Nikolaj Arcel consiga envolver o público na trama real. Mads Mikkelsen, disparado o ator mais conhecido do elenco internacionalmente (o Le Chiffre de Cassino Royale, tendo atuado também em Coco Chanel & Igor Stravinsky e Depois do casamento, entre outros), atua com muita competência e carisma como Struensee, um homem que faz um pouco de tudo, e tenta tocar todos os instrumentos ao mesmo tempo sem poder desafinar. Alicia Vikander (a Kitty de Anna Karenina, versão de 2012 dirigida por Joe Wright) está um degrau abaixo como Caroline Mathilde, mas ainda assim demonstra em seu jovem semblante a decepção e receio de fazer parte de um casamento arranjado com um homem, a princípio, tão estúpido e instável. E Mikkel Boe Folsgaard dá um show como Christian VII, sendo ameaçador e frágil ao mesmo tempo, sempre deixando o espectador e os outros personagens em uma posição instável, sem saber como vai proceder em seguida. O ator, em sua estréia no Cinema, ganhou o Urso de prata em Berlim por sua atuação, com muito merecimento (o filme também ganhou o Urso de prata pelo inteligente roteiro de Nikolaj Arcel e Rasmus Heisterberg, parceiros de longa data, inclusive no roteiro da versão sueca de Os homens que não amavam as mulheres, de 2009, dirigida por Niels Arden Oplev). Um prêmio muito merecido, e que aponta um grande futuro para um ator que passou com louvor por um batismo de fogo, em um papel muito difícil. A veterana Trine Dyrholm (de Em um mundo melhor, filme vencedor do Oscar de filme estrangeiro de 2010, de Susanne Bier, e também Festa de família, de Thomas Vinterberg), como Juliane Marie, está sempre à espreita para defender seus interesses, assim como o sinistro Guldberg, interpretado com a frieza necessária por David Dencik (de O espião que sabia demais e Cavalo de guerra). Coadjuvantes como eles carregam de tensão uma trama que pode parecer antiquada em sua essência, por abordar reis e nobres, mas que continua relevante por analisar a eterna resistência a avanços, mesmo que sejam daqueles com benefícios incontestáveis a 99% da população.

Nikolaj Arcel acerta em praticamente tudo no filme, desde a reconstituição de época, como também no comando das atuações e no ritmo do filme. Para um diretor que diz querer fazer um filme de cada gênero antes de se aposentar, pode-se dizer que ao menos neste drama histórico ele obteve sucesso, em sua recente carreira de diretor. Seus pecadilhos são perfeitamente perdoáveis, como deixar o linguajar do filme em dinamarquês, quando na verdade esta era a língua do povo, mas não dos nobres e da corte dinamarquesa, que falavam alemão (mais um aspecto do quanto estavam alienados em relação ao resto do país). É ajudado, claro, por uma competente equipe, mais notadamente o Diretor de fotografia, Rasmus Videbaek, e os compositores da bela trilha sonora, Gabriel Yared e Cyrille Aufort. Juntos, todos eles criaram uma aula de história fascinante em forma de Cinema, que tem tudo para agradar a todos os públicos. Se fosse um filme americano, O amante da rainha concorreria a várias categorias no Oscar (dentre outros prêmios de prestígio). Como não é, tem que se satisfazer com a categoria de filme estrangeiro apenas, e ser visto por um público bem mais reduzido. É injusto, mas não deixa de ser algo corente com o próprio enredo do filme, porém. O amante da rainha não tem grandes currículos, por contar com diretor e atores (afora Mads Mikkelsen) desconhecidos. Mais ou menos como Struensee, seu destino é comer pelas beiradas, e tentar conseguir deixar sua marca mesmo assim. Apesar de tudo, uma civilização não precisa de mais do que alguns Struensees para navegar para a frente, mesmo com tanta gente remando para trás. Às vezes só um basta, inclusive. A história costuma guardar os nomes de Reis e Presidentes, mas as pessoas que mais importam raramente estão nessas posições, e O amante da rainha é uma prova disso.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A hora mais escura (Zero dark thirty – 2012)




Muitos podem pensar que o filme A hora mais escura tenha nascido como um tentativa de glorificar os EUA, com o momento de catarse coletiva americana que foi a morte de Osama Bin Laden, em 2011. Mas, na verdade, o projeto inicial de Kathryn Bigelow e do roteirista Mark Boal (ambos formaram uma oscarizada parceria em Guerra ao terror, de 2008) era totalmente diverso. Eles já tinham inclusive finalizado um roteiro e estavam prontos para filmar um enredo sobre a batalha de Tora Bora, onde os americanos quase conseguiram pegar Bin Laden num complexo de cavernas no Afeganistão, em 2001. Tudo estava pronto para um projeto calcado em decepção militar, e no sentimento global de que nunca Bin Laden seria encontrado. Mas a vida puxou o tapete da diretora e do roteirista, ao mesmo tempo em que lhes deu um grande presente, quando estourou a notícia de que Bin Laden tinha sido alvejado por uma força especial de operações dos EUA (o SEAL Team Six) em uma espécie de bunker em Abbottabad, no Paquistão, em 2 de Maio de 2011. Eles sentiram que tinham, assim, que redirecionar todo o projeto, e tentar entender como foi o sofrido (e burocrático) processo de não só se descobrir onde Bin Laden estava, como também de conseguir capturá-lo ou matá-lo no local.

Mark Boal e Bigelow fizeram uma extensa pesquisa, que inclusive trouxe dúvidas e acusações de políticos americanos de que teriam tido um acesso indevido a informações confidenciais, além de possivelmente estarem querendo puxar uma brasa para a sardinha do Presidente Barack Obama, que no fim das contas tinha dado a autorização final para a investida do SEAL Team Six. Bigelow logo descartou esta última hipótese, já que o nome de Obama sequer é citado em seu filme. Assim como Guerra ao terror, este seu filme não tem um caráter muito político, o foco de Bigelow está mesmo em mostrar as entranhas da guerra por parte dos soldados e, mais especialmente no caso de A hora mais escura, nos funcionários da CIA que tentam descobrir informações vitais para se conseguir o objetivo final.

Quanto à alegação de que a produção do filme tivera acesso a informações proibidas a civis, as respostas geralmente seguiam a linha de “sem comentários”, com a esperada defesa do sigilo das fontes. No fundo, o fato de A hora mais escura ter recebido críticas de diversos políticos e militares americanos não deixa de ser um bom sinal, isso mostra que é um filme que incomodou o poder estabelecido (filmes chapa-branca só recebem elogios dessas pessoas). O filme dirigido por Kathryn Bigelow de fato consegue fazer o espectador se sentir por dentro de todo aquele processo, inclusive fazendo críticas à burocracia e inércia do Governo americano e dos militares, que de fato dão a impressão de que vão deixar Bin Laden escapar quantas vezes for localizado. E, claro, a diretora ainda mete a mão com vontade no maior vespeiro de todos, o uso de tortura pelos americanos para obter informações dos prisioneiros. Aqui, não tinha muito para onde correr, se ela não mostrasse tortura nenhuma, seria acusada de estar pilotando um filme chapa-branca que receberia uma chuva de críticas por parte de críticos de Cinema e jornalistas, dentre outros profissionais, por estar tentando maquiar a realidade. E se mostrasse seu uso, o Governo e os militares americanos viriam de garfo e faca em cima (como vieram), dizendo que o filme é apenas uma ficção, um monte de mentiras, o desprezando, em suma. Pelo visto, já que as críticas eram inevitáveis, Bigelow resolveu recebê-las fazendo um filme duro, verídico e direto-ao-ponto, como é de seu feitio. A tortura está no filme, mas não é glorificada de forma alguma, inclusive fica-se com a impressão que, sob tortura, as informações poderiam ser inventadas só para que o torturado parasse de sofrer.

E é justamente na forma de se lidar de forma mais inteligente com a busca por Bin Laden que entra em cena a personagem Maya, de Jessica Chastain. Ela é definida desde o começo como uma “killer”, que se refere não à sua capacidade de puxar o gatilho, mas de não desistir nunca, não importando os obstáculos. A Maya de Jessica Chastain é obstinada, e guarda muitas semelhanças com o personagem de Jeremy Renner em Guerra ao terror. Ambos eram obsessivos em seus trabalhos, indisciplinados, e com uma vontade férrea de fazerem o que acham certo, pouco importando ordens em contrário, assim como ambos parecem não ter vida fora do trabalho. Maya, inclusive, dá a impressão de não ter sequer um amigo, ela é um lince com olhos apenas para Bin Laden, por mais escondido que ele esteja. E parece tão fanática como ele, mesmo que com objetivos claramente diferentes (talvez Bin Laden nunca fosse capturado se quem estivesse à sua procura trabalhasse só de 9 às 5, convenhamos). Ela consegue oprimir seus superiores, algo muito difícil em ambientes de hierarquia militar, ainda mais para uma mulher. Todos de certa forma a temem, e acima de tudo a respeitam. É quase como se Jessica Chastain representasse a própria Kathryn Bigelow dentro do filme, tendo em vista que Bigelow vêm se afirmando em um ambiente eminentemente machista que é o gênero Guerra, visto como machão por natureza. Jessica Chastain, que surgiu para o grande público como a esposa dócil e submissa de Brad Pitt em A árvore da vida, de Terrence Malick, mostra que pode interpretar com igual competência um papel tão mercurial e imponente como o de Maya, sem cair na caricatura. Sua meteórica carreira assombra por ela já se mostrar estabelecida no Cinema americano, fazendo diversos filmes importantes, um atrás do outro (A árvore da vida, O abrigo, Histórias cruzadas, Os infratores, etc.), com ela não tem essa de “comer pelas beiradas”, ela já está lambendo o prato. Chastain domina totalmente o filme, mesmo nem tendo tanto tempo em tela assim, e ainda por cima em um filme composto de inúmeros personagens, interpretado por atores da chapa de James Gandolfini, Jason Clarke (ótimo também, como um torturador que vai sentido o peso do que faz), Jennifer Ehle (Contágio), Kyle Chandler (Super 8), Harold Perrineau (o Michael da série Lost) e Joel Edgerton (Guerreiro).

O filme, mesmo um pouco longo, tem um bom ritmo, e exige uma certa atenção do espectador para não se perder no meio de alguns nomes e patentes. Mas tal esforço é recompensado, pelo vislumbre dos meandros da inteligência militar americana, e pelo seu excelente final, onde vemos como foi executada a operação que culminou com a morte de Bin Laden. É uma longa sequência magistral, de grande tensão, e que passa a importância daquele momento, após dez anos procurando um homem que causara uma cicatriz na alma dos EUA. Fecha com competência um filme tenso como A hora mais escura, cujo título em inglês se refere exatamente à hora (no jargão militar, meia-noite e meia) da operação que trouxe uma rara vitória, inclusive midiática, na guerra contra o terrorismo.

Kathryn Bigelow impressionou muita gente ao ser a primeira mulher a ganhar o Oscar, ainda mais no ano de Avatar (o recordista com a maior bilheteria da história do Cinema), dirigido justamente por seu ex-marido, James Cameron. Se parecia um Oscar precipitado, ganho num impulso, A hora mais escura é um argumento em celulóide, uma chancela after-the-fact que valida este Oscar recebido por ela em 2010, não só pelas indicações ao prêmio que o filme recebeu (para melhor Filme, Atriz, Roteiro original, Edição e Edição sonora), como também pela evolução que ela mostrou com este filme, que pode não ser político, mas faz pensar sobre a pouca eficiência das torturas, a burocracia e a obsessão de pessoas que largam tudo por um ideal. A hora mais escura chegou para Osama Bin Laden em 2011, morto num complexo onde nunca saía, em total reclusão, e com o corpo jogado no mar. Para as carreiras de Jessica Chastain e Kathryn Bigelow, porém, o futuro traz grandes expectativas, e o mundo se abre para elas. Melhor nem tentar muito resistir, até porque ambas já demonstraram que não tem nenhum medo de cara feia.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Os miseráveis (Les misérables – 2012)




A cada ano, o Cinema apresenta casos que são logo marcados pela crítica como “filmes feitos para ganhar Oscars”. Talvez este seja também o caso de Os miseráveis, por ser uma adaptação de um musical de enorme sucesso na Broadway, por tantos anos. Porém, talvez o filme integre também uma categoria mais seleta e muito inusitada de “filmes que foram influenciados pelo próprio Oscar”. Em Fevereiro de 2009, Hugh Jackman impressionou os que o conheciam apenas por suas atuações em filmes de ação, mais notadamente os da série X-Men como Wolverine, pois foi o apresentador do Oscar, onde cantou e dançou com Beyoncé e, entre outros, Amanda Seyfried, e também chamou Anne Hathaway para o palco, onde ambos fizeram um dueto muito elogiado (são muito amigos, inclusive). Já em Fevereiro de 2011 foi a vez de Anne Hathaway apresentar o Oscar (junto com James Franco), e ela cantou uma versão irônica de “On my own” (justamente do repertório de Os miseráveis) que brincava com Hugh Jackman, enquanto na plateia também estava Tom Hooper (vencedor do Oscar daquele ano por O discurso do Rei), que já tinha iniciado o processo de escolha de atores para Os miseráveis. Anne Hathaway jura que foi uma coincidência. Tom Hooper sempre desconfiou que não, mas não se incomodou nem um pouco com isso pois  assim foi possível ver, em primeira mão, como eles poderiam funcionar muito bem em seu próximo filme.

Coincidência ou não, os dois atores foram escalados para Os miseráveis, e valorizam demais o filme. Ambos receberam duas muito justas indicações aos prêmios de Ator e Atriz coadjuvante. Hugh Jackman chegou a passar fome e sede para poder convencer como o Jean Valjean enquanto prisioneiro, e canta com competência, em um difícil papel. Com experiência em musicais desde o começo da carreira (atuou nos palcos em Oklahoma, e na versão musical de Sunset Boulevard, no papel clássico de Joe Gillis), se sai muito bem cantando, e também ao passar para a tela o quase infindável périplo de Valjean, sempre fugindo da lei, principalmente da figura de Javert (Russell Crowe, que está deslocado no filme, até por não cantar muito bem). Anne Hathaway, também com boa experiência em musicais (é uma soprano, inclusive, e competente), rouba o filme na sua curta aparição, aproveitando cada segundo em que aparece, mostrando a decadência moral e física de Fantine, uma personagem que come e vomita o pão que o diabo amassou. Sua interpretação de “I dreamed a dream” (canção que recebeu grande destaque recente por ter sido a que Susan Boyle cantou no programa de TV Britain’s got talent, que foi dos vídeos mais vistos na história da Internet) é fascinante pelo desespero da sua personagem, que sabe que não tem mais qualquer esperança. É uma cena que já nasceu clássica, e que não tem um corte sequer, Anne Hathaway a cantou do início ao fim, emocionando até a equipe de filmagem. E cantou mesmo, porque o filme tem a raríssima distinção de não ter sido filmado com as músicas já gravadas, onde os atores apenas se preocupando em movimentar corretamente suas bocas, como acontece em 99% dos musicais. Nada disso, Tom Hooper queria o máximo de realismo e de interpretação de todos os seus atores, e todos eles tiveram que cantar de verdade, durante a gravação, algo extenuante para os atores e para a equipe, que não pôde fazer qualquer barulho. O resultado final reflete a importância desta medida, de fato trazendo interpretações mais ricas dos personagens e das canções.

Os outros atores também se saem bem em seus papéis e em suas respectivas cantorias, como Amanda Seyfried (Cosette), Eddie Redmayne (Marius) e Samantha Barks (Éponine). Há até uma simpática homenagem a Colm Wilkinson, o Jean Valjean original dos palcos americanos e ingleses, que no filme interpreta o bispo que muda o destino de Jean Valjean. As exceções ficam por conta do já citado Russel Crowe (que, no fundo, não pertence muito ao ambiente de um musical), e também de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, como o casal Thénardier, que preferem partir para algo mais caricato e voltado para a comédia, tirando um pouco a ameaça que o casal representa à dupla Valjean e Cosette. O próprio Tom Hooper erra e acerta no filme. Acertou, sem dúvidas, na exigência de se gravar as vozes durantes as filmagens mesmo, e em registrar parte da crueza e desesperança da trama. Em compensação, ele abusa um pouco dos closes nos atores (talvez até para realçar a cantoria “ao vivo” deles), tirando com isso parte do caráter épico da história. É claro que este Os miseráveis deve boa parte de seu DNA ao musical da Broadway, mais até do que ao ultra-clássico livro de Victor Hugo, e com certeza deverá ser mais comparado com o musical do que com o livro propriamente dito. Mas mesmo assim a história parece por demais acelerada no começo, com algumas partes da trama, importantes no enredo (como o drama de Valjean de se entregar ou não para a justiça, e livrar um pobre condenado que fora confundido com ele) se desenrolando rápido demais, e toda a parte final ficando curiosamente um pouco esticada. Os mais focados no livro de Victor Hugo e em uma adaptação de sua obra mais fidedigna devem continuar com a mira apontada para a adaptação francesa de 1934, dirigida por Raymond Bernard, com Harry Baur como Jean Valjean e Charles Vanel como Javert, até por esta versão contar com 281 minutos de duração (talvez a obra de Victor Hugo exija mesmo uma duração deste quilate, para ser mais corretamente adaptada).

Os miseráveis, com toda a sua inegável competência musical e artística (a fotografia, direção de arte e figurinos são todos de primeiríssimo nível), demonstra o peso de seus 158 minutos (mais do que o clássico do cinema francês de 1934 demonstrava em seus 281 minutos, o que prova que tudo é relativo), tendendo a cansar um pouco o espectador, principalmente o que não curte muito os musicais. É difícil, aliás, que as pessoas que desprezem musicais mudem de ideia por causa de Os miseráveis. Quando isso acontece e o preconceito é vencido, geralmente ocorre por causa de um musical que apresente danças mirabolantes, e/ou canções “justificadas” (isto é, que os personagens cantam por algum propósito real, como ter que se apresentar num show, por exemplo). Cantando na chuva, dentre muitos outros exemplos, vence o espectador resistente muito por causa de sua fenomenal dança, e um filme como All that Jazz o faz por (ótimas) canções quase sempre justificadas e reforçadas por um excelente roteiro. Os miseráveis, porém, só tem cantoria (quase que o tempo todo, pouquíssimos são os diálogos “normais”) e todos cantam sem esta tal “justificativa” que facilitaria a vida dos que não curtem muito os musicais, apesar do roteiro do filme ser muito bom, até por derivar do clássico de Victor Hugo.

O saldo final é satisfatório, principalmente para os fãs do gênero e/ou para os que tem doces recordações do musical da Broadway. O repertório, o mais importante de qualquer musical, é de notória qualidade e muito bem executado. Porém, fica um pouco no ar o senso de que falta alguma coisa. Não faltou crueldade e desesperança, isso Tom Hooper e os atores retrataram muito bem. Nem nada referente às canções ou a boa parte dos atores. Nem coragem, pois gravar as vozes no set de filmagens cheira a loucura completa para muitos produtores, e Tom Hooper bancou isto, junto com seus atores. Talvez tenha faltado um pouco de magia, de impacto, que sobrou, por exemplo, na cena em que Anne Hathaway barbariza cantando “I dreamed a dream” entre lágrimas. Uma grande cena em um filme correto, competente, que porém carece de outros grandes momentos como este. Os miseráveis agrada, mas não brilha, e era de se esperar que brilhasse um pouco mais, por ser a extensão cinematográfica de um livro e uma peça tão famosos e elogiados.