Filme autoral por excelência, Sem
sol foi dirigido, fotografado e editado por Chris Marker, que ainda compôs música
e elaborou os efeitos especiais do filme (adotando pseudônimos para tal). Uma
personalidade tão fascinante quanto misteriosa, Chris Marker foi um renomado recluso
(raríssimas vezes deu entrevistas, e mandava um desenho de um gato quando lhe
solicitavam uma foto sua), estudou filosofia juntamente com Jean-Paul Sartre,
foi fotógrafo, jornalista, adorava viajar, fez vários documentários comunistas
(inclusive um sobre Carlos Marighela, e outro das torturas no Brasil)... Sem
sol inevitavelmente reflete este caldeirão de características pessoais, com um
tom filosófico-meditativo, ancorado na narração de Florence Delay (da Academia
Francesa). Chamá-lo de documentário seria reduzi-lo, pois Sem sol transcende barreiras
e gêneros, sendo dos filmes mais difíceis de se categorizar. Melhor definir
como “um filme de Chris Marker” mesmo, pois seus filmes são muito particulares.
Terrence Malick talvez seja o diretor que mais se assemelhe a Marker, até por
questão de personalidade (igualmente recluso, com fascinação pela natureza e também
formado em Filosofia). Mesmo assim, cada um segue sua vertente.
Sem sol é um filme de 100 minutos
e um milhão de leituras possíveis. Usando
tanto material seu como de outros filmes, Marker analisa o Japão e sua incrível
ambivalência entre tradição e futurismo (o fascínio dos japoneses por jogos
eletrônicos já era evidente nos anos 80), assim como sua capacidade de mastigar,
regurgitar e nacionalizar características ocidentais. Se debruça também sobre a
caça de animais, sobre olhares destemidos que teimam em olhar a câmera de
frente, sobre a crueldade da natureza, que tudo pode destruir em um momento
apenas... Marker atira para vários lados, e acerta o que vê e o que não vê. Mas
foca principalmente na memória, coletiva ou individual, e de como ela é evasiva
e indecifrável. Como não poderia deixar de ser, volta-se a seu filme-fetiche
preferido, Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock (que já o tinha inspirado a
fazer seu famoso curta La jetée), chegando a visitar locações do filme em San
Francisco, como se buscasse um impossível encontro com a personagem Madeleine
Elster de Kim Novak. Quase como se
dissesse que o Cinema parece ser o melhor meio de preservar a memória, mas que
não consegue evitar que esta continue sendo efêmera, emotiva e inalcançável.
Ao final do filme, o espectador
pode ficar perdido, desorientado ou iluminado. Extasiado ou decepcionado por
não encontrar respostas fáceis. Todas reações possíveis e compreensíveis. Mas
nunca ficará indiferente, pois é um filme que o faz refletir sobre mil
questões, e é difícil que nenhuma lhe cause um mínimo de interesse. E pode
voltar, se desejar, a ver 10 vezes o filme, que terá 10 leituras diferentes. O
filme sempre será o mesmo, mas o espectador muda por dentro, e a experiência cinematográfica
se altera. Um filme intuitivo como Sem sol não tem script definido. Mas a vida
também não tem. Chris Marker faleceu recentemente, no dia de seu aniversário de
91 anos. É agora parte de nossa memória, como cineasta, cidadão e ser humano.
Espera-se que a memória de sua vida e seu trabalho não seja efêmera, que não
perca brilho com o passar dos anos, e que alguns cineastas e artistas continuem
tentando trilhar caminhos parecidos. Nunca encontrariam Chris Marker realmente
(assim como ele nunca encontraria Madeleine Elster em San Francisco), até porque cada
artista tem seu caminho pessoal e intransferível, mas a jornada seria
fascinante mesmo assim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário