Atualmente este fato pode causar
estranheza, mas o xadrez, pelo menos até a década de 80, costumava ocupar um
lugar de certo destaque em jornais esportivos no Brasil. Principalmente em
disputas de título mundial, era comum ser estampado não só o vencedor de cada
partida, mas todos os lances dela também, por vezes com comentários de experts.
Na URSS, então, o xadrez era uma febre, e um motivo de orgulho para o país por
dominar quase inteiramente o cenário mundial. Fora de controle evoca um pouco
este saudosismo e trata justamente da fictícia (mas não muito) disputa acirrada
pelo título mundial de dois soviéticos, que não poderiam ser mais diferentes
entre si: Akiva Liebskind (Michel Piccoli) é o detentor do título, de idade
avançada, com saúde fraca (seu coração ameaça pifar), e o queridinho do partido
comunista justamente porque seu adversário é Pavius Fromm (Alexandre Arbatt),
jovem irreverente, provocador, rebelde, e consequentemente exilado da União
Soviética. O cenário da lavada de roupa suja soviética é a neutra Suíça, mas o
tom político serve apenas de molho para o prato principal, o real tema do
filme: A absoluta obsessão de dois homens que querem atingir (ou manter) o
máximo patamar de suas profissões, e que não se importam nem um pouco de pagar
o preço por isso.
Suas mulheres, interpretadas por
Liv Ullmann e Leslie Caron, esposas de Fromm e Liebskind respectivamente,
também pagam o preço por isso, e pode-se dizer que até as atrizes igualmente o
fazem, pois apesar de serem ambas muito famosas, ocupam pouco destaque na trama
(Leslie Caron é o apoio moral de seu marido, mal emitindo palavras mas sempre a
seu lado, e Liv Ullmann continua morando na URSS, o que preocupa Fromm). O que
importa mesmo é a disputa, por vezes nada leal, de Liebskind contra Fromm, onde
nenhuma minúcia é deixada ao acaso, nem mesmo o peso das peças e o barulho que
o solo ou a cadeira emitem quando um dos jogadores se movimenta. Cada detalhe
importa, o que puder desconcentrar ou inferiorizar o adversário pode fazer
diferença no final, e as equipes de cada competidor fazem o possível para
ajudar seu enxadrista. A disputa deste filme, aliás, se baseia um pouco na de Anatoly
Karpov e Viktor Korchnoi pelo título mundial em 1978 em alguns detalhes, onde ambos abusaram de
suas paranoias. Assim como o golfe, o xadrez é daqueles esportes que parecem
pacatos e tranquilos, mas que costumam cobrar seu preço na pressão absurda que
seus jogadores são submetidos. Cada jogo é como uma guerra, e cada derrota dói
na alma. Espíritos mais fracos são destroçados, como é o caso de um enxadrista
arrasado que ajuda Liebskind só para ter o possível prazer de ver Fromm ser
derrotado.
Xadrez é a vida daqueles homens,
que jogam e treinam quando estão comendo, ou na piscina, no carro, onde for.
Atingir este nível de excelência é para poucos obstinados, que claramente mal
pertencem a um mundo real, e os limites da sanidade por vezes parecem ser
ultrapassados. Richard Dembo, o diretor do filme, conduz com maestria este
duelo de gerações, espíritos e egos, que ganhou o Oscar de melhor filme
estrangeiro em 1984, justamente em seu filme de estreia. A se lamentar que
tenha dirigido apenas mais dois longas, O instinto dos anjos (1993) e Enquanto
houver esperança (2005), tendo falecido em 2004 justamente durante a
pós-produção de seu último filme. Estranhamente não conseguiu embalar na
carrreira, apesar deste começo muito promissor. Alexandre Arbatt também não
conseguiu mais repetir o impacto de sua atuação como Fromm, um dínamo que tenta
esmagar quem está a seu redor, e que idolatra e desrespeita, ao mesmo tempo, o
personagem de Michel Piccoli, que tem outra atuação sublime (das melhores de
sua longa carreira). Fora de controle é um filme que encanta os amantes do
xadrez, mas não só a eles, pois no fundo nem é lá tão importante que o
espectador conheça muito do esporte. O filme envolve qualquer um, nesta jornada
de dois obcecados que sacrificam tudo em nome de uma vitória. Quem quiser
acompanhá-los que aguente os solavancos da estrada, porque eles não freiam para
ninguém.
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