Vicente Amorim é filho de
diplomata (o Ministro da Defesa Celso Amorim), nasceu em Viena e, mesmo depois
sendo criado no Brasil, passou a vida inteira sem criar raízes, mudando sempre
de cidade. Posteriormente trabalhou como assistente de direção em alguns
projetos estrangeiros localizados no Brasil (como Orquídea selvagem e Brincando
nos campos do senhor), dirigiu dois filmes sob a temática nordestina (O caminho
das nuvens e o documentário 2000 Nordestes) e depois famosamente dirigiu numa
produção europeia estrelada por Viggo Mortensen (Um homem bom). Talvez este seu
caráter internacional tenha sido fundamental para encarar a adaptação deste livro
homônimo de Fernando Morais, filmando ele no Brasil com um elenco quase todo
japonês, e com o filme predominantemente falado em japonês. Sim, Corações sujos
é singular por ser um filme brasileiro em língua estrangeira, tratando de uma
parte da história largamente ignorada por brasileiros e japoneses.
Baseado na recusa de boa parte da
colônia japonesa no Brasil em acreditar na derrota para os americanos na 2ª
Guerra Mundial, e o consequente rebaixamento de seu imperador Hiroíto da
condição de Deus para a de um mero mortal, Amorim resolveu focar na história de
personagens fictícios, mas que resumiam o que de certo modo era explanado no
livro de Fernando Morais. O curioso é ver como, mesmo compostos de temas em
tese tão diferentes, seus últimos dois filmes são tão semelhantes, tratando da
crise de indefesos indivíduos contra a ordem de uma cultura hegemônica a que
pertenciam. Enquanto que em Um homem bom acompanhamos Viggo Mortensen ser
envolvido numa espiral de decadência moral alemã nazista, que o arrasta sem
misericórdia e cobra seu envolvimento, algo de muito semelhante ocorre com Takahashi
(vivido pelo ator Tsuyoshi Ihara, de 13 assassinos e Cartas de Iwo Jima) em
Corações sujos, um mero fotógrafo que se vê envolvido numa disputa fundamentalmente
de japoneses contra japoneses, que envolve a honra e a desconfiança de um povo
situado dentro de um país ditatorial em guerra com o Japão, como era o caso do
Brasil de Getúlio Vargas. O envolvimento de Takahashi expõe o perigo
(infelizmente ainda bastante atual) do fanatismo e do consequente pouco (ou
nenhum) questionamento que ele acarreta, transformando homens pacatos em seres
capazes de atitudes muito violentas contra seus conterrâneos que aceitam o
“inaceitável”, ou seja, a derrota japonesa. Mas o sangue que deveria limpar a
honra muitas vezes suja consciências, e desafia o conceito de identidade que
alguns presumem possuir de forma tão natural. Entre a alienação (ou extermínio)
e a barbárie, muitos ficam divididos entre defender até a morte a pátria e a
honra japonesas, ou aceitar a derrota e seguir adiante com suas pacatas vidas
(isso, claro, se os fanáticos permitirem).
Contando com atores conhecidos no
Japão, entre eles Takako Tokiwa, Eiji Okuda, Shun Sugata (de Kill Bill vol. 1 e
O último samurai) e Kimiko Yo (atriz coadjuvante de A partida), e com apenas
Eduardo Moscovis como mais famoso no elenco brasileiro, o filme
consequentemente apresenta um ritmo mais típico de um filme japonês que
brasileiro, mais lento e reflexivo do que o público daqui está acostumado.
Algumas escolhas técnicas também podem causar uma certa alienação do público,
como o abuso do uso de uma fotografia desfocada e uma trilha sonora que, ainda
que bela, costuma se intrometer demais em algumas cenas. Porém os
questionamentos que o filme apresenta, e o olhar para uma época obscura da
história nipônico-brasileira, talvez façam com que cresça ainda um pouquinho
mais o fascínio pela cultura de um país paradoxalmente tão tradicional e, ao
mesmo tempo, rapidamente adaptável como é o Japão. O tenso conflito entre
tradição e modernidade pulsa no passado retratado em Corações sujos e talvez
nunca pare de pulsar, em cores vivas, no Japão do presente e do futuro.
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