domingo, 2 de setembro de 2012

Corações sujos (2012)




Vicente Amorim é filho de diplomata (o Ministro da Defesa Celso Amorim), nasceu em Viena e, mesmo depois sendo criado no Brasil, passou a vida inteira sem criar raízes, mudando sempre de cidade. Posteriormente trabalhou como assistente de direção em alguns projetos estrangeiros localizados no Brasil (como Orquídea selvagem e Brincando nos campos do senhor), dirigiu dois filmes sob a temática nordestina (O caminho das nuvens e o documentário 2000 Nordestes) e depois famosamente dirigiu numa produção europeia estrelada por Viggo Mortensen (Um homem bom). Talvez este seu caráter internacional tenha sido fundamental para encarar a adaptação deste livro homônimo de Fernando Morais, filmando ele no Brasil com um elenco quase todo japonês, e com o filme predominantemente falado em japonês. Sim, Corações sujos é singular por ser um filme brasileiro em língua estrangeira, tratando de uma parte da história largamente ignorada por brasileiros e japoneses.

Baseado na recusa de boa parte da colônia japonesa no Brasil em acreditar na derrota para os americanos na 2ª Guerra Mundial, e o consequente rebaixamento de seu imperador Hiroíto da condição de Deus para a de um mero mortal, Amorim resolveu focar na história de personagens fictícios, mas que resumiam o que de certo modo era explanado no livro de Fernando Morais. O curioso é ver como, mesmo compostos de temas em tese tão diferentes, seus últimos dois filmes são tão semelhantes, tratando da crise de indefesos indivíduos contra a ordem de uma cultura hegemônica a que pertenciam. Enquanto que em Um homem bom acompanhamos Viggo Mortensen ser envolvido numa espiral de decadência moral alemã nazista, que o arrasta sem misericórdia e cobra seu envolvimento, algo de muito semelhante ocorre com Takahashi (vivido pelo ator Tsuyoshi Ihara, de 13 assassinos e Cartas de Iwo Jima) em Corações sujos, um mero fotógrafo que se vê envolvido numa disputa fundamentalmente de japoneses contra japoneses, que envolve a honra e a desconfiança de um povo situado dentro de um país ditatorial em guerra com o Japão, como era o caso do Brasil de Getúlio Vargas. O envolvimento de Takahashi expõe o perigo (infelizmente ainda bastante atual) do fanatismo e do consequente pouco (ou nenhum) questionamento que ele acarreta, transformando homens pacatos em seres capazes de atitudes muito violentas contra seus conterrâneos que aceitam o “inaceitável”, ou seja, a derrota japonesa. Mas o sangue que deveria limpar a honra muitas vezes suja consciências, e desafia o conceito de identidade que alguns presumem possuir de forma tão natural. Entre a alienação (ou extermínio) e a barbárie, muitos ficam divididos entre defender até a morte a pátria e a honra japonesas, ou aceitar a derrota e seguir adiante com suas pacatas vidas (isso, claro, se os fanáticos permitirem).

Contando com atores conhecidos no Japão, entre eles Takako Tokiwa, Eiji Okuda, Shun Sugata (de Kill Bill vol. 1 e O último samurai) e Kimiko Yo (atriz coadjuvante de A partida), e com apenas Eduardo Moscovis como mais famoso no elenco brasileiro, o filme consequentemente apresenta um ritmo mais típico de um filme japonês que brasileiro, mais lento e reflexivo do que o público daqui está acostumado. Algumas escolhas técnicas também podem causar uma certa alienação do público, como o abuso do uso de uma fotografia desfocada e uma trilha sonora que, ainda que bela, costuma se intrometer demais em algumas cenas. Porém os questionamentos que o filme apresenta, e o olhar para uma época obscura da história nipônico-brasileira, talvez façam com que cresça ainda um pouquinho mais o fascínio pela cultura de um país paradoxalmente tão tradicional e, ao mesmo tempo, rapidamente adaptável como é o Japão. O tenso conflito entre tradição e modernidade pulsa no passado retratado em Corações sujos e talvez nunca pare de pulsar, em cores vivas, no Japão do presente e do futuro. 

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