O senhor das moscas, livro
clássico da literatura inglesa, trata de algo em tese idílico: Crianças soltas
em um ambiente, sem um adulto sequer para mandar nelas, sem escolas nem
deveres-de-casa, com elas podendo, em tese, fazer o que quiser, desde que,
claro, sobrevivam à ilha em que estão localizados, após um desastre de avião
onde não sobraram adultos. William Golding, porém, em sua hiper-respeitada
obra, mostra que tal situação não teria nada de paradisíaca. Pobres inocentes
crianças, ordeiras e obedientes como o eram crianças britânicas dos anos 50,
poderiam se transformar em selvagens em muito pouco tempo, sem a sombra de uma
autoridade por perto. Nesta primeira adaptação para o Cinema, Peter Brook, em
apenas seu segundo longa, teve a árdua tarefa de adaptar esta rica história,
repleta de personagens fascinantes. Escolheu um caminho curiosamente análogo ao
do enredo: Entrevistou mais de 3000 crianças, escolheu dentre elas as que
considerou adequadas, e as levou para uma ilha em Porto Rico, durante as férias
delas de verão, sem a presença de seus pais, e ainda fazendo uso de muito
improviso nas filmagens, mesmo que respeitando a estrutura do livro (é uma
adaptação bastante fiel, no fim das contas). Filmou mais de 60 horas de celuloide,
e editou o material em mais de dois anos, um absurdo em termos logísticos. Uma
certa anarquia, dentro de uma trama que trata justamente da tensão entre
anarquia e uma tentativa de criação de leis e hierarquia.
Ralph, interpretado por James
Aubrey (o único dos atores principais a seguir carreira no Cinema, o resto fez
aqui seu único filme), é o que mais tenta respeitar um mínimo de organização.
Tenta liderar o bando de garotos, e no começo até consegue, auxiliado pelo
intelectual Piggy (Hugh Edwards), um menino gordinho que usa óculos. Cria
noções básicas de democracia e tenta organizar tarefas. Mas falta a Ralph mais
ênfase e carisma, e Piggy representa o intelectual que é logo menosprezado em
momentos de grande crise. Como conseguirão controlar os garotos mais rebeldes,
liderados por Jack (Tom Chapin), mais interessado em caçar e seguir seus
instintos? Logo complicações surgem, assim como as inevitáveis paranoias de
viverem em local tão inóspito e terem que cuidar de si próprios, sem nenhum
adulto para ajudar. Haverá mesmo uma fera na ilha, como logo pensam existir? A
quem serviria este clima de medo e insegurança? Quanto durariam regras criadas
e aprovadas por todos, em tempos de grande insegurança? O que é um líder,
alguém resoluto e focado em objetivos, ou o que brada mais alto e clama pelos
instintos mais imediatos? William Golding logo confronta estas questões, e cada
personagem parece representar setores das sociedades reais, de adultos. Os
intelectuais, os religiosos, os políticos, os medrosos, os valentões, até os
pacíficos que viram monstros quando lhes é dado o poder para tal, o cenário é
rico e diversificado e encontra paralelos em cada personagem, ilustrando um
pouco a tendência à selvageria tantas vezes observada em épocas de guerra ou
fome. Poderia a Lei dos homens (ou das crianças, que seja) resistir ao ímpeto
da Lei da selva?
Peter Brook erra e acerta ao
adaptar este grande clássico. De fato, o afastamento das crianças de seus pais,
sendo eles todos atores-mirins iniciantes, aliado ao improviso com eles em
cena, ao abuso de filme (mais de 60 horas filmadas causam calafrios em qualquer
produtor) e ao uso de um diretor de fotografia também iniciante (Tom Hollyman,
que nunca mais voltou a filmar!), trazem um frescor ao filme, que por vezes
parece um documentário. Alguns enquadramentos são muito belos, e a fotografia
em preto e branco realça a crueza da situação daqueles meninos. As crianças
comportam-se como crianças, e como nenhuma delas é conhecida, isso ajuda a dar
veracidade à história (apenas Nicholas Hammond, que tem um pequeno papel, teve
algum destaque futuro ao ser uma das crianças de A noviça rebelde, e por
interpretar o Homem-Aranha da série de TV dos anos 70). Porém, tanto amadorismo
cobra o seu preço também, pois algumas atuações dos garotos são fracas, sem a
ênfase necessária para fazer a trama pegar fogo, como deveria. O ritmo também
demora a embalar, e o próprio Peter Brook não ajuda em alguns momentos, como em
um longo plano em que os garotos dizem seus nomes, parecendo esperar sua vez (como
se alguém da produção chamasse a atenção deles), e no próprio final do filme,
ao tirar emoção de um momento revelador. Já um diretor respeitadíssimo no
teatro, talvez ainda lhe faltasse mais timing com a câmera, tendo feito apenas
anteriormente Ao pé do cadafalso, de 1953, com Laurence Olivier. Mas o que mais
atrapalha é o som. Com o som ambiente todo gravado depois, em estúdio (era meio
inevitável isso, pela captação de som ainda um pouco rudimentar na época, ainda
mais numa produção de recursos limitados), e os diálogos todos consequentemente
dublados, perde-se muito da emoção e realismo das cenas, o que afasta o
espectador do calor do momento.
A sensação final é de que este
filme dirigido por Peter Brook é bastante digno e fiel à obra de William
Golding, mas que se ressente de uma mão mais segura da equipe técnica e dos
atores (com a exceção do diretor de fotografia, de trabalho irretocável).
Compará-lo com o livro é um pouco cruel, pois é inevitável que ficasse devendo
um pouco, tendo em conta a importância de uma obra que, pode-se dizer,
praticamente sozinha fez William Golding ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. O
esforço é louvável e ninguém pode dizer que Peter Brook não se esforçou ao
máximo, inclusive para recriar com os garotos um ambiente semelhante ao do
livro, retirando-os do conforto de seus lares por um bom tempo. Talvez até,
ironicamente, tenha faltado um pouco mais de ordem naquele caos, é possível que
até atrás das câmeras um espírito anárquico tenha dado suas cartas, e trazido
uma selvageria técnico-estilística que tornou mais verídico e irregular o filme
final. O eterno embate entre Ralphs e Jacks, assistido pelos Piggys, Simons e
Rogers da vida, define o caminhar de cada sociedade, e pelo visto o próprio
filme O senhor das moscas sofreu a influência de suas personalidades e
ideologias. Todos sofremos, no fim das contas, e cada um deve saber onde se
posicionar e a quem seguir ou liderar, porque é bem provável que colha os
benefícios (e também pague o preço) dessa escolha.
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