terça-feira, 27 de novembro de 2012

Cidade das ilusões (Fat city – 1972)




Em 1976, o primeiro filme da série Rocky estreava nos cinemas, e fez um sucesso estrondoso no mundo inteiro, sobre um lutador que sabia vencer todos os prognósticos e deixar a sua marca, sob uma trilha sonora inspiradora e empolgante. Cidade das ilusões, dirigido por John Huston e adaptado por Leonard Gardner de seu próprio livro, é quase como se fosse a história de um Rocky Balboa que não dá certo. Como se o Rocky de Sylvester Stallone nunca recebesse a chance de brigar pelo título, e passasse a carreira inteira participando de lutas menores, e sofrendo por ter que quebrar polegares de quem não pagasse ao agiota que o contratava.

Os Rockys fracassados do enredo de Cidade das ilusões são Billy Tully (Stacy Keach), um boxeador já nos seus 30 anos, em franco declínio, e Ernie Munger (Jeff Bridges), que ele reconhece como uma promessa e o estimula a começar a lutar. Ruben (Nicholas Colasanto) começa a treiná-lo, enxergando no jovem Munger uma chance de aparecer um novo grande lutador, e já começa a imaginá-lo lutando em grandes estádios. O filme até tapeia o espectador no comecinho, dando a impressão de que será mais um de centenas de filmes onde um jovem boxeador surge do nada para virar campeão mundial. Mas a realidade logo aparece, para derrubar as ilusões. Este filme de John Huston, aliás, se esmera em mostrar a realidade derrubando a esperança, nocauteando-a sem parar. Mas ela continua levantando, mesmo que cada vez mais grogue, e inclusive, a partir de certo ponto, sem saber sequer o porquê de continuar levantando. A busca pela glória é logo suplantada pela árdua luta por uma mera sobrevivência.

John Huston sempre se interessou por fracassados e sonhadores, talvez até por ter sido um por um bom tempo. Mesmo sendo um filho de Walter Huston, ele demorou a emplacar na vida, trabalhando em diversos empregos, e inclusive foi um campeão de boxe amador dos pesos leves, onde levou muita pancada (seu nariz nunca mais foi o mesmo). Chegou a praticamente mendigar na França nos anos 30, e inclusive acredita-se que tenha atropelado (e consequentemente matado) a esposa do ator brasileiro Raul Roulien em Los Angeles, de tão bêbado que andava o tempo todo. Mas John Huston afinal deu certo na vida, era um real talento, escrevendo e dirigindo. O problema maior é que boa parte das pessoas não tem um talento desta estatura. A maioria, por mais que se doa reconhecer, fracassa. E John Huston se compadece disso, apesar de que, em Cidade das ilusões, não tenha aliviado em nada seus personagens. Em O tesouro de Sierra Madre, por exemplo, seu filme mais famoso, os personagens descobrem ouro, suas esperanças encontram um mínimo de base sustentável. Mas a realidade de Cidade das ilusões é árida, é como se os três mineiradores nunca descobrissem ouro em momento algum e passassem o resto da vida na miséria, sonhando com riquezas infinitas, apesar de sempre dormirem na mesma pensão vagabunda.

E os fracassados do filme não são só os lutadores. O treinador Ruben também sonha alto, mas nunca consegue deixar de comandar um ginásio de quinta categoria, e Tully faz de tudo para recuperar sua esposa, Oma (Susan Tyrrell, que recebeu a única indicação ao Oscar do filme, de atriz coadjuvante), que não consegue largar a bebida, e passa o tempo todo reclamando de tudo e de todos. Sem saída, os boxeadores trabalham até em plantações, querendo ganhar ao menos um ganha-pão básico. E lá enxergam o quanto todos são, no fundo, muito semelhantes com eles, mais sendo nocauteados do que conseguindo alguma vitória. Um companheiro chega a afirmar que trabalhava a mais de 25 anos, e nunca tinha conseguido juntar dinheiro. E não diz isto com raiva ou desespero, mas com certa resignação. Quase todos ali já se acostumaram a beijar a lona.

O tom depressivo do filme (poucos chegam no mesmo nível de Cidade das ilusões neste aspecto) a todos suplanta, e aparece até nos adversários dos boxeadores. É nítido que eles são tão vítimas das circunstâncias quanto o são a dupla principal do filme. E mesmo quando Tully e Munger registram algumas vitórias, elas não parecem realmente triunfos. Parecem derrotas também. Eles passam a ter mais uma vitória no cartel, mas as pancadas recebidas continuam doendo, fazendo seu estrago. Mesmo assim, tanto eles como os adversários lutam até não poder mais. Acreditam além de qualquer lógica. E depois, detonados, têm que seguir com suas vidas em um quieto desespero. O final do filme é emblemático neste sentido, uma aula de sutileza, onde Tully infelizmente enxerga nele mesmo, no seu jovem amigo, num velhinho que serve café e em todos os bêbados jogando pôquer no bar, como um bando de sonhadores vãos.

Desnecessário, após tudo isso, atestar que Cidade das ilusões é um filme para poucos. Sua trilha sonora não é a famosa de Bill Conti, que levanta o espírito de qualquer defunto, mas uma que traz a chorosa “If”, do grupo Bread (que fez um enorme sucesso na época), e mais a igualmente melancólica “Help me make it through the night”, de Kris Kristofferson. A bela fotografia de Conrad L. Hall (À sangue frio, Butch Cassidy, Beleza americana) também reforça a desesperança geral. Os atores estão todos muito bem, desde o então muito novo Jeff Bridges, até a quase irritante (por causa de sua personagem) Susan Tyrrell. Mas o filme pertence mesmo a Stacy Keach, provavelmente em seu melhor papel. Seus olhos tristes e resignados contam tudo.

O Cinema de John Huston nunca foi muito afeito a finais felizes. Mas ao menos o miolo da maioria de seus filmes apresentava belas promessas aos personagens, e consequentemente ao público. Cidade das ilusões não. Aqui o remédio tem gosto de remédio, e infelizmente não traz cura nenhuma. O filme não tem medo de olhar o lado feio da vida, e tenta resgatar, em suas tripas, um mínimo de dignidade. É evidente que muitos espectadores não querem ver isso, e consequentemente os filmes mais otimistas sempre vão obter mais destaque. É natural, talvez inclusive seja uma reação mais saudável por parte do público. Os que tiverem estômago forte de se reconhecerem como integrantes do ringue da vida, porém, tendem a ver que, debaixo de tanta dor e depressão do excelente roteiro de Leonard Gardner, John Huston registrou mais uma vitória. Mais um filmaço para o cartel dele, um peso pesado dentre os diretores.

4 comentários:

Marcelo V. disse...

Obra-prima. Também me lembrou um pouco de "Rocky": http://cinearquivo.blogspot.com.br/2010/10/fat-city-1972.html

Unknown disse...

A cena final, quando o Stacy Keach olha os outros velhos e fracassados no bar, apenas seguindo em frente, é das mais impressionantes que já vi em um filme.

Marcelo Rennó disse...

Também achei essa cena maravilhosa, dos grandes finais de filmes em todos os tempos. Ela é sublime, e ali ele vê a desesperança, a falta de reais horizontes para todos ali (inclusive para ele, claro) e o vazio da vida de todos eles. A forma como ele reparar a vida do velho que os serve, com uma falta de sentido não muito diferente da vida de um boxeador, é algo muito tocante. Também é uma cena que mostra o personagem de Jeff Bridges com uma certa vergonha de seu amigo, querendo manter uma certa distância, já o vendo como um bêbado fracassado daqueles irremediáveis, e não querendo ver que aquele pode muito bem ser o seu futuro próximo. "Cidade das ilusões" é um filmaço mesmo.

Anônimo disse...

Rocky? Hopper e Wenders.