56 up é o último de uma série
lendária de documentários feitos para a TV inglesa (quase todos do canal ITV).
Após um começo modesto, com o curta Seven up! (dirigido por Paul Almond), o
então pesquisador do curta, Michael Apted, deu prosseguimento à ela, filmando
de 7 em 7 anos a vida de um pouco mais de uma dezena de pessoas desconhecidas,
desde os sete anos de idade de cada uma, até a presente idade de 56 anos (daí o
título). Impressiona que este projeto nunca tenha sido abandonado, pois a
probabilidade disso era bem grande, tanto por desinteresse dos entrevistados,
como pelo próprio sucesso da carreira de Michael Apted como diretor, em filmes
tão díspares como O destino mudou sua vida (onde Sissy Spacek ganhou um Oscar
de melhor atriz), Mistério no parque Gorky, Nas montanhas dos gorilas (com
Sigourney Weaver), Nell (com Jodie Foster) e blockbusters como 007 – O mundo
não é o bastante (um dos melhores da série de James Bond) e As crônicas de
Nárnia: A viagem do peregrino da alvorada. Mas Apted sempre se forçou a
continuar a pouco lucrativa série de filmes, se preparando para, a cada 7 anos,
fazer mais uma rodada de entrevistas com todos essas mesmas pessoas. O
resultado é fascinante e inesquecível, e a série encorpa a cada novo episódio.
O objetivo inicial dela era
mostrar a força da divisão das classes inglesas, e de como elas praticamente
determinavam o futuro das pessoas. Apted escolheu algumas crianças pobres, e
algumas ricas (com poucas mulheres e também ignorando a classe média, coisa da
qual se arrependeu futuramente, mas isto não machuca a série, até porque vários
integrantes dela entraram para a classe média mesmo, com o tempo). O mote
original, que inspirou o primeiro filme, de base jesuíta, numa tradução bastante
livre significava “Dê-me uma criança de 7 anos, que lhe apontarei o adulto que
sairá dela”. O desenrolar dos documentários, evidentemente, refuta totalmente
esta ideia e mostra o quão difícil é fazer previsões em cima de crianças. O
menino mais charmoso e carismático do primeiro filme praticamente enlouquece perto
dos 30 anos, a ponto de quase virar um mendigo (e, depois, consegue sair da
pior, refutando outra previsão de que “este aí já está perdido”). Duas crianças
da classe alta parecem ser irrevogavelmente esnobes, mas se tornam adultos
bastante razoáveis e simpáticos. Um dos entrevistados, que Michael Apted jurava
que viraria um bandido e seria preso, acaba por ter um futuro próspero. As
surpresas surgem, e, principalmente, as pessoas mudam. Quem assiste à série up
vê o quão efêmeras são certas filosofias de vida que, à primeira vista, parecem
imutáveis e definitivas. O destino de ninguém parece realmente traçado desde o
início. E, em alguns casos, nem mesmo o caráter e o comportamento básico se
mantém com o tempo.
Ao assistir essas pessoas falando
de suas vidas, com as mais diferentes idades, por vezes pode ser difícil não
rir delas ou evitar julgá-las severamente. Algumas crianças e adolescentes
parecem “esquisitos”, dão respostas atravessadas, mal olham (se olham) para a
câmera ou para o entrevistador. Mostrar momentos assim, sem filtros nem nada, é
um dos maiores dentre os inúmeros méritos desta série de filmes. Não temos aqui
pessoas e situações glamourizadas, ou preparadas para ver a câmera, e saber
lidar com ela sem desembaraço. É gente comum, que é filmada apenas de 7 em 7
anos, e que muitas vezes reconhece que fica nervosa ao ver a data do novo filme
se aproximando. Milhares de filmes de ficção com adolescentes carismáticos,
interpretados por atores tarimbados, desacostumam o público a ver gente comum
falando de assuntos comuns. Os adolescentes de 7 plus seven, por exemplo, se comportam como boa
parte dos adolescentes de 14 anos que se vê no dia-a-dia, arredios, envergonhados, sem
saber o que fazer ou o que responder na presença de um adulto que lhes faz
perguntas difíceis e intrometidas. Para quem ri deles, ou os menospreza, fica
sempre a pergunta no ar: Como nos comportaríamos se fossemos nós os
entrevistados? O que responderíamos sobre nossas vidas aos 7, 14, 21, 28, 35,
42, 49 e 56 anos de idade? Seríamos sempre “brilhantes” e carismáticos, em cada
uma dessas ocasiões? Seríamos sempre coerentes com o nosso passado, que
inclusive está registrado em filme, um passado que não se pode negar? E se as
filmagens surgissem, por azar, justamente num momento de crise (familiar,
pessoal, financeira, o que for)? Como proceder?
Era inevitável que um ou outro
entrevistado fugisse da série de filmes. Algumas desistências aconteceram aqui
e ali, por medo de invasão de privacidade, até porque todos ficaram um pouco
famosos na Inglaterra por causa dos filmes (e é um pouco desagradável que seus
vizinhos ou colegas de trabalho, por exemplo, saibam tanto de suas vidas). Mas praticamente
todos voltaram depois a participar de futuros filmes da série, inclusive em 56
up um deles volta à cena depois de ficar de fora de vários filmes, desde a
juventude. Neste último filme, aliás, nota-se como todos já estão mais maduros.
56 up de fato não tem mais o fulgor dos filmes sobre a juventude deles, onde
viviam épocas mais decisivas de suas vidas. O filme tem, inevitavelmente, um
tom mais tranquilo e ameno. Porém, todos já se acostumaram mais com a câmera, e
sabem olhar com serenidade e perspectiva para suas próprias vidas, entendem e
aceitam melhor seus lugares no mundo que as rodeia. Muitos já tem filhos e
netos, e suas famílias acrescentam toda uma nova complexidade ao filme. O
próprio Michael Apted foi ficando mais maduro e compreensivo. Tendo passado por
dois divórcios, ele mesmo reconheceu que passou a compreender e respeitar muito
mais as atribulações das vidas daquelas pessoas. E abre espaço para que eles
reclamem da série, do diretor e do efeito que ela teve em suas vidas. Isto já
vinha acontecendo nos últimos filmes, mas em 56 up as reclamações são mais
acentuadas, e ocorre até mesmo uma defesa e explicação de alguns entrevistados do
porquê de terem se comportado de certa maneira em filmes passados.
56 up não exige que o espectador
tenha visto os outros filmes da série. Dá para se entender a vida de cada um
ali, até porque a série se utiliza, em cada filme, de cenas dos filmes
anteriores, o que dá um bom suporte e evita que o público fique desnorteado.
Mas é óbvio que ver todos os filmes enriquece absurdamente a experiência. Um
filme energiza o outro, e todos juntos fazem uma rede quase indissociável. Se
apenas o primeiro filme fosse feito, seria até um curta um pouco chatinho, com
algumas crianças, em sua maioria, pouco interessantes. Os outros filmes, já
mais encorpados (inclusive em tamanho, 56 up tem duas horas e meia), se seguram
sozinhos, mas é o conhecimento do todo da vida daquelas pessoas que acrescenta
demais o valor do que se vê, que dá todo um contexto e significado para quem assiste a série toda. Acompanhando todos os filmes, é possível até
enxergar quando uma pessoa usa mecanismos de defesa para fugir de certas
perguntas, ou seja, passamos a “conhecer” melhor aquelas pessoas, a ter uma
certa “intimidade” com elas, do que teríamos em um documentário normal com
entrevistados a esmo falando. A série up é fascinante pois é sobre a vida, não
a vida glamourizada de tantos filmes, não sobre grandes momentos ou frases
brilhantes, mas sobre sonhos (realizados e desfeitos), frustrações, timidez,
preguiça, loucura, chateações, arrogância, humildade, etc. O espectro humano é
representado em todas as suas cores, naqueles (em tese) banais ingleses respondendo
a perguntas de Michael Apted. Os entrevistados, apesar de tão incomodados com todo o processo, não
conseguiram largar a série. Michael Apted também não, mesmo que tenha que
largar tudo para continuar filmando, a cada 7 anos que se passam. E nem o
espectador tampouco. Ela vicia (e inspirou outros diversos projetos semelhantes,
nos EUA, Japão, África do Sul, Suécia e Rússia). Mas, felizmente, é um ótimo
vício, sem nenhum efeito colateral que não seja uma possível maior compreensão
do mundo e das pessoas normais que o habitam, essas mesmas que pegam ônibus,
pagam contas, têm filhos e netos, traem a esposa, trocam de emprego, se arrependem,
mudam de país... Aliás, ela tem outro efeito colateral sim: Deixar que cada espectador-viciado,
desde já, esfregue as mãos para poder ver o próximo filme. Se nada sair dos trilhos,
em 2019 será filmado o 63 up. E nele muita gente estará interessada em ver o
que teria acontecido nos últimos sete anos das vidas de Bruce, Andrew, Neil,
John, Suzy, Nick, Paul, Jackie, Tony e Cia.
2 comentários:
Olá Marcelo, existe legenda em português nos filmes da série? Onde se pode adquiri-los? Obrigado!
Henrique
Henrique, desculpe pela demora na resposta. Quando a vi inteira, não encontrei legendas para essa magnífica série, o que foi uma pena, pois mesmo quem entende inglês tem um ou outro problema para entender certos diálogos com mais sotaque. Mas isso já tem alguns anos. Este último episódio, o "56 up", já foi exibido no canal Max, então acredito que para ele se encontre legendas. Com sorte, para os outros episódios alguém já pode ter feito legendas para eles também, não custa procurar. Abraços.
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