segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O veleiro da aventura (Plymouth adventure – 1952)




Os EUA são hoje o país mais rico do mundo, líderes mundiais em termos políticos e militares desde o fim da Primeira Guerra Mundial, um colosso que apenas recentemente vêm sendo ameaçado pelo crescimento da China. Mas em 1620, o cenário daquela região era desolador. Tudo o que a Inglaterra tinha ali eram apenas algumas colônias vagabundas esparsas na Costa Leste, desprezadas pela metrópole que considerava que tinha chegado tarde na festa da era dos descobrimentos, já que os espanhóis deitavam e rolavam com a absurda quantidade de ouro e prata que descobriram em suas vastas terras nas Américas Central e do Sul, e os portugueses conseguiam lucros no Brasil também com monoculturas. Já tudo o que aquelas colônias tinham, na visão da coroa britânica, era o mesmo clima temperado da Inglaterra, nenhum ouro ou prata, e um monte de índios hostis. Não surpreende, assim, que existisse o desinteresse de que eles investissem qualquer coisa naquele novo mundo. Mas se o Governo britânico ignorava aquelas terras, uma parte de sua população, oprimida por um sistema de classes que nunca permitia sua ascensão social, e sufocada em seu credo religioso, começou a se interessar pela perspectiva de começar do zero em um novo lugar, por mais inóspito que fosse. Um inusitado lugar que não tinha nada que atraísse a atenção dos ricos cidadãos ingleses, mas tinha o suficiente para atrair os pobres cidadãos ingleses. E, assim, em 1620, 102 corajosos britânicos resolveram abandonar tudo (literalmente) e tentar a sorte nesta terra inóspita, arriscando morrer na árdua viagem no navio Mayflower, ou nas agruras de se viver numa terra sem suporte de ninguém. Em menos de um ano, só sobreviveram 53 destes peregrinos, sendo a maioria mulheres e crianças. Mas nenhuma dessas 53 pessoas quis retornar para a Inglaterra, mesmo com tanto sofrimento.  Era tudo ou nada, desde o começo.

O veleiro da aventura conta a história desta viagem e desses pioneiros. O filme surpreende por não forçar muito a mão no tom patriótico. Sendo um filme americano (de um povo que toca hino nacional toda hora, e leva a bandeira a qualquer canto), da Metro-Goldwyn-Mayer (estúdio que tendia a glamourizar os fatos) e realizado nos anos 50, a chance de se forçar a barra era grande, mas felizmente o diretor Clarence Brown (da velhíssima guarda, dirigiu clássicos do cinema mudo como O último dos moicanos, O águia e A carne e o diabo), em seu último filme, e a MGM souberam conduzir o filme sem histrionismos. O enredo, adaptado do livro homônimo de Ernest Gebler, romantiza um pouco a história, principalmente quanto a Gene Tierney estar sempre maquiada e de batom, e ao inventar uma intriga para levar os peregrinos a um outro lugar (isso aconteceu, o destino era a Virgínia, mas por razões climáticas não chegaram lá e se estabeleceram em Cape Cod, Massachussets, e não por causa de uma intriga), e a criar um breve romance entre a personagem de Gene Tierney e o de Spencer Tracy, que interpreta o capitão do navio. Este romance, de fato, não “pertence” muito ao enredo, não convence, mas de resto a história é conduzida com dignidade. Todos os nomes dos personagens são corretos, com nenhum personagem inventado para dar um molho à trama (coisa comum no Cinema), e inclusive o filme mostra que nem todos os peregrinos eram religiosos, e que a imundície à bordo, e o assédio dos marinheiros às mulheres, foram pragas de uma longa e tediosa viagem, num navio bastante modesto. O filme também não ignora as mortes na viagem, e se deixa a desejar um pouco, é na rápida resolução de tudo ao final, pouco mostrando a vida na nova colônia. Mas é um filme que tem méritos também ao se utilizar um navio de tamanho semelhante para as filmagens (construído especialmente para o filme), fazendo assim pouco uso de miniaturas, e nos efeitos especiais das duras tempestades, que até renderam ao filme um Oscar de efeitos especiais. O filme fica mais realista assim. Entretanto, é de se pensar como que um tema tão caloroso aos americanos não tenha gerado uma superprodução desde este hoje tão esquecido filme, com os efeitos especiais de hoje em dia, e com um tom revisionista da história.  

Spencer Tracy ajuda o filme a ficar com os pés no chão ao atuar como o capitão do navio, Christopher Jones, por ser ele, junto de seu imediato interpretado por Lloyd Bridges (numa de suas melhores atuações), sempre a voz dissonante, ao nunca acreditar em toda aquela loucura, e ficar gozando os pobres passageiros. É raro ver Spencer Tracy num papel antipático, mas ele o desempenha com correção. Van Johnson era um risco quanto ao elenco, com sua cara de galã juvenil, que poderia afundar o filme, mas se comporta bem. E Leo Genn, com sua voz lendária, acrescenta dignidade à trama, no papel central de William Bradford, que foi um dos líderes da Colônia, impedindo que ela caísse numa anarquia. Tais líderes redigiram o Pacto do Mayflower, que entre outras questões exigia os votos da maioria para que algo fosse aprovado. Uma espécie de Constituição primitiva, a primeira dos Estados Unidos.  O escritor Eduardo Galeano afirmou, sobre os EUA, que eles tiveram “a importância de não nascer importante”, e isso realmente ajudou que esses peregrinos corajosos e simplórios construíssem as bases da futura potência. Já há algum tempo, porém, o governo americano fecha as portas justamente para os imigrantes que tentam chegar ao país fugindo de realidades desoladoras, com o intuito de construir uma vida melhor nos EUA, ou morrer tentando. Não são mais um país aberto aos William Bradfords do Século XXI, como o foram até o começo do Século XX. Uma triste ironia da história.

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