Depois de uma rara incursão pela
euforia em seu último filme, Simplesmente feliz, onde a personagem principal
ria até de tempestade, Mike Leigh volta a analisar a classe média-baixa
britânica com seus habituais tons depressivos em Mais um ano. E o faz com o
talento de um diretor de décadas de experiência, que trabalha sempre sem
roteiro definido (famosamente seus filmes nascem de improvisações nos ensaios),
e com um elenco de atores fidelíssimo a ele. Curiosamente, os filmes de Mike
Leigh costumam emplacar indicações justamente na categoria de roteiro no Oscar
(foi esta a única indicação do filme, perdendo para O discurso do Rei), o que
demonstra que seu método nada convencional funciona de forma efetiva, já que o
enredo de seus filmes é sempre bem trabalhado. Quanto ao elenco, Mike Leigh faz
um rodízio inteligente com ele, usando atores que, em outros filmes seus,
ficavam em segundo plano (por vezes em papéis bem discretos), e colocando-os
nos papéis centrais de Mais um ano. Dessa vez quem consegue seu lugar ao Sol
são as atrizes Ruth Sheen e Lesley Manville, que aproveitam muito bem suas
oportunidades. Lesley Manville é Mary, a locomotiva depressiva do filme, uma
mulher de meia-idade, amiga do casal formado por Jim Broadbent (Tom) e Ruth
Sheen (Gerri), que, ao contrário destes, simplesmente não consegue fazer sua
vida funcionar (e se afundar na bebida piora ainda mais o seu quadro). Sua
performance é sublime (ela levou vários prêmios e indicações por sua atuação
mundo afora), numa personagem que traz o desacerto na vida tão regrada e
certinha do casal. Mas não é só ela que assim o faz, o filme trata das várias
pessoas infelizes que, de um jeito ou de outro, convivem ao redor deste casal,
por mais um ano da vida deles, desde o irmão quase catatônico de Tom (David
Bradley) até o amigo solitário do casal, Ken (Peter Wight).
O filme lida com a tensão entre
uma acomodada felicidade do casal e de seu filho com a nova namorada, e a
infelicidade latente de todos os demais. Ao mesmo tempo em que aquele parece só
mais um ano na vida de todos, ele também pode ser um ano decisivo. Mais um ano
é daqueles filmes em que o espectador pode até descobrir mais de si mesmo
através de sua reação sobre a conduta de cada personagem. O casal Tom e Gerri
poderia ser visto como feliz e solidário, ou como distante e condescendente.
Mary tanto pode ser uma bêbada com mentalidade egoísta de adolescente, daquelas
incorrigíveis, ou alguém amável que precisa de ajuda e não a encontra, só
recebendo piedade em troca. E o mesmo vale para os outros personagens, os
julgamentos do caráter de cada um não são fáceis, os personagens são todos
calejados e multidimensionais, e a câmera do diretor os observa com calma e
diligência, despertando para os espectadores mais atentos os detalhes de cada
personagem ou situação. Esta complexidade do filme de Mike Leigh encanta, até
por ser este um caso cada vez mais raro de filme feito por e para pessoas de
idade avançada, que não vira a cara para as tristezas e decepções da vida, não
finge que elas não existem. Mais um ano é um filme duro, por vezes muito árido,
que não oferece soluções fáceis e mágicas e nem rostinhos bonitos e joviais.
Ele exige maturidade, curiosidade e paciência do espectador, até para poder
notar detalhes como olhares, postura corporal dos personagens, etc. A reação a
algo falado costuma ser muito mais revelador do que o diálogo em si, e a câmera
de Mike Leigh está sempre pronta para registrar isso.
Os atores amam Mike Leigh, e não
é à toa, seus filmes vivem e florescem do trabalho dos atores, que recebem um
ótimo material para trabalhar, sob os olhares atentos de um diretor que os
admira em suas funções. É difícil que atores razoavelmente desconhecidos como
Ruth Sheen e Lesley Manville recebam papéis tão ricos através de outros
diretores. Felizmente para alguns deles, Mike Leigh já deixou bem claro que
nunca fará um filme tendo que aceitar ator X ou Y, por mais famoso que seja, e
por mais que recebesse uma bela grana para fazer seus filmes se o contratasse.
Prefere manter seu círculo de atores, e brindá-los eventualmente com papéis que
marcarão suas vidas para sempre. Imelda Staunton (O segredo de Vera Drake), Sally
Hawkins (Simplesmente feliz), Brenda Blethyn (Segredos e mentiras), David
Thewlis (Naked), entre alguns outros, e mais Ruth Sheen e Lesley Manville neste
filme aqui, todos sentiram na própria carne o quanto vale a pena fazer parte de
sua trupe, fazendo sob a direção de Mike Leigh os filmes mais marcantes de suas
carreiras. E evidentemente Mike Leigh também se beneficia, forjando
diligentemente uma carreira de impacto no Cinema, com uma constância de filmes
maduros e marcantes, que exigem um espectador preparado para ver o lado feio e
triste da vida, mas que o recompensa com uma maior riqueza de olhar e de
percepção. Mais um ano é um dos maiores
filmes do diretor, que domina com cada vez mais competência a câmera ao redor
de seus atores, e que tem idade suficiente para tratar da velhice com
intimidade. Muitos diretores surgem com tudo, e depois de uns três filmes já
parecem ter dito tudo o que tinham a dizer (e a mostrar). Mike Leigh já dirigiu
diversos filmes, e a força de seus filmes não parece esmorecer, pelo contrário.
Após Mais um ano, tudo o que se pode pedir a ele é mais um filme. Com a
vantagem de que é muito provável que mais um filme de Mike Leigh não seja apenas mais
um filme qualquer.
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