terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mais um ano (Another year – 2010)




Depois de uma rara incursão pela euforia em seu último filme, Simplesmente feliz, onde a personagem principal ria até de tempestade, Mike Leigh volta a analisar a classe média-baixa britânica com seus habituais tons depressivos em Mais um ano. E o faz com o talento de um diretor de décadas de experiência, que trabalha sempre sem roteiro definido (famosamente seus filmes nascem de improvisações nos ensaios), e com um elenco de atores fidelíssimo a ele. Curiosamente, os filmes de Mike Leigh costumam emplacar indicações justamente na categoria de roteiro no Oscar (foi esta a única indicação do filme, perdendo para O discurso do Rei), o que demonstra que seu método nada convencional funciona de forma efetiva, já que o enredo de seus filmes é sempre bem trabalhado. Quanto ao elenco, Mike Leigh faz um rodízio inteligente com ele, usando atores que, em outros filmes seus, ficavam em segundo plano (por vezes em papéis bem discretos), e colocando-os nos papéis centrais de Mais um ano. Dessa vez quem consegue seu lugar ao Sol são as atrizes Ruth Sheen e Lesley Manville, que aproveitam muito bem suas oportunidades. Lesley Manville é Mary, a locomotiva depressiva do filme, uma mulher de meia-idade, amiga do casal formado por Jim Broadbent (Tom) e Ruth Sheen (Gerri), que, ao contrário destes, simplesmente não consegue fazer sua vida funcionar (e se afundar na bebida piora ainda mais o seu quadro). Sua performance é sublime (ela levou vários prêmios e indicações por sua atuação mundo afora), numa personagem que traz o desacerto na vida tão regrada e certinha do casal. Mas não é só ela que assim o faz, o filme trata das várias pessoas infelizes que, de um jeito ou de outro, convivem ao redor deste casal, por mais um ano da vida deles, desde o irmão quase catatônico de Tom (David Bradley) até o amigo solitário do casal, Ken (Peter Wight).

O filme lida com a tensão entre uma acomodada felicidade do casal e de seu filho com a nova namorada, e a infelicidade latente de todos os demais. Ao mesmo tempo em que aquele parece só mais um ano na vida de todos, ele também pode ser um ano decisivo. Mais um ano é daqueles filmes em que o espectador pode até descobrir mais de si mesmo através de sua reação sobre a conduta de cada personagem. O casal Tom e Gerri poderia ser visto como feliz e solidário, ou como distante e condescendente. Mary tanto pode ser uma bêbada com mentalidade egoísta de adolescente, daquelas incorrigíveis, ou alguém amável que precisa de ajuda e não a encontra, só recebendo piedade em troca. E o mesmo vale para os outros personagens, os julgamentos do caráter de cada um não são fáceis, os personagens são todos calejados e multidimensionais, e a câmera do diretor os observa com calma e diligência, despertando para os espectadores mais atentos os detalhes de cada personagem ou situação. Esta complexidade do filme de Mike Leigh encanta, até por ser este um caso cada vez mais raro de filme feito por e para pessoas de idade avançada, que não vira a cara para as tristezas e decepções da vida, não finge que elas não existem. Mais um ano é um filme duro, por vezes muito árido, que não oferece soluções fáceis e mágicas e nem rostinhos bonitos e joviais. Ele exige maturidade, curiosidade e paciência do espectador, até para poder notar detalhes como olhares, postura corporal dos personagens, etc. A reação a algo falado costuma ser muito mais revelador do que o diálogo em si, e a câmera de Mike Leigh está sempre pronta para registrar isso.

Os atores amam Mike Leigh, e não é à toa, seus filmes vivem e florescem do trabalho dos atores, que recebem um ótimo material para trabalhar, sob os olhares atentos de um diretor que os admira em suas funções. É difícil que atores razoavelmente desconhecidos como Ruth Sheen e Lesley Manville recebam papéis tão ricos através de outros diretores. Felizmente para alguns deles, Mike Leigh já deixou bem claro que nunca fará um filme tendo que aceitar ator X ou Y, por mais famoso que seja, e por mais que recebesse uma bela grana para fazer seus filmes se o contratasse. Prefere manter seu círculo de atores, e brindá-los eventualmente com papéis que marcarão suas vidas para sempre. Imelda Staunton (O segredo de Vera Drake), Sally Hawkins (Simplesmente feliz), Brenda Blethyn (Segredos e mentiras), David Thewlis (Naked), entre alguns outros, e mais Ruth Sheen e Lesley Manville neste filme aqui, todos sentiram na própria carne o quanto vale a pena fazer parte de sua trupe, fazendo sob a direção de Mike Leigh os filmes mais marcantes de suas carreiras. E evidentemente Mike Leigh também se beneficia, forjando diligentemente uma carreira de impacto no Cinema, com uma constância de filmes maduros e marcantes, que exigem um espectador preparado para ver o lado feio e triste da vida, mas que o recompensa com uma maior riqueza de olhar e de percepção.  Mais um ano é um dos maiores filmes do diretor, que domina com cada vez mais competência a câmera ao redor de seus atores, e que tem idade suficiente para tratar da velhice com intimidade. Muitos diretores surgem com tudo, e depois de uns três filmes já parecem ter dito tudo o que tinham a dizer (e a mostrar). Mike Leigh já dirigiu diversos filmes, e a força de seus filmes não parece esmorecer, pelo contrário. Após Mais um ano, tudo o que se pode pedir a ele é mais um filme. Com a vantagem de que é muito provável que mais um filme de Mike Leigh não seja apenas mais um filme qualquer.

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