Não existe geração espontânea em
filmes autorais. Esses filmes nascem da vivência do diretor/roteirista, e
consequentemente tanto colhem os frutos como pagam o preço disso. Kim Ki-Duk
nasceu na Coréia do Sul e levou uma vida muito dura, mal estudando (num país
que preza muito o estudo) e trabalhando desde cedo na lavoura ou em fabriquetas
de fundo de quintal (estas são muito bem retratadas em Pietà, aliás). Num
arroubo de coragem, juntou tudo o que tinha, que mal deu para comprar uma
passagem só de ida para Paris, e lá viveu como um pintor de retratos na rua.
Viu O silêncio dos inocentes, seu primeiro filme na vida, na cidade-luz (tendo
mais de 30 anos de idade), e que mudou sua trajetória para sempre. Aprendeu
Cinema fazendo, com filmes de baixíssimo orçamento, e sempre enfrentando a ira
e o desprezo da crítica e do público coreano (ele é um exemplo clássico do
provérbio que diz que “ninguém é profeta em sua terra”, obtendo muito mais
sucesso no exterior do que dentro de seu país). Uma vida de viés marginal com
muita luta, rejeição, baseada na coragem, obstinação, e também na sua religião,
sendo ele um cristão (o Cristianismo, com todas as suas ramificações
protestantes, é forte e crescente na Coréia do Sul). Pietà é um filho direto
desse homem e cineasta, como não poderia deixar de ser. Nele temos os traços
característicos do diretor, já revelados em filmes como Primavera, Verão,
Outono, Inverno... e Primavera, Casa vazia e O arco: O uso de silêncios, com
personagens intensos mais taciturnos (quase sempre marginais na sociedade), apresentando
o sacrifício pessoal como tema, assim como a busca por um perdão, tudo embalado
por um ritmo lento e minimalista, que exige paciência e atenção do espectador.
Seus filmes não chegam a ser por demais complexos, mas é inegável que seu
público-alvo é restrito, numa época onde o espectador é acostumado por anos a
receber adrenalina pura de filmes frenéticos. Enquanto em outros filmes o
espectador sente-se como numa Ferrari a trezentos por hora, fazendo as curvas
de lado, com Kim Ki-Duk é como se passeasse a pé por um horizonte silencioso e de
pouca esperança, mas do qual o cineasta conhece muito bem.
Em Pietà acompanhamos a
trajetória de Gang-Do (Lee Jung-Jin), um cobrador de agiota frio e muito
violento, que não sente a menor dor na consciência de aleijar clientes
desesperados, que não conseguem pagar os juros absurdos de seus empréstimos. Um
homem implacável desses não parece ter nenhum calcanhar de Aquiles, por não ter
nada a perder, sua vida é de um vazio existencial muito grande, até por não ter
ninguém que se importe com ele, e vice-versa. Isso até aparecer a figura de
Mi-Son (Jo Min-Soo, de ótima atuação), que assume-se como sua mãe que lhe
abandonou quando Gang-Do era um bebê, e parece buscar seu perdão e aceitação. A
trama, assim, passa a acompanhar o quanto Gang-Do aceitaria, ou não, uma figura
materna dessas, e o que teria a ganhar e a perder com isto. E o quanto sua
possível mãe aguentaria de maus-tratos de um filho abandonado por tanto tempo.
Tudo isso embalado em um sub-texto de crítica ao Capitalismo, que segundo o
diretor permitiria que pobres trabalhadores fossem explorados por figuras como
Gang-Do, sem quase nenhuma defesa. Algo que ele cansou de ver em sua juventude.
Kim Ki-Duk conduz o filme com
maturidade. É um de seus melhores filmes mas, estranhamente, também é um dos
que apresenta um pior ritmo, cansando o espectador no que parece um filme um
pouco esticado, e por vezes repetitivo. O começo do filme, muito impactante,
apresenta algumas cenas de forte impacto, mas o miolo do filme perde um pouco o
embalo e causa uma certa fadiga, mas os espectadores mais resistentes são
premiados com um final significativo. Alguns traços do cinema de Kim Ki-Duk,
que irritam certos grupos, continuam presentes: Os maus-tratos gratuitos contra
animais, a misoginia ancorada até em agressões sexuais... Não é à toa que
muitas feministas não o suportem em seu país, e que ele perca ainda mais
público com isso. Talvez o Leão de Ouro em Veneza, conquistado por seu trabalho
em Pietà, o primeiro prêmio de grande expressão de um filme coreano, melhore um
pouco o cenário e a receptividade para Kim Ki-Duk, dentro e fora de seu país.
Prêmio esse, aliás, que ele foi receber com seus tênis gastos, mesmo em um
cenário tão imponente e em um momento tão importante para o Cinema de seu país.
Assim como em seus filmes, na vida Kim Ki-Duk não pode, e nem quer ou aceita,
fugir de si mesmo. Ele continuará sendo ele mesmo, para irritação ou fascinação
de seus detratores e admiradores, respectivamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário