A arca de Noé foi um projeto de
fé, não só para o profeta bíblico, como também para a Warner Brothers e o
diretor Michael Curtiz. Com o orçamento passando de um milhão de dólares
(altíssimo para a época), contando cenas elaboradas de efeitos especiais, o
filme ainda sofreu atribulações para virar parcialmente falado, o que alterou
um pouco até o seu tamanho e seu enredo (o papel do próprio Noé foi diminuído,
já que Paul McAllister, que o interpretou, não se saiu bem ao microfone). Se o
filme afundasse, a Warner sofreria um prejuízo muito sofrido, justamente numa
época em que já efetuara muitos gastos para ser a pioneira do Cinema falado. E
o próprio Michael Curtiz, recém-chegado da Europa (onde fizera inclusive Sodoma
e Gomorra, de 1922, que inspirou Jack Warner a contratá-lo para dirigir A arca
de Noé) poderia ter sua carreira muito prejudicada por um fracasso num projeto
daquela estatura. Felizmente, o filme se saiu muito bem nas bilheterias, dando
um bom lucro e solidificando a carreira de Curtiz nos EUA, que durou décadas e
teve vários destaques como Capitão Blood, A carga da brigada ligeira, As
aventuras de Robin Hood, Anjos de cara suja, A canção da vitória, Almas em
suplício e, claro, Casablanca, pelo qual é disparado mais lembrado.
Com um projeto daquele escopo, o
estúdio e o roteirista Anthony Coldeway, adaptando uma história de Darryl F.
Zanuck (que depois criaria o estúdio 20th Century, que compraria a Fox e se
tornaria a 20th Century Fox que resiste até hoje, com canal de TV fortíssimo e
tudo), partiram para uma solução já testada e aprovada em alguns filmes de
Cecil B. DeMille, mais notadamente Os dez mandamentos (a versão de 1923):
Dividir o enredo em duas partes, uma passada num passado mais recente, e a
outra cobrindo mesmo o enredo bíblico em si. Assim, a história de Noé e sua
arca só começa, na verdade, na metade do filme. A primeira metade é toda de uma
trama onde Travis (George O’Brien) e Al (Guinn Big Boy Williams) são dois
amigos que se alistam na Primeira Guerra Mundial, e Travis ainda se apaixona
por uma alemã foragida, Mary (Dolores Costello), que tenta fugir da chantagem
de um militar (Noah Beery) que a deseja, e ameaça entregá-la como uma falsa
espião caso ela resista. Quando se começa a trama de Noé, todos estes mesmos atores
incorporam personagens centrais também, inclusive com a história guardando
diversas semelhanças com o enredo da primeira metade do filme. A arca de Noé
faz mesmo essa certa comparação da carnificina absurda que foi a Primeira
Guerra Mundial com o mundo pretensamente devasso que levara Deus a criar todo
aquele dilúvio, só salvando a família de Noé e os pares de animais. A própria
adoração a falsos deuses é comparada à adoração do homem do Século XX pelo
dinheiro (onde não mais se adoraria animais de ouros, mas sim os tickers da
Bolsa de Valores), assim como há um óbvio paralelo entre o arco-íris
pós-dilúvio e o anúncio do fim da guerra.
Se na trama de Noé a influência
de Os dez mandamentos continua a pesar (a forma como Deus se comunica com Noé
remete logo ao filme de Cecil B. DeMille), na do passado recente a influência
de filmes como Asas é mais direta, com o enredo lembrando bastante o do filme
de William Wellman, que tinha feito bastante sucesso (e ganho até o primeiro
Oscar de melhor filme). Sente-se que o filme foi todo construído para não
deixar margens a muitos erros, escorando-se ele com o que já tinha sido
eficiente em outros filmes. A própria medida de se acrescentar cenas faladas ao
filme também previa justamente agradar ao máximo ao público, que já exigia isso
depois do sucesso de O cantor de jazz. É de se registrar que a captação de áudio
impressiona, sendo bem superior do que o usual na época (os diálogos são claros
de se ouvir, com quase nenhum chiado), e a primeira cena falada até causa boa
impressão. Imagina-se inclusive que tenha agradado ao público em cheio por até
surpreendê-lo um pouco, por surgir depois de vários minutos após o filme ter se
iniciado. Apesar disso, claro, as melhores cenas são mesmo as mudas, já que com
a necessidade de se registrar o som necessitava-se de uma câmera muito estática
e de muitos closes forçados. De qualquer forma, é um dos melhores filmes
parcialmente falados, por saber evitar que o nível desabe com as cenas faladas.
Quanto aos atores, se não brilham, fazem o seu trabalho adequadamente, mais notadamente
George O’Brien (mais lembrado por sua atuação no clássico Aurora, de Murnau), a
bela Dolores Costello (que ficou marcada por outro clássico, no caso Soberba,
de Orson Welles) e Noah Beery (o irmão mais velho de Wallace Beery, aliás ambos
eram muito parecidos fisicamente). Myrna Loy tem dois papéis no filme também,
mas de pouco destaque, e ainda com sua imagem ligada a um certo exotismo, que
só a abandonaria nos anos 30 (onde viraria a imagem da “esposa perfeita”). E
Michael Curtiz demonstra, já desde essa época, seu domínio da linguagem
narrativa, não deixando o ritmo cair e criando várias cenas de impacto. A
partir daí criou uma carreira de muito sucesso, e é de se lamentar que vários
diretores, com um décimo dos clássicos que ele dirigiu em seus respectivos
currículos, costumam ser mais cultuados do que ele.
Mas nem tudo correu tão bem
assim. O filme, mesmo custando tão caro, foi lucrativo, mas a produção dele foi
um inferno quanto às cenas de efeitos especiais, mais propriamente o dilúvio em
si. Como filme sobre a história de Noé sem muito aguaceiro não tem graça, a
Warner e o diretor Michael Curtiz resolveram caprichar neste sentido, mas
passaram totalmente da medida do bom-senso. Três figurantes morreram afogados,
um teve sua perna amputada e a própria Dolores Costello pegou uma pneumonia por
causa da força das águas. John Wayne foi inclusive um dos figurantes nas cenas
de dilúvio, e imagina-se que o Duke tenha passado por um certo aperto. As cenas
de dilúvio ainda impressionam, mas tais acidentes chocaram Hollywood e foram
decisivos para que se regulasse um pouco mais a questão da segurança nas
filmagens. Quanto a Cecil B. DeMille, não deve ter ficado tão chateado com a
inspiração de seus filmes para a criação de A arca de Noé. Se ficou, pode-se
quase afirmar que ele se vingou, pois bem que seu Sansão e Dalila (de 1949) tem
cenas parecidíssimas com as do filme de Michael Curtiz quanto à cegueira
forçada de um personagem, que é preso e forçado a trabalhos pesados, girando
uma mó como Victor Mature fez no filme de 1949, num cenário muito similar.
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