Indomável sonhadora não parece
muito um filme americano. Em parte por se passar na Louisiana, um estado de
certa forma mais aparentado com as Américas Central e do Sul culturalmente do
que com o resto do país onde está localizado. E também pelo tratamento proporcionado
pelo diretor Benh Zeitlin, estreante em longas-metragens, mas que segue o
realismo mágico de seu último curta, Glory at sea, um estilo no qual o Cinema
latino costuma ser rotulado (estereotipado, inclusive) mundo afora. Este não é
um filme de roteiro cirúrgico, definido, apesar de derivar de uma peça de Lucy
Alibar (que também escreveu o roteiro do filme, junto com Zeitlin). O que
importa aqui é a atmosfera, as impressões e sensações que são captadas pelo
público. O espectador segue uma jornada emotiva e lírica através dos inocentes
e impressionáveis olhos da menina Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), e esse olhar
infantil, rodeado de um mundo assustador e fascinante, assevera que a lógica e
a racionalidade ficarão em segundo plano, tendo em vista que Hushpuppy mal
entende o que acontece ao seu redor. Em uma luta pela sobrevivência no meio de
uma enchente (que ela entende como resultante das calotas polares se
derretendo), ao lado de seu pai e em busca de sua mãe, Hushpuppy vai lidando
com o aprendizado de sua vida e com seus temores.
Benh Zeitlin conduz esta
quase-odisséia da menina muito ancorado na bela fotografia de Ben Richardson (também
egresso de Glory at sea), formando com ele essa parceria tão importante para os
dois filmes. É uma fotografia que abusa de câmera-na-mão e de algumas imagens
desfocadas, porém, que podem irritar boa parcela do público. Indomável
sonhadora não é um filme “fácil”, de público definido, nem visa o
entretenimento puro e simples. Sua bandeira é outra, de um filme independente
vencedor do Festival de Sundance, que visa desde o princípio um público um
pouco mais seleto. Dos nove indicados ao Oscar de melhor filme referente ao ano
de 2012, é sem dúvida o menos acessível ao grande público, que tende a ficar
entediado com ele ou se sentir perdido em meio a eventos quase surrealistas,
muitas vezes pouco (ou nada) explicados, mesmo que estes sejam envoltos em
algumas belas cenas. É estranho, mas as indicações ao Oscar, que o trouxeram
visibilidade e contato com um público que poderia nem saber de sua existência,
também expõem Indomável sonhadora a uma rejeição muito maior do que sofreria se
estivesse restrito a um público mais identificado com este tipo de filme.
O elenco é formado por
não-atores, que Benh Zeitlin cuidadosamente escolheu em um longo período.
Quvenzhané Wallis conseguiu se projetar no meio de 4000 meninas entrevistadas,
tendo até que mentir a idade (tinha apenas 5 anos quando ingressou no processo
de seleção). Conseguiu a façanha de se tornar a mais jovem indicada ao Oscar de
melhor atriz, com 9 anos (de todas as categorias competitivas, o recorde ainda
é de Justin Henry, com 8 anos por Kramer vs. Kramer), e impressiona porque na
verdade ela tinha apenas 6 anos quando foram realizadas as filmagens. Não chega
a ser uma atuação deslumbrante, até por ser muito dependente de narração em voz
over, e algumas atuações infantis famosas são de fato mais complexas do que a
dela (a de Justin Henry mesmo, por exemplo), mas mesmo assim é digna de
elogios, pois não é qualquer criança que carrega um filme desta envergadura nas
costas. Se ela não funcionasse em seu papel o filme desabaria, e o mesmo pode
ser dito de Dwight Henry, que interpreta Wink, o pai de Hushpuppy.
Curiosamente, ele era apenas o dono da padaria localizada defronte à produção
do filme, onde inclusive eram afixados pôsteres chamando as pessoas para atuar
no projeto. Em um momento de calmaria, participou do processo de seleção sem
grandes ambições, e logo sumiu do mapa quando abriu seu negócio em outro local.
Benh Zeitlin teve dificuldades em encontrá-lo, mas fez questão de contar com
ele, fazendo malabarismos para filmá-lo em horários em que não estivesse
trabalhando (de noite ou de madrugada). Ele traz uma vitalidade importante para
o filme, e instabilidade estranhamente misturada com proteção para a jovem
Hushpuppy, ao tentar ensiná-la a viver naquele ambiente tão hostil, já que sabe
que não conseguirá protegê-la por muito tempo.
O filme de Benh Zeitlin, se
afasta parte significativa do público com sua narrativa não-linear e lírica, em
contrapartida costuma agradar em cheio ao público mais intelectualizado, não só
pela questão da ecologia, como também por uma certa inocência ao retratar os
habitantes daquele local, em especial Hushpuppy, sob a ótica de serem “nobres
selvagens”. Há um evidente olhar afetivo para aquelas pessoas, que encontra eco
em uma maioria do público atual que vive em cidade grande e que de certa forma
idolatra viver uma vida mais ligada à natureza. Igualmente, há também uma certa
divinização da pobreza extrema, que faria Joãosinho Trinta soltar uma bela de uma gargalhada
e dizer “Eu não disseque intelectual adora pobreza?”, se ainda estivesse vivo.
Indomável sonhadora pode ser perfeitamente criticado por abusar um pouco desta
questão por espectadores mais cínicos. Aliás, o filme pressupõe mesmo um certo
mergulho de cabeça, uma aceitação de peito aberto das premissas da história e
do estilo do diretor. E muitos o fizeram, inclusive o Presidente dos EUA Barack
Obama, que o elogiou aos quatro ventos, ajudando a trazer ainda mais
publicidade para o filme. Aliás, a campanha política de sua reeleição usou a
trilha sonora do curta Glory at sea, composta por Dan Romer e pelo próprio Benh
Zeitlin, o que já demonstra a identificação de Obama com o estilo de Zeitlin,
desde antes de Indomável sonhadora.
Se o diretor e os atores
Quvenzhané Wallis e Dwight Henry serão sambistas de uma nota só, conseguindo
muito sucesso (mais de crítica do que de público) com este filme, para
desaparecerem de cena poucos anos depois, o futuro dirá. A possibilidade
existe, e qualquer um que estude sobre a História do Cinema verá que isso é
muito comum. O próprio Oscar, a cada ano, apresenta indicações de “jovens
promessas” que depois muita gente tem dificuldade de lembrar. Quvenzhané Wallis
e Dwight Henry em breve aparecerão em Twelve years a slave, o próximo filme de
Steve McQueen (diretor de Shame), o que pode indicar um mínimo de continuidade
em suas recém-iniciadas carreiras. Quanto ao diretor, a proximidade temática
entre os dois filmes mais recentes da breve carreira de Benh Zeitlin apontam o
risco de possivelmente ele ser um homem com um discurso único, apesar dele
demonstrar ser eclético por mostrar talento também como compositor, tendo em
vista a bela trilha sonora do filme. O caminho à frente destes três artistas tende
a ser tão espinhoso quanto o de Hushpuppy em Indomável sonhadora. Talento eles
tem, mesmo os maiores críticos do filme tendem a reconhecer isso, cabe saber se
vão resistir ao realismo nada mágico de dirigir e atuar em filmes, em ambientes
ainda mais inóspitos do que os dos pântanos da Louisiana.
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