Em um mundo perfeito, Peter Jackson,
junto com toda a sua talentosa equipe, teria feito primeiro a adaptação do
livro O Hobbit, de Tolkien, em um filme apenas, nem que fosse de quatro horas
de duração. Receberia elogios mil, e ganharia dinheiro suficiente para, aí sim,
vir com tudo para adaptar a trilogia de O senhor dos anéis, em 3 filmes grandes
mesmo, como fez entre 2001 e 2003. A história seguiria uma certa cronologia, e
a trilogia é mesmo mais complexa que O Hobbit, o que garantiria que superaria
as expectativas do público. Mas, claro, o mundo não é perfeito. Peter Jackson
fez a trilogia antes de partir para adaptar a história de O Hobbit. Uma escolha
muito inteligente do ponto de vista financeiro, evidentemente, pois a trilogia
tinha mesmo mais apelo junto ao público, e fica difícil querer fazer graça com
investimentos da casa de centenas de milhões de dólares. Mas, do ponto de vista
de todo o resto, uma escolha que trouxe seus obstáculos, alguns praticamente intransponíveis.
O maior destes obstáculos complicados
era exatamente a altíssima expectativa do público depois do sucesso incrível de
crítica e público com a primeira trilogia (bilheterias de bilhões de dólares
mundo afora, e dezessete Oscars recebidos, dentre muitos outros prêmios). Peter
Jackson sabia disso, e tentou manter-se como apenas um produtor desta nova
aventura cinematográfica. Por alguns anos, o diretor seria Guillermo Del Toro
(Hellboy, O labirinto do fauno). Mas a produção de O Hobbit: Uma jornada
inesperada foi tumultuada, com falência da MGM no meio do caminho (que
atrapalhou por anos também 007 – Operação Skyfall), brigas entre a produtora
New Line Cinema e Peter Jackson, e até uma úlcera deste último. Guillermo Del Toro
partiu para outros projetos, e o anel voltou ao dedo de Peter Jackson. Só que este
anel, ao invés de o fazer desaparecer, o faz ficar totalmente na berlinda. Foi
como se a Terra-Média o estivesse chamando de novo. De certa forma, Peter
Jackson sempre se pareceu mesmo com um Hobbit fisicamente, talvez este seja seu
destino, no fim das contas.
Com esta nova missão nas mãos, o
que fez Peter Jackson? Auxiliado no roteiro pelas mesmas Fran Walsh e Philippa
Boyens da trilogia (e mais a participação de Guillermo Del Toro, significativa
mesmo com ele abandonando o leme antes das filmagens), é nítido que a tentativa
aqui foi de encorpar a história. Não há como negar que o livro O Hobbit é muito
mais infantil e despretensioso do que os três que compõem a trilogia de O
senhor dos anéis. Não é muito mais do que uma aventura leve de Bilbo, Gandalf e
um grupo de anões em busca de um tesouro guardado por um dragão. Assim sendo, o
diretor, junto com sua equipe, fez o possível e o impossível para adicionar
grandeza e importância à esta simples história em todas as oportunidades
possíveis. Sempre que pode, surge um personagem da trilogia que invariavelmente
demonstra as implicações (por vezes muito indiretas) que aquela aventura pode
ter no futuro de todos os povos habitantes da Terra-Média. A trilha sonora
também se utiliza dos temas da trilogia, o que agrada ao público e o ajuda a
comprar a ideia de toda esta nova aventura. Pescando detalhes e informações de
O Silmarillion, e de apêndices de O senhor dos anéis, a equipe do filme valoriza
mais a história e tenta ressaltar que tudo aquilo é muito mais do que uma
simples aventura. Consegue um certo resultado, mas não faz milagres, continua
óbvio que O senhor dos anéis é muito mais relevante, e o lado mais infantil do
livro O Hobbit acaba transparecendo em O Hobbit: Uma jornada inesperada. É como
se o filme fosse uma criança vestida de fraque e cartola. Está muito bem
vestida e adquire um ar mais solene e menos brincalhão, mas continua sendo uma
criança.
A decisão de se fazer uma nova
trilogia em cima de um livro nem tão grande assim é parte dessa estratégia de
valorizar o enredo, assim como a de filmar em 3D e com 48 fotogramas por
segundo, ao invés dos usuais 24 (claro que muitos cínicos dirão que foram estratégias
para ganhar mais dinheiro nas bilheterias, o que não deixa de ser também
verdadeiro). Uma trilogia parece naturalmente mais “importante” do que apenas
um filme sozinho, e o ineditismo dos 48 fotogramas não deixa de botar o filme
na “História do Cinema”. O resultado, claro, mesmo levando-se em conta tudo o
que foi encorpado na história, trazido de outros livros e apêndices, é que o
filme fica mesmo um pouco esticado (e os 48 fotogramas não trazem tanto
assombro assim). Essa esticada, curiosamente, acaba aproximando mais O Hobbit:
Uma jornada inesperada do universo de J. R. R. Tolkien do que a própria
trilogia de O senhor dos anéis. Como a trilogia abarcava muitos elementos e
tramas, a preocupação ali era cortar o que não fosse estritamente necessário, e
acelerar o possível quanto à ação. Não havia muito tempo a perder. Desta vez,
tempo não é o problema, muito pelo contrário, há tempo de sobra. E desta feita
sente-se, enquanto se assiste este primeiro filme da nova trilogia, mais ou
menos como se sente um leitor de Tolkien, ao ler sobre todas aquelas
caminhadas, as cantorias, a camaradagem entre aqueles personagens. Não é raro
encontrar pessoas que abandonam os livros de Tolkien no meio justamente por
acharem tais passagens muito longas. Não por acaso, muitos acham este filme
aqui arrastado. Para o padrão de um blockbuster, é mais arrastado mesmo. Mas é adequado
ao ritmo dos livros, é muito mais verdadeiro neste sentido.
O filme, após um belo prólogo
(que enfatiza a importância da história, e ainda remete também ao começo de O
senhor dos anéis: A sociedade do anel), e uma cena-fetiche entre Ian Holm e
Elijah Wood (Bilbo velho e Frodo, respectivamente), apresenta um começo mais
lento mesmo, com a chegada de cada personagem (apesar de ser difícil
diferenciar os anões entre si, um problema também do livro), sem se apressar. Gandalf
capitaneia o grupo, e somos apresentados aos dois personagens mais importantes
desta nova trilogia, o próprio Bilbo mais novo (Martin Freeman) e Thorin, o Rei
dos anões (Richard Armitage). Ambos os atores foram escolhas acertadas. Martin
Freeman, o Dr. Watson da série Sherlock, da TV inglesa (onde contracena com
Benedict Cumberbatch, que curiosamente também participa deste filme, em um
pequeno papel como o Necromante) está muito bem com todos os seus temores e
dúvidas, que parece um pato fora d’água no meio daqueles perigos todos. Richard
Armitage é o personagem mais sofrido deste filme, um emblema de um povo que
perdeu tudo (os outros anões parecem muito mais joviais e alegres do que ele,
que nunca brinca). Tenta resgatar o que seu povo perdeu, e mal atura o amadorismo
de sua equipe. Ian McKellen de novo é Gandalf, e repete a excelência de suas performances
anteriores. Desta vez Gandalf pisa mais em ovos, tem que o tempo todo apartar
brigas e controlar egos, não só dentro do grupo mas também fora, com elfos e
magos (com isso, vemos breves retornos de Hugo Weaving, Cate Blanchett e Christopher
Lee). Quando o filme aquece, porém, as cenas de ação são do mesmo nível das
vistas na trilogia (talvez até um pouco superiores), mostrando a experiência da
equipe após os três filmes realizados. E temos a clássica cena de Bilbo com o
Gollum, talvez a melhor do filme (essa sim, egressa do livro mesmo, e que tem
tudo a ver com a trilogia de O senhor dos anéis). E, com história esticada e
tudo o mais, Peter Jackson consegue deixar o gostinho de “quero mais” em boa
parte do público, que esperará por The Hobbit: The desolation of Smaug (previsto
para final de 2013, e cujas filmagens já se encerraram), e The Hobbit: There
and back again (a ser lançado em 2014).
O resultado é muito satisfatório,
uma bela aventura, de sentir inveja de quem é criança ou adolescente nos dias
atuais (há 30 anos atrás, tinha-se Krull e Flash Gordon, por exemplo, e a
rapaziada lambia os beiços mesmo assim). Por muitos anos, os livros de Tolkien
eram considerados “infilmáveis”, tanto pelos efeitos especiais que exigiriam,
como pela opulência das histórias. Peter Jackson, muito bem auxiliado por uma
enorme equipe de experts, mostrou no começo do Século XXI que tinha chegado a
hora de fazer justiça à imaginação de Tolkien nas telas. E, agora, paga pelo
seu sucesso anterior. Enquanto com a trilogia de O senhor dos anéis o Peter
Jackson tinha um carrão em mãos, largando na Pole Position, e ganhou suas três
corridas com autoridade, com direito a champagne no pódio, gritos de fãs e
milhares de entrevistas, com O Hobbit: Uma jornada inesperada ele está numa
equipe nova, com um carro bem mais modesto em mãos, e tendo que largar no meio de
um monte de carros, disputando freadas com uns garotos alucinados. Tem que se
superar a cada curva, conduzindo o carro no limite, e termina num bem honroso
quinto lugar. Chega ao seu Box suado, exausto, e de longe vê a festa no pódio
de outros pilotos. No dia seguinte, lê nos jornais que “Peter Jackson chega
apenas em quinto”. Ele sabe que fez um corridão, que tirou do carro tudo o que
podia tirar (até mais). Mas quase ninguém vê sua performance assim. A visão da maioria é de que está decadente,
que seus melhores dias estão atrás de si. É muito complicada a vida de quem sai
do Condado. Bem o sabem Bilbo, Frodo e Peter.
3 comentários:
Ainda não vi o filme, Marcelo, mas o que mais me traz desconforto (talvez com um pouco de irritação) é o fato de O Hobbit ter sido transformado numa nova trilogia. Não fosse a existência da fantástica - e até necessária - trilogia de O Senhor dos Anéis, seria impensável, sob qualquer circunstância, algum cineasta conceber O Hobbit como uma trilogia. Fico com muito receio de me deparar com encheções de linguiça forçadas, apenas para deixar o tempo passar. Um filme de 150 minutos conseguiria dar conta do recado com o pé nas costas.
Só falta depois eles lançarem a versão estendida da nova trilogia!
Sergio, relaxa. O filme é muito interessante, uma ótima aventura, mesmo com esse lance de tornar um livro só em uma trilogia. Foi uma estratégia tanto para valorizar o novo projeto, quanto para ganhar um troco extra. Mas não torna este primeiro filme, ao menos, inassistível, ou uma enrolação só. Não, longe disso. Quem gostou da trilogia, tem tudo para gostar deste filme aqui. É mais lento, e tudo o mais, mas nisso está até mais perto do que era a experiência de se ler um livro do Tolkien. Acho que você vai curtir, mesmo que com algumas naturais ressalvas.
Quanto à versão estendida, chance grande de rolar futuramente, o Peter Jackson adora essas coisas.
Certamente verei. Depois volto aqui para dizer o que achei.
Abraço!
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