Muitos podem pensar que o filme A
hora mais escura tenha nascido como um tentativa de glorificar os EUA, com o
momento de catarse coletiva americana que foi a morte de Osama Bin Laden, em
2011. Mas, na verdade, o projeto inicial de Kathryn Bigelow e do roteirista
Mark Boal (ambos formaram uma oscarizada parceria em Guerra ao terror, de 2008)
era totalmente diverso. Eles já tinham inclusive finalizado um roteiro e
estavam prontos para filmar um enredo sobre a batalha de Tora Bora, onde os
americanos quase conseguiram pegar Bin Laden num complexo de cavernas no
Afeganistão, em 2001. Tudo estava pronto para um projeto calcado em decepção
militar, e no sentimento global de que nunca Bin Laden seria encontrado. Mas a
vida puxou o tapete da diretora e do roteirista, ao mesmo tempo em que lhes deu
um grande presente, quando estourou a notícia de que Bin Laden tinha sido
alvejado por uma força especial de operações dos EUA (o SEAL Team Six) em uma
espécie de bunker em Abbottabad, no Paquistão, em 2 de Maio de 2011. Eles sentiram
que tinham, assim, que redirecionar todo o projeto, e tentar entender como foi
o sofrido (e burocrático) processo de não só se descobrir onde Bin Laden
estava, como também de conseguir capturá-lo ou matá-lo no local.
Mark Boal e Bigelow fizeram uma
extensa pesquisa, que inclusive trouxe dúvidas e acusações de políticos
americanos de que teriam tido um acesso indevido a informações confidenciais, além
de possivelmente estarem querendo puxar uma brasa para a sardinha do Presidente
Barack Obama, que no fim das contas tinha dado a autorização final para a
investida do SEAL Team Six. Bigelow logo descartou esta última hipótese, já que
o nome de Obama sequer é citado em seu filme. Assim como Guerra ao terror, este
seu filme não tem um caráter muito político, o foco de Bigelow está mesmo em
mostrar as entranhas da guerra por parte dos soldados e, mais especialmente no
caso de A hora mais escura, nos funcionários da CIA que tentam descobrir
informações vitais para se conseguir o objetivo final.
Quanto à alegação de que a
produção do filme tivera acesso a informações proibidas a civis, as respostas
geralmente seguiam a linha de “sem comentários”, com a esperada defesa do
sigilo das fontes. No fundo, o fato de A hora mais escura ter recebido críticas
de diversos políticos e militares americanos não deixa de ser um bom sinal, isso mostra que é um filme que incomodou o poder estabelecido (filmes chapa-branca
só recebem elogios dessas pessoas). O filme dirigido por Kathryn Bigelow de
fato consegue fazer o espectador se sentir por dentro de todo aquele processo,
inclusive fazendo críticas à burocracia e inércia do Governo americano e dos
militares, que de fato dão a impressão de que vão deixar Bin Laden escapar quantas
vezes for localizado. E, claro, a diretora ainda mete a mão com vontade no
maior vespeiro de todos, o uso de tortura pelos americanos para obter
informações dos prisioneiros. Aqui, não tinha muito para onde correr, se ela
não mostrasse tortura nenhuma, seria acusada de estar pilotando um filme
chapa-branca que receberia uma chuva de críticas por parte de críticos de
Cinema e jornalistas, dentre outros profissionais, por estar tentando maquiar a
realidade. E se mostrasse seu uso, o Governo e os militares americanos viriam
de garfo e faca em cima (como vieram), dizendo que o filme é apenas uma ficção,
um monte de mentiras, o desprezando, em suma. Pelo visto, já que as críticas
eram inevitáveis, Bigelow resolveu recebê-las fazendo um filme duro, verídico e
direto-ao-ponto, como é de seu feitio. A tortura está no filme, mas não é
glorificada de forma alguma, inclusive fica-se com a impressão que, sob
tortura, as informações poderiam ser inventadas só para que o torturado parasse
de sofrer.
E é justamente na forma de se
lidar de forma mais inteligente com a busca por Bin Laden que entra em cena a
personagem Maya, de Jessica Chastain. Ela é definida desde o começo como uma “killer”,
que se refere não à sua capacidade de puxar o gatilho, mas de não desistir
nunca, não importando os obstáculos. A Maya de Jessica Chastain é obstinada, e guarda
muitas semelhanças com o personagem de Jeremy Renner em Guerra ao terror. Ambos
eram obsessivos em seus trabalhos, indisciplinados, e com uma vontade férrea de
fazerem o que acham certo, pouco importando ordens em contrário, assim como ambos parecem não ter vida fora do trabalho. Maya, inclusive, dá a impressão de não ter sequer
um amigo, ela é um lince com olhos apenas para Bin Laden, por mais escondido
que ele esteja. E parece tão fanática como ele, mesmo que com objetivos
claramente diferentes (talvez Bin Laden nunca fosse capturado se quem estivesse
à sua procura trabalhasse só de 9 às 5, convenhamos). Ela consegue oprimir seus superiores,
algo muito difícil em ambientes de hierarquia militar, ainda mais para uma
mulher. Todos de certa forma a temem, e acima de tudo a respeitam. É quase como
se Jessica Chastain representasse a própria Kathryn Bigelow dentro do filme,
tendo em vista que Bigelow vêm se afirmando em um ambiente eminentemente
machista que é o gênero Guerra, visto como machão por natureza. Jessica
Chastain, que surgiu para o grande público como a esposa dócil e submissa de
Brad Pitt em A árvore da vida, de Terrence Malick, mostra que pode interpretar
com igual competência um papel tão mercurial e imponente como o de Maya, sem
cair na caricatura. Sua meteórica carreira assombra por ela já se mostrar
estabelecida no Cinema americano, fazendo diversos filmes importantes, um atrás
do outro (A árvore da vida, O abrigo, Histórias cruzadas, Os infratores, etc.),
com ela não tem essa de “comer pelas beiradas”, ela já está lambendo o prato. Chastain
domina totalmente o filme, mesmo nem tendo tanto tempo em tela assim, e
ainda por cima em um filme composto de inúmeros personagens, interpretado por
atores da chapa de James Gandolfini, Jason Clarke (ótimo também, como um
torturador que vai sentido o peso do que faz), Jennifer Ehle (Contágio), Kyle
Chandler (Super 8), Harold Perrineau (o Michael da série Lost) e Joel Edgerton
(Guerreiro).
O filme, mesmo um pouco longo,
tem um bom ritmo, e exige uma certa atenção do espectador para não se perder no
meio de alguns nomes e patentes. Mas tal esforço é recompensado, pelo vislumbre
dos meandros da inteligência militar americana, e pelo seu excelente final,
onde vemos como foi executada a operação que culminou com a morte de Bin Laden.
É uma longa sequência magistral, de grande tensão, e que passa a importância
daquele momento, após dez anos procurando um homem que causara uma cicatriz na
alma dos EUA. Fecha com competência um filme tenso como A hora mais escura,
cujo título em inglês se refere exatamente à hora (no jargão militar,
meia-noite e meia) da operação que trouxe uma rara vitória, inclusive
midiática, na guerra contra o terrorismo.
Kathryn Bigelow impressionou
muita gente ao ser a primeira mulher a ganhar o Oscar, ainda mais no ano de
Avatar (o recordista com a maior bilheteria da história do Cinema), dirigido
justamente por seu ex-marido, James Cameron. Se parecia um Oscar precipitado,
ganho num impulso, A hora mais escura
é um argumento em celulóide, uma chancela after-the-fact que valida este Oscar recebido por ela em 2010, não só pelas indicações ao prêmio que o filme recebeu (para melhor Filme, Atriz, Roteiro original, Edição e
Edição sonora), como também pela evolução que ela mostrou com
este filme, que pode não ser político, mas faz pensar sobre a pouca eficiência
das torturas, a burocracia e a obsessão de pessoas que largam tudo por um
ideal. A hora mais escura chegou para Osama Bin Laden em 2011, morto num
complexo onde nunca saía, em total reclusão, e com o corpo jogado no mar. Para as
carreiras de Jessica Chastain e Kathryn Bigelow, porém, o futuro traz grandes
expectativas, e o mundo se abre para elas. Melhor nem tentar muito resistir,
até porque ambas já demonstraram que não tem nenhum medo de cara feia.