Em 2007, Cristian Mungiu marcou o
Cinema da Romênia ganhando a Palma de ouro em Cannes com o excelente filme 4
meses, 3 semanas e 2 dias. Com Além das montanhas, ele volta a tratar de um
tema polêmico no país (antes o aborto ilegal, agora a Igreja ortodoxa), focado
de novo em duas amigas que tem uma relação de amizade íntima e ao mesmo tempo
tensa, e que veem um homem forte e decidido se interpor entre elas (no filme
anterior, um médico clandestino, e neste um padre rígido). Em relação a Cannes,
o raio não chegou a cair no mesmo lugar, mas chegou perto, levando os prêmios de
2012 de roteiro para Mungiu, e de atriz para duas estreantes no Cinema, Cristina
Flutur (que interpreta Alina, e já tinha uma boa experiência no teatro romeno)
e Cosmina Stratan (a Voichita do filme, com mais experiência em curtas).
Em relação ao filme em si, porém,
o raio caiu um pouco mais longe. Apesar dessas semelhanças entre os dois longas
mais recentes de Mungiu, é claro que Além das montanhas tem sua originalidade,
tratando de uma adaptação livre de um caso que causou furor no país,
relacionado a uma tentativa de exorcismo praticado por uma seita católica ortodoxa
(que ganhou projeção nacional ao ser escrito por Tatiana Niculescu Bran, jornalista
da BBC na Romênia na época). Mas o impacto de Além das montanhas não chega nem
perto do de 4 meses, 3 semanas e 2 dias, apesar do filme ter seus méritos. Mungiu
preferiu se ater mais à estranha relação entre as duas personagens principais, que
conviveram por muito tempo em um orfanato e que parecem ter tido alguma relação
afetiva neste período, e à tensa convivência delas dentro deste monastério
rigoroso. Alina regressa da Alemanha, e
tenta resgatar Voichita deste estranho lugar, mas logo descobre que Voichita
parece bem adaptada ao local, sob o jugo de um padre de forte liderança. A
situação é bem mais complicada do que Alina pensara a princípio, pois Voichita ama
Deus, e repudia os avanços de Alina, ao mesmo tempo em que quer que sua amiga fique perto
de si, até para ajudá-la a ter paz e a se reencontrar com Deus. Alina resiste o
quanto pode, mas também não quer abandonar a única pessoa que ama no mundo. Nesta
difícil situação, em que ninguém quer ceder, e também ninguém desiste, o
próprio padre, junto com as outras freiras, fica também em situação difícil,
pois repudia Alina, não a enxerga como pertencente àquele meio (com razão), mas
não consegue se livrar dela, pois sempre Voichita aparece com mais súplicas
para que sua amiga continue ali, por não ter onde ficar. O espectador vê o muro
chegando perto, e nenhum personagem parece capaz de frear o carro. O desastre
parece iminente.
O maior problema de Além das
montanhas, porém, é que Mungiu estica por demais o filme, tornando o miolo
deste um pouco repetitivo. A tensão sim cresce, mas em doses homeopáticas,
tirando um pouco do impacto de um começo muito interessante, e de um final
também marcante. Enquanto em 4 meses, 3 semanas e 2 dias a tensão era crescente
e, por vezes, praticamente insuportável, neste filme aqui o diretor e
roteirista afrouxa um pouco a tensão, e dá a impressão dos 150 minutos do filme
serem desnecessários (provavelmente, seria um filme melhor com apenas duas
horas). Em compensação, ele demonstra uma grande maturidade ao não demonizar
aquela seita, não criar “vilões” automáticos para o filme (segundo o diretor,
seguindo até a linha do texto de Tatiana Niculescu Bran). O padre e as freiras
do monastério são rígidos, evidentemente, mas não desumanos ou estúpidos.
Dentro de suas filosofias, tentam fazer sua parte, e ajudar Alina e Voichita
dentro do possível. Não tentam converter Alina à força, apesar de deixarem
claro que não aprovam a sua conduta, que é mesmo agressiva frente a seus credos.
Além das montanhas não é um filme que demonize a religião ou seus seguidores,
mesmo os mais ortodoxos dentre eles. O que não quer dizer que Mungiu não saiba
criar boas cenas explorando a pouca fé e o comportamento anárquico e agressivo
de Alina, em contraste com um ambiente tão austero, sem energia elétrica, e
onde as freiras tem que pegar água de um poço. Uma cena, ao mesmo tempo triste
e hilariante, mostra as freiras lendo para Alina uma lista enorme de pecados,
onde ela tem que anotar em um caderninho quais ela cometeu. O que começa
divertido para as freiras, logo vai se tornando aflitivo para elas, ao verem
que Alina marca quase tudo, e a freira que lê os pecados apressa a leitura,
para acabar logo com isso, enquanto Alina esconde um pouco o caderno, para que
as freiras não vejam mais o que está marcando ou não.
As atuações são, de fato, de alto
nível. As vencedoras do prêmio em Cannes, um raro caso em 2 atrizes do mesmo
filme levarem o prêmio, estão muito bem, ressaltando o amor entre elas, e a
difícil situação em que se encontram. Cristina Flutur está até um pouco acima
da companheira, até por seu papel ser um pouco mais rico, tentando desafiar
tudo aquilo, e sentindo ciúmes da amiga em relação ao padre e a Deus. Mas
Cosmina Stratan também está ótima, tentando fazer com que nem o veado morra e
nem a onça passe fome, ou seja, quer manter Alina em um ambiente em que ninguém
quer que ela conviva (nem a própria Alina), sem cogitar abandonar o monastério
junto com a amiga. Mas o padre, brilhantemente atuado por Valeriu Andriuta,
também é fundamental. Cristian Mungiu teve que buscar Andriuta na Irlanda, pois
ele tinha abandonado já o Cinema. Mas Mungiu se lembrou de seu companheiro, que
atuou em seus curtas (inclusive os de faculdade), assim como em seu primeiro
longa (Occident), e fez questão de sua presença no filme. Valeu a pena o
esforço. Andriuta paira sobre o filme, sente-se sua presença mesmo quando não
está em cena. Consegue aliar firmeza com um certo equilíbrio, demonstrando
sensatez ao ver que sua filosofia de vida não é para todos, e até certa
constrição ao ver as agressões de Alina.
Como era de se esperar, mesmo
assim Mungiu recebeu críticas de religiosos em seu país. Talvez fosse
inevitável, pelo tema polêmico, inclusive. E também porque em Além das
montanhas o diretor expõe como alguns médicos e policiais desprezam os
religiosos ortodoxos, fazendo pouco caso deles, de seus hábitos e crenças. Mas
Mungiu não tem medo de botar a mão no vespeiro, e tem mostrado que sabe lidar
com temas fortes, sem forçar demais a mão para um lado ou para o outro. Tudo filmado de
forma barata, focado em bons atores, em um ambiente austero, e sem grandes
malabarismos de câmera. Com um pouco mais de agilidade no ritmo deste filme, teria
feito um outro clássico. Mesmo errando um pouco na medida dessa vez, Cristian
Mungiu vai se estabelecendo como um diretor cada vez mais renomado, que sabe
vencer o mundo falando dos problemas e conflitos de sua aldeia.
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