segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A viagem (Cloud Atlas – 2012)




Tanto os irmãos Wachowski (com Matrix) como o alemão Tom Tykwer (com Corra, Lola, corra) ajudaram a modernizar os thrillers do fim dos anos 90, e não surpreende que se entendam bem, a ponto de trabalharem juntos em todo o longo processo de A viagem. Tudo começou em 2005, com Natalie Portman mostrando o livro de David Mitchell que lia nos sets de filmagens de V de vingança (dirigido por James McTeigue, mas com roteiro dos Wachowskis) para Lana Wachowski (que antes era Larry, que fez operação para mudança de sexo). Natalie criou a fagulha que os fez querer adaptar um livro em tese “infilmável”, e deveria ter atuado no filme, mas sua súbita gravidez impediu isso. Tom Hanks também foi importante, por motivar o trio de diretores o tempo todo, não deixando o (caro) projeto ir para o brejo (como tantas vezes ameaçou ir). Ações em tese pequenas, de indivíduos, que ajudaram a tornar um filme ambicioso como este uma realidade.

A viagem lida, entre muitas outras coisas (bota muitas nisso), exatamente com uma certa conectividade entre eventos a princípio nada conectados. A sua complexa trama (na sua forma, não no seu conteúdo) abarca seis subtramas, de diferentes épocas, desde o Século XIX até um futuro distante. E, famosamente, faz isto com um conjunto de atores que interpretam, cada um, diversos personagens nas mais diferentes épocas e situações. Se a maquiagem não acerta 100% das vezes (alguns personagens ficaram falsos, deve-se ressaltar), ela chega perto disso em um projeto absurdamente desafiante, a ponto de em algumas situações os atores famosos estarem irreconhecíveis. Assim sendo, Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving e Jim Sturgess estão presentes em cada uma das 6 tramas (mesmo que com cor de pele ou até mesmo sexo diferente), e Jim Broadbent, Hugh Grant, Susan Sarandon, James D’Arcy, Ben Whishaw e Doona Bae, entre outros, atuam na maioria das histórias apresentadas. Este artifício, brilhante em termos de marketing, atrai uma tremenda atenção para o filme, lhe concedendo um charme extra, além de ajudar a realçar o contexto de vidas passadas que o filme apresenta em seu cerne. Entretanto, por vezes o tiro sai pela culatra, pois pode perfeitamente também distrair o público, que pode ficar mais preocupado em “achar” os atores no filme do que em imergir na trama. Os próprios atores acabam ficando um pouco eclipsados por esta multiplicação de atuações, tendo sempre pouco tempo para desenvolverem melhor seus personagens. Este não é um filme de grandes atuações, apesar de nenhum ator destoar.

Os diretores dividiram o filme em dois blocos, com os irmãos Wachowski ficando com os extremos temporais, isto é, a história do passado mais remoto, assim as duas justamente passadas no futuro, enquanto Tykwer encarou os enredos mais “contemporâneos” (forçando uma barra, claro, pois um deles é da década de 30). Uma divisão que reservou aos Wachowski partes mais focadas em ação, e Tykwer lidando mais diretamente com o drama, o que talvez tenha sido a decisão mais acertada, de fato, dentro das especialidades de cada um (é bom lembrar que Tykwer dirigiu o belo Paraíso, adaptado de um roteiro do falecido Krzysztof Kieslowski). A divisão foi tão completa, que até as equipes técnicas eram diferentes, com apenas os atores em comum entre eles. A chance de desastre era grande, mas o trabalho entre eles foi afinado, não resultando, de forma alguma, em um filme errático e irregular. A viagem impressiona pelo ótimo ritmo, conseguindo que um filme de quase três horas, com diversos saltos temporais, não fique chato, ou difícil demais para o público entender. O filme exige, claro, atenção do espectador, mas não uma que o deixe tenso ou aflito para não perder nenhum mínimo detalhe. É um filme razoavelmente fácil de acompanhar, apesar de, evidentemente, no começo o espectador ficar um pouco perdido. Em pouco tempo, porém, o público tende a se acostumar com o andar das coisas, e a aproveitar a bela viagem.

Este é um filme que engloba temas caros aos irmãos Wachowski, que são a luta pela verdade dentro de um sistema, assim como a resistência dos oprimidos, mesmo frente a prognósticos muito adversos. O filme tem um eco claro de Matrix e V de vingança, e também evoca explicitamente No mundo de 2020 (a ponto de inclusive se utilizar de seu diálogo mais famoso), assim como também ao próprio Intolerância, de Griffith, feito quase cem anos antes, mas que também era um filme muito ambicioso, com tramas diferentes (inclusive no tempo) interligadas por um tema comum. Mas isto não muda o fato de A viagem ser bastante original. Aos que reclamam da enxurrada de refilmagens e continuações no Cinema comercial atual, a viagem é com o se fosse uma chuva no deserto, um filme bastante criativo e feito para impressionar por sua grandiloquência, com maquiagem, efeitos especiais, fotografia, trilha sonora (esta com participação de Tom Tykwer) e direção de arte de primeiro nível. Além disso, tem um escopo enorme, tentando analisar o que move as relações humanas, abarcando piedade, compaixão, desprezo, preconceitos, indiferença, conservadorismo, rebeldia, misticismo, fé, etc. É um filme com um claro viés político, por debaixo de toda a questão de vidas passadas, que tenta demonstrar que quem está por cima da carne seca em uma vida, agindo implacavelmente, no futuro poderia estar comendo o pão que o diabo amassou, dependendo exatamente da compaixão que negara no passado.

Alguns filmes são belos por serem pequenos, terem objetivos muito modestos, e merecem aplausos por isso. Mas filmes como A viagem também merecem encorajamento justamente por apostarem muito alto, por terem uma ambição rara de se ver, quase insana. A viagem não quer só participar das Olimpíadas. Quer ganhar a medalha de ouro e trucidar o recorde mundial. Se consegue isso, depende de cada espectador, e as reações ao filme tem sido praticamente na linha “ame ou odeie”. Mas uma coisa ele com certeza conseguiu: Não é só “apenas mais um filme”, não é daqueles que são quase imediatamente esquecidos. E isso é um feito, em uma época de uma avalanche cultural incrível, onde os filmes logo são suplantados por outros, sem ter o mínimo tempo de se afirmar, como acontecia num passado não muito distante. A viagem é um show, um exemplo claro do que se chamava de “cinemão” americano (apesar do filme ser mais alemão que americano, devido a seu financiamento e produção). Uma espécie de “pague 1 e leve 6”, com o espectador assistindo vários filmes em um só, vendo alternadamente um pouco de ficção-científica, filme de época e épico, estrelado por vários atores famosos “multiplicados” pela maquiagem, em uma trama que lida com uma salada de emoções e sentimentos, calcados numa filosofia razoavelmente simples, acessível a todos os públicos. Quem tiver o espírito aberto para embarcar nesta insólita viagem, tem tudo para curtir bastante. E quem sabe até pode querer viajar outras vezes.

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