Tanto os irmãos Wachowski (com
Matrix) como o alemão Tom Tykwer (com Corra, Lola, corra) ajudaram a modernizar
os thrillers do fim dos anos 90, e não surpreende que se entendam bem, a ponto
de trabalharem juntos em todo o longo processo de A viagem. Tudo começou em
2005, com Natalie Portman mostrando o livro de David Mitchell que lia nos sets
de filmagens de V de vingança (dirigido por James McTeigue, mas com roteiro dos
Wachowskis) para Lana Wachowski (que antes era Larry, que fez operação para
mudança de sexo). Natalie criou a fagulha que os fez querer adaptar um livro em
tese “infilmável”, e deveria ter atuado no filme, mas sua súbita gravidez
impediu isso. Tom Hanks também foi importante, por motivar o trio de diretores
o tempo todo, não deixando o (caro) projeto ir para o brejo (como tantas vezes
ameaçou ir). Ações em tese pequenas, de indivíduos, que ajudaram a tornar um
filme ambicioso como este uma realidade.
A viagem lida, entre muitas
outras coisas (bota muitas nisso), exatamente com uma certa conectividade entre
eventos a princípio nada conectados. A sua complexa trama (na sua forma, não no
seu conteúdo) abarca seis subtramas, de diferentes épocas, desde o Século XIX até um futuro distante. E, famosamente, faz isto com um conjunto de atores que
interpretam, cada um, diversos personagens nas mais diferentes épocas e
situações. Se a maquiagem não acerta 100% das vezes (alguns personagens ficaram
falsos, deve-se ressaltar), ela chega perto disso em um projeto absurdamente
desafiante, a ponto de em algumas situações os atores famosos estarem
irreconhecíveis. Assim sendo, Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving e Jim
Sturgess estão presentes em cada uma das 6 tramas (mesmo que com cor de pele ou
até mesmo sexo diferente), e Jim Broadbent, Hugh Grant, Susan Sarandon, James D’Arcy,
Ben Whishaw e Doona Bae, entre outros, atuam na maioria das histórias
apresentadas. Este artifício, brilhante em termos de marketing, atrai uma
tremenda atenção para o filme, lhe concedendo um charme extra, além de ajudar a
realçar o contexto de vidas passadas que o filme apresenta em seu cerne.
Entretanto, por vezes o tiro sai pela culatra, pois pode perfeitamente também
distrair o público, que pode ficar mais preocupado em “achar” os atores no
filme do que em imergir na trama. Os próprios atores acabam ficando um pouco
eclipsados por esta multiplicação de atuações, tendo sempre pouco tempo para
desenvolverem melhor seus personagens. Este não é um filme de grandes atuações,
apesar de nenhum ator destoar.
Os diretores dividiram o filme em
dois blocos, com os irmãos Wachowski ficando com os extremos temporais, isto é,
a história do passado mais remoto, assim as duas justamente passadas no futuro,
enquanto Tykwer encarou os enredos mais “contemporâneos” (forçando uma barra,
claro, pois um deles é da década de 30). Uma divisão que reservou aos Wachowski
partes mais focadas em ação, e Tykwer lidando mais diretamente com o drama, o
que talvez tenha sido a decisão mais acertada, de fato, dentro das especialidades
de cada um (é bom lembrar que Tykwer dirigiu o belo Paraíso, adaptado de um
roteiro do falecido Krzysztof Kieslowski). A divisão foi tão completa, que até
as equipes técnicas eram diferentes, com apenas os atores em comum entre eles.
A chance de desastre era grande, mas o trabalho entre eles foi afinado, não
resultando, de forma alguma, em um filme errático e irregular. A viagem
impressiona pelo ótimo ritmo, conseguindo que um filme de quase três horas, com
diversos saltos temporais, não fique chato, ou difícil demais para o público
entender. O filme exige, claro, atenção do espectador, mas não uma que o deixe
tenso ou aflito para não perder nenhum mínimo detalhe. É um filme razoavelmente
fácil de acompanhar, apesar de, evidentemente, no começo o espectador ficar um
pouco perdido. Em pouco tempo, porém, o público tende a se acostumar com o
andar das coisas, e a aproveitar a bela viagem.
Este é um filme que engloba temas
caros aos irmãos Wachowski, que são a luta pela verdade dentro de um sistema, assim
como a resistência dos oprimidos, mesmo frente a prognósticos muito adversos. O
filme tem um eco claro de Matrix e V de vingança, e também evoca explicitamente
No mundo de 2020 (a ponto de inclusive se utilizar de seu diálogo mais famoso),
assim como também ao próprio Intolerância, de Griffith, feito quase cem anos antes,
mas que também era um filme muito ambicioso, com tramas diferentes (inclusive
no tempo) interligadas por um tema comum. Mas isto não muda o fato de A viagem
ser bastante original. Aos que reclamam da enxurrada de refilmagens e
continuações no Cinema comercial atual, a viagem é com o se fosse uma chuva no
deserto, um filme bastante criativo e feito para impressionar por sua
grandiloquência, com maquiagem, efeitos especiais, fotografia, trilha sonora
(esta com participação de Tom Tykwer) e direção de arte de primeiro nível. Além
disso, tem um escopo enorme, tentando analisar o que move as relações humanas,
abarcando piedade, compaixão, desprezo, preconceitos, indiferença,
conservadorismo, rebeldia, misticismo, fé, etc. É um filme com um claro viés político,
por debaixo de toda a questão de vidas passadas, que tenta demonstrar que quem
está por cima da carne seca em uma vida, agindo implacavelmente, no futuro
poderia estar comendo o pão que o diabo amassou, dependendo exatamente da compaixão
que negara no passado.
Alguns filmes são belos por serem
pequenos, terem objetivos muito modestos, e merecem aplausos por isso. Mas
filmes como A viagem também merecem encorajamento justamente por apostarem
muito alto, por terem uma ambição rara de se ver, quase insana. A viagem não
quer só participar das Olimpíadas. Quer ganhar a medalha de ouro e trucidar o
recorde mundial. Se consegue isso, depende de cada espectador, e as reações ao
filme tem sido praticamente na linha “ame ou odeie”. Mas uma coisa ele com
certeza conseguiu: Não é só “apenas mais um filme”, não é daqueles que são quase
imediatamente esquecidos. E isso é um feito, em uma época de uma avalanche
cultural incrível, onde os filmes logo são suplantados por outros, sem ter o mínimo
tempo de se afirmar, como acontecia num passado não muito distante. A viagem é
um show, um exemplo claro do que se chamava de “cinemão” americano (apesar do
filme ser mais alemão que americano, devido a seu financiamento e produção).
Uma espécie de “pague 1 e leve 6”, com o espectador assistindo vários filmes em
um só, vendo alternadamente um pouco de ficção-científica, filme de época e épico,
estrelado por vários atores famosos “multiplicados” pela maquiagem, em uma
trama que lida com uma salada de emoções e sentimentos, calcados numa filosofia
razoavelmente simples, acessível a todos os públicos. Quem tiver o espírito
aberto para embarcar nesta insólita viagem, tem tudo para curtir bastante. E
quem sabe até pode querer viajar outras vezes.
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