Só Quentin Tarantino mesmo para
misturar Western-Spaghetti e filmes com temática de Blaxploitation dos anos 70 e
fazer isso funcionar tão bem, como ele conseguiu com Django livre. Os anos
passam, e Tarantino segue o mesmo. Para irritação de alguns críticos, que
enxergam em seu Cinema uma grande imaturidade e superficialidade. E para a
delícia de sua grande legião de fãs, que quer que ele continue fazendo
exatamente esta salada de referências e influências que ele é tão conhecido por
fazer. Django livre segue de perto a linha Tarantinesca, da qual, na verdade, o
diretor nunca se afastou. Temos de novo os diálogos cortantes e divertidos, o
uso de inúmeras canções e homenagens cinematográficas das procedências mais
diversas, várias cenas com uma disputa tensa de poder entre os personagens, outras
alucinantes e criativas de ação, e, claro, um personagem procurando vingança a
qualquer custo.
Porém, Django (Jamie Foxx, muito
seguro no papel) não busca vingança apenas para si mesmo. Assim como em
Bastardos inglórios Tarantino tinha, junto com seus espectadores, se “vingado”
dos nazistas, dando um bico para escanteio na História e chegando a metralhar o
próprio Adolf Hitler, em Django livre ele cria outra catarse coletiva, com um
ex-escravo negro se vingando, à bala, dos escravocratas brancos. Tarantino
declarou, em uma entrevista, com muita razão, que os Westerns antigos
hollywoodianos nunca tinham como cenário o Sul dos EUA, para evitar qualquer
questão escravocrata, e com isso não melindrar o público da época. Aliás, mesmo
algumas décadas depois, o racismo, com Barack Obama à frente da Presidência e
tudo o mais, continua sendo um assunto espinhoso e delicado nos EUA. Mas não
para o diretor, que joga um balde de sal grosso na ferida, usando Django como
instrumento de vingança coletiva contra uma injustiça histórica, em várias
cenas memoráveis. Ele se vinga dos latifundiários brancos, e, por que não, até
dos negros que davam respaldo àquela situação, principalmente representado no
filme pelo personagem de Samuel L. Jackson (quase um talismã do diretor, usado
em diversos de seus filmes, de novo em grande atuação). Talvez nada irritasse
mais os escravos do que um de seus semelhantes que puxasse o saco do patrão
branco, e que fosse implacável nos castigos a outros escravos para “mostrar
serviço” para ele. Criticado por Spike Lee, dentre outros, pelo que compreende
por agressões aos negros em seus filmes (principalmente pelo uso indiscriminado
da polêmica palavra “nigger”, que causa dissabores enormes nos EUA, e que
Tarantino de novo usa à torto e à direito), Tarantino ao menos deixa claro que
não apresentará, de jeito nenhum, um “Uncle Tom”, ou seja, mais um negro servil
e bonzinho em sua história, que é escravo mas segue sorridente e feliz. Ninguém
ali está feliz. Muito menos Django, evidentemente.
Entretanto, é quase desnecessário
ressaltar que o Cinema de Tarantino não busca grandes reflexões, e muito menos
o distanciamento do espectador, tão pretendido por artistas como o dramaturgo
Bertolt Brecht, por exemplo. Muito pelo contrário, ele quer mesmo é pegar o
espectador de jeito e fazê-lo embarcar numa jornada alucinante focado nos
prazeres sensoriais, principalmente os visuais. Ele quer o público saindo de si
e babando após ver mais uma grande cena de ação ou confronto entre os
personagens. Dúvidas, reflexões, filosofias, e até os registros históricos
propriamente ditos, tudo isto ele está sempre pronto a desprezar,
principalmente se estiverem entre sua câmera e o seu Cinema hedonista.
Seus atores, mais uma vez, o
ajudam a atingir seus objetivos. Christoph Waltz de novo está brilhante, dessa
vez como um alemão caçador de recompensas, que ajuda Django em seu intento. Se
antes tinha sido um nazista ardiloso em Bastardos inglórios (com direito a
Oscar de coadjuvante pelo filme), dessa vez ele é mais humano, a ponto de
claramente ir mudando de postura com relação a Django e, por que não, sãos
escravos em geral. Leonardo DiCaprio surpreende em um papel de vilão, sem
nenhuma amarra. Consegue ser tão ardiloso e odioso quanto tinha sido o nazista
Landa de Waltz em Bastardos inglórios (curiosamente, DiCaprio era o ator que
interpretaria este personagem, mas Tarantino preferiu então apostar em um ator
que dominasse o alemão, como evidentemente era o caso do austríaco Waltz). E
consegue ser um vilão perfeito, algo inédito em sua carreira, e tão necessário
para um filme com heróis e vilões tão definidos como Django livre. Jamie Foxx
carrega o filme com competência e raiva, é a locomotiva daquele trem, e
demonstra um grande autocontrole mesmo nas situações mais tensas. E Samuel L.
Jackson está perfeito em seu papel, sendo o mais inteligente de todos aqueles
homens, pois consegue controlar, de certa forma, o seu patrão, e ao mesmo tempo
impor distância aos outros escravos, que o temem mais que o odeiam. Com a
exceção de Christoph Waltz, lembrado na categoria de coadjuvante, o Oscar
esnobou indicações aos restantes, que mereciam ser destacados em suas atuações.
A trilha sonora é um show desde
os créditos iniciais, que remetem diretamente aos Western-Spaghettis, inclusive
com o uso da versão americana da canção de Django, de 1966 (filme dirigido por
Sergio Corbucci, e que criou uma infinidade de imitações e cópias), composta
por Luis Bacalov. Além de Bacalov (também usa-se trilhas dele de Lo chiamavano
King, curiosamente um filme de um caçador de recompensas, e o personagem de
Christoph Waltz em Django livre se chama King também), Tarantino faz uso de
trilhas de Ennio Morricone (Os abutres tem fome, filme de Don Siegel com Clint
Eastwood e Shirley MacLaine; Cidade violenta, de Sergio Sollima, com Charles
Bronson e Telly Savalas; e Os cruéis, também de Sergio Corbucci, com Joseph
Cotten e... Norma Bengell), dentre outros compositores, usando até canções
modernas, e fazendo-as funcionar naquele contexto. Mais uma vez, Tarantino
mostra-se um ótimo DJ de um filme seu. E as brincadeiras também se estendem ao
uso de Franco Nero, o Django inicial do filme de 1966, que é curiosamente ensinado a falar corretamente
o nome de Django, com o tal D mudo. A própria apresentação do personagem de
Leonardo DiCaprio remete muito à de Henry Fonda em Era uma vez no Oeste, onde
Fonda foi apresentado de forma justamente para dar um susto no público, tão
acostumado a vê-lo nos papéis de mocinho, assim como acontece com DiCaprio. E o
nome da personagem Broomhilda von Shaft, de Kerry Washington (que também foi
parceira de Jamie Foxx em Ray, onde ele ganhou o Oscar de melhor ator), segundo
o próprio Tarantino era mesmo uma referência ao clássico Shaft interpretado por Richard
Roundtree, um detetive negro que marcou época nos anos 70, que seria uma espécie
de tataraneto do casal principal de Django livre. O filme é recheado de
piscadelas para cinéfilos (muito) atentos, mas não exige este tipo de
conhecimento para que seja desfrutado, é apenas um bônus a mais.
Ao final de suas quase três horas
(que passam voando), Django livre tem tudo para agradar demais ao público que
ama Tarantino, e até a seus críticos, desde que eles compreendam que, pelo
visto, Tarantino não quer mudar, que seus filmes sempre seguirão com essa toada
de vingança, com tensão total, embalada por sangue jorrando e diálogos marcantes,
e com qualquer plausibilidade histórica sendo descartada desde o início. Nem
todos são ecléticos. Outros diretores históricos também pouco mudaram, como
Hitchcock, que fez uma carreira quase inteira no gênero suspense, e com muitas vezes apresentando tramas onde um inocente tinha que
provar que não era culpado, ou Yasujiro Ozu, com enredos familiares muito
similares, filmados com sua câmera-baixa habitual, e usando geralmente os mesmos atores. Nenhum desses dois diretores deixou de ser grande por causa disso, talvez porque muitos
sejam os caminhos da grandeza. Tarantino parece ter encontrado o dele desde Cães
de aluguel, e não parece querer trilhar outro, venham as críticas que vierem. Ele
bota seu prazer em primeiro lugar, como se filmasse diretamente para o Quentin Tarantino
dos anos 80, que era funcionário de uma locadora de filmes, e que curtia
exatamente este tipo de filmes. Pelo que se pode notar, pela reação quase
sempre entusiasmada de boa parte do público e crítica, a locadora de Tarantino
nunca vai ficar vazia. Sempre vai ter muita gente disposta a pegar seus filmes,
alguns já clássicos estabelecidos do Cinema.
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