terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Django livre (Django unchained - 2012)




Só Quentin Tarantino mesmo para misturar Western-Spaghetti e filmes com temática de Blaxploitation dos anos 70 e fazer isso funcionar tão bem, como ele conseguiu com Django livre. Os anos passam, e Tarantino segue o mesmo. Para irritação de alguns críticos, que enxergam em seu Cinema uma grande imaturidade e superficialidade. E para a delícia de sua grande legião de fãs, que quer que ele continue fazendo exatamente esta salada de referências e influências que ele é tão conhecido por fazer. Django livre segue de perto a linha Tarantinesca, da qual, na verdade, o diretor nunca se afastou. Temos de novo os diálogos cortantes e divertidos, o uso de inúmeras canções e homenagens cinematográficas das procedências mais diversas, várias cenas com uma disputa tensa de poder entre os personagens, outras alucinantes e criativas de ação, e, claro, um personagem procurando vingança a qualquer custo.

Porém, Django (Jamie Foxx, muito seguro no papel) não busca vingança apenas para si mesmo. Assim como em Bastardos inglórios Tarantino tinha, junto com seus espectadores, se “vingado” dos nazistas, dando um bico para escanteio na História e chegando a metralhar o próprio Adolf Hitler, em Django livre ele cria outra catarse coletiva, com um ex-escravo negro se vingando, à bala, dos escravocratas brancos. Tarantino declarou, em uma entrevista, com muita razão, que os Westerns antigos hollywoodianos nunca tinham como cenário o Sul dos EUA, para evitar qualquer questão escravocrata, e com isso não melindrar o público da época. Aliás, mesmo algumas décadas depois, o racismo, com Barack Obama à frente da Presidência e tudo o mais, continua sendo um assunto espinhoso e delicado nos EUA. Mas não para o diretor, que joga um balde de sal grosso na ferida, usando Django como instrumento de vingança coletiva contra uma injustiça histórica, em várias cenas memoráveis. Ele se vinga dos latifundiários brancos, e, por que não, até dos negros que davam respaldo àquela situação, principalmente representado no filme pelo personagem de Samuel L. Jackson (quase um talismã do diretor, usado em diversos de seus filmes, de novo em grande atuação). Talvez nada irritasse mais os escravos do que um de seus semelhantes que puxasse o saco do patrão branco, e que fosse implacável nos castigos a outros escravos para “mostrar serviço” para ele. Criticado por Spike Lee, dentre outros, pelo que compreende por agressões aos negros em seus filmes (principalmente pelo uso indiscriminado da polêmica palavra “nigger”, que causa dissabores enormes nos EUA, e que Tarantino de novo usa à torto e à direito), Tarantino ao menos deixa claro que não apresentará, de jeito nenhum, um “Uncle Tom”, ou seja, mais um negro servil e bonzinho em sua história, que é escravo mas segue sorridente e feliz. Ninguém ali está feliz. Muito menos Django, evidentemente.

Entretanto, é quase desnecessário ressaltar que o Cinema de Tarantino não busca grandes reflexões, e muito menos o distanciamento do espectador, tão pretendido por artistas como o dramaturgo Bertolt Brecht, por exemplo. Muito pelo contrário, ele quer mesmo é pegar o espectador de jeito e fazê-lo embarcar numa jornada alucinante focado nos prazeres sensoriais, principalmente os visuais. Ele quer o público saindo de si e babando após ver mais uma grande cena de ação ou confronto entre os personagens. Dúvidas, reflexões, filosofias, e até os registros históricos propriamente ditos, tudo isto ele está sempre pronto a desprezar, principalmente se estiverem entre sua câmera e o seu Cinema hedonista.

Seus atores, mais uma vez, o ajudam a atingir seus objetivos. Christoph Waltz de novo está brilhante, dessa vez como um alemão caçador de recompensas, que ajuda Django em seu intento. Se antes tinha sido um nazista ardiloso em Bastardos inglórios (com direito a Oscar de coadjuvante pelo filme), dessa vez ele é mais humano, a ponto de claramente ir mudando de postura com relação a Django e, por que não, sãos escravos em geral. Leonardo DiCaprio surpreende em um papel de vilão, sem nenhuma amarra. Consegue ser tão ardiloso e odioso quanto tinha sido o nazista Landa de Waltz em Bastardos inglórios (curiosamente, DiCaprio era o ator que interpretaria este personagem, mas Tarantino preferiu então apostar em um ator que dominasse o alemão, como evidentemente era o caso do austríaco Waltz). E consegue ser um vilão perfeito, algo inédito em sua carreira, e tão necessário para um filme com heróis e vilões tão definidos como Django livre. Jamie Foxx carrega o filme com competência e raiva, é a locomotiva daquele trem, e demonstra um grande autocontrole mesmo nas situações mais tensas. E Samuel L. Jackson está perfeito em seu papel, sendo o mais inteligente de todos aqueles homens, pois consegue controlar, de certa forma, o seu patrão, e ao mesmo tempo impor distância aos outros escravos, que o temem mais que o odeiam. Com a exceção de Christoph Waltz, lembrado na categoria de coadjuvante, o Oscar esnobou indicações aos restantes, que mereciam ser destacados em suas atuações.

A trilha sonora é um show desde os créditos iniciais, que remetem diretamente aos Western-Spaghettis, inclusive com o uso da versão americana da canção de Django, de 1966 (filme dirigido por Sergio Corbucci, e que criou uma infinidade de imitações e cópias), composta por Luis Bacalov. Além de Bacalov (também usa-se trilhas dele de Lo chiamavano King, curiosamente um filme de um caçador de recompensas, e o personagem de Christoph Waltz em Django livre se chama King também), Tarantino faz uso de trilhas de Ennio Morricone (Os abutres tem fome, filme de Don Siegel com Clint Eastwood e Shirley MacLaine; Cidade violenta, de Sergio Sollima, com Charles Bronson e Telly Savalas; e Os cruéis, também de Sergio Corbucci, com Joseph Cotten e... Norma Bengell), dentre outros compositores, usando até canções modernas, e fazendo-as funcionar naquele contexto. Mais uma vez, Tarantino mostra-se um ótimo DJ de um filme seu. E as brincadeiras também se estendem ao uso de Franco Nero, o Django inicial do filme de 1966, que é curiosamente ensinado a falar corretamente o nome de Django, com o tal D mudo. A própria apresentação do personagem de Leonardo DiCaprio remete muito à de Henry Fonda em Era uma vez no Oeste, onde Fonda foi apresentado de forma justamente para dar um susto no público, tão acostumado a vê-lo nos papéis de mocinho, assim como acontece com DiCaprio. E o nome da personagem Broomhilda von Shaft, de Kerry Washington (que também foi parceira de Jamie Foxx em Ray, onde ele ganhou o Oscar de melhor ator), segundo o próprio Tarantino era mesmo uma referência ao clássico Shaft  interpretado por Richard Roundtree, um detetive negro que marcou época nos anos 70, que seria uma espécie de tataraneto do casal principal de Django livre. O filme é recheado de piscadelas para cinéfilos (muito) atentos, mas não exige este tipo de conhecimento para que seja desfrutado, é apenas um bônus a mais.

Ao final de suas quase três horas (que passam voando), Django livre tem tudo para agradar demais ao público que ama Tarantino, e até a seus críticos, desde que eles compreendam que, pelo visto, Tarantino não quer mudar, que seus filmes sempre seguirão com essa toada de vingança, com tensão total, embalada por sangue jorrando e diálogos marcantes, e com qualquer plausibilidade histórica sendo descartada desde o início. Nem todos são ecléticos. Outros diretores históricos também pouco mudaram, como Hitchcock, que fez uma carreira quase inteira no gênero  suspense, e com muitas vezes apresentando tramas onde um inocente tinha que provar que não era culpado, ou Yasujiro Ozu, com enredos familiares muito similares, filmados com sua câmera-baixa habitual, e usando geralmente os mesmos atores. Nenhum desses dois diretores deixou de ser grande por causa disso, talvez porque muitos sejam os caminhos da grandeza. Tarantino parece ter encontrado o dele desde Cães de aluguel, e não parece querer trilhar outro, venham as críticas que vierem. Ele bota seu prazer em primeiro lugar, como se filmasse diretamente para o Quentin Tarantino dos anos 80, que era funcionário de uma locadora de filmes, e que curtia exatamente este tipo de filmes. Pelo que se pode notar, pela reação quase sempre entusiasmada de boa parte do público e crítica, a locadora de Tarantino nunca vai ficar vazia. Sempre vai ter muita gente disposta a pegar seus filmes, alguns já clássicos estabelecidos do Cinema.

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