Amor é um filme duro, seco,
servido sem gelo ou limão, sobre perdas, tanto de um passado como de qualquer
perspectiva de um futuro. E os três personagens principais desta tragédia
mundana (que pode chegar a qualquer um de nós), Michael Haneke, Emmanuelle Riva
e Jean-Louis Trintignant, fazem parte dela, tanto em suas profissões e
carreiras de diretor e atores, como em suas próprias vidas. O passado dessas
pessoas e personagens reverbera na trama, lhe acrescentando riqueza e
complexidade, por si só.
Além do título, este filme pode de fato ser o
mais romântico de Michael Haneke. Mas não que com isso se espere beijos,
abraços e música melosa ao fundo. É um romantismo Hanekeano, ou seja, por um
filme apenas ele parece segurar seu não muito oculto desprezo e incompreensão
pelos integrantes de uma vida burguesa, de cidade grande. Dessa vez, nota-se
uma certa compaixão de Haneke pelo casal principal de idosos, que tem que lidar
com a doença degenerativa de Anne, esposa de Georges (ambos nomes de
personagens que se repetem na filmografia de Haneke, com leves variações). Com
certeza ajudou que o diretor tenha visto de perto um caso semelhante em sua
família, e que tenha tentado recriar, de certa forma, o apartamento de seus
pais no filme, que é inclusive muito confinado, pois raramente a câmera
abandona este ambiente, retratando assim ainda mais o isolamento do casal. De
novo, porém, é bom ressaltar que, mesmo mais diretamente envolvido na trama, Haneke
não consegue fugir muito de si mesmo, dirigindo esta história sem
sentimentalismos. Amor é um filme que deixa o espectador triste,
inevitavelmente, e pensativo sobre o fim inevitável de uma vida, mas não é um
filme que necessariamente exija o pranto dos espectadores. É tudo conduzido de
forma lenta, gradual e crua, como Haneke sempre soube fazer, com seus longos
planos estáticos (apesar de neste filme ele não abusar disso). Não há nenhuma
glamourização. É a miséria humana exposta sem filtros, e sem nenhuma comédia
para atenuá-la. Vire o rosto quem quiser virar, mas Haneke não foge ao lado
feio e triste da vida.
O casal de atores é fundamental
para que Amor funcione, e talvez só A professora de piano e Caché, dos filmes
anteriores do diretor, dependessem tanto dos atores. Haneke, inclusive, deixou
bem claro que nem faria o filme se Jean-Louis Trintignant não aceitasse
fazê-lo, tendo sempre sido um admirador do estilo do ator. Trintignant acredita
que os melhores atores do mundo são os que sentem muito e expressam pouco. E é
exatamente isso que ele faz no filme, suportando com a dignidade possível a
derrocada de sua esposa, sem grandes prantos, e tentando ao máximo não
demonstrar o quieto desespero de sua situação, ao ver sua mulher se apagar
diante de si, e com isso o estilo de vida que levavam, de um amor às artes (são
professores de música) que não pode mais ser desfrutado da forma mais
apropriada. Quando uma pessoa não pode mais curtir suas maiores paixões, a vida
perde quase todo o sentido, e nota-se isso nos olhares de Riva e Trintignant. Chega
a ser até sofrido ouvir alguma bela obra, ou saber do futuro de um pianista que
tenha sido aluno deles. É muito duro ver o futuro promissor dos outros, e saber que não
resta nenhum a você, é o que Haneke parece dizer. Trintignant, décadas antes,
ficara famoso, dentre muitos outros filmes, por seu papel em Um homem, uma
mulher, de Claude Lelouch, ao lado de Anouk Aimée. Um filme leve como poucos,
com trilha de Bossa Nova, onde o romance de um homem e uma mulher típicos (quase
simbólicos de seus respectivos sexos) embalou o mundo. A comparação de seu
papel no filme de Lelouch, de seu sorriso dirigindo um carro em alta
velocidade, em contraste com sua decadência física e a dor de seus olhos, por
ver uma decadência ainda mais acentuada de sua esposa em Amor, é de cortar o
coração de qualquer cinéfilo, e acrescenta tristeza ao filme. Não são dois
atores quaisquer em cena. São dois atores com história.
Emmanuelle Riva, por sua parte,
conquistou o mundo com seu papel em Hiroshima, mon amour, no distante 1959, mas
após cinquenta anos teve que conquistar também Michael Haneke, participando de
testes para o filme, algo que muitas atrizes de sua idade e currículo não
aceitariam fazer. No clássico filme de Alain Resnais, ela sequer é nomeada, e
se envolve com Eiji Okada (também não nomeado no filme), em uma trama onde o
casal também acaba sendo representativo de seus gêneros, e o senso de memória é
fundamental, fascina ali a sua personagem e ao mesmo tempo persegue todos que
passaram pelo drama da Segunda Guerra Mundial, que no fundo querem se esquecer
de tudo aquilo. E memória é exatamente o que a personagem de Riva começa a
perder lentamente em Amor. A ponto de, aos poucos, começar a perder a sua
própria identidade. A câmera de Haneke segue implacável em mostrar como a
personagem Anne, claramente uma intelectual de grande personalidade e carisma,
vai se apagando, se dirigindo a um nada completo. Assistir a isto é ver a perda
completa de um ser humano, que com o tempo se torna uma mera lembrança na mente
dos que ficam.
E aí entra em cena Isabelle Huppert.
Seu papel dessa vez é muito mais discreto do que em A professora de piano, onde
assombrou o mundo com sua interpretação vulcânica. Aqui ela é a filha egoísta,
mas também isolada, do casal. Parece sempre estar fora de tom com o casal, nunca
conseguindo ser aceita, e não parece ser algo que brotou apenas da doença de
sua mãe. A sintonia do casal não se estende à filha, e não parece ser
apenas culpa dela, apesar de seu egoísmo, e de chegar a discutir negócios quando
sua mãe não tem mais condição nenhuma de responder ou sequer entender o que ela
está falando. Suas visitas parecem mais incomodar do que confortar, e isso vale
para todos os envolvidos. Amor, com seu jeito resoluto, abarca inclusive isso,
o amor que incomoda, de amigos e parentes, que machuca tanto quem está em seu fim,
por não querer ser visto no ápice de sua limitação física, assim como quem
vislumbra de perto o lento apagar da pessoa amada.
Sem misericórdia aos personagens, e por
extensão ao público, Michael Haneke conduz esta história a um final envolvente
e simbólico, já prenunciado logo na primeira cena do filme, mas exposto com um
pouco mais de lirismo ao final. Talvez até Michael Haneke precisasse de um
pouco de lirismo, um mínimo que fosse para tornar o filme um pouco mais
palatável. Uma breve e sutil concessão às agruras da vida, da qual ninguém
escapa um dia de ver ou até mesmo de sentir na própria pele. Lirismo que também
se voltou para o diretor e os atores, com o filme sendo premiado com a Palma de
Ouro em Cannes em 2012 (e que só não teve os dois atores premiados porque o
regulamento de Cannes proibia outro prêmio para o vencedor da Palma de Ouro,
para grande irritação de Nanni Moretti, então Presidente do Júri). Os três foram
juntos convidados a receber o prêmio, algo inusitado na história de Cannes, e
um símbolo de como o filme é visto como uma parceria indissociável dos três
artistas. Posteriormente, Emmanuelle Riva teria a honra de se tornar a mais
idosa a concorrer ao Oscar de melhor atriz, com 85 anos. Se este filme, e a
vida de todos nós, termina inevitavelmente numa nota triste, ao menos a arte neste
caso permitiu alguns bons momentos, e um senso de realização para os envolvidos.
E com envolvidos, leia-se diretor, atores e, porque não, público. Goste-se ou
não do filme Amor, todos estamos envolvidos no drama da vida, e no seu triste
escoar. Alguns fogem, muitos viram a cara, e outros encaram de frente (Haneke,
claro, faz parte destes últimos). Não importa, o fim chega de qualquer modo, e
quando rolam os créditos, só resta a quem assiste se levantar e ir embora,
lamentando o fim de uma bela obra. The end, mon amour.
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