quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sudoeste (2012)




Sudoeste é um projeto de dez anos, que o diretor Eduardo Nunes acalentou e confeccionou como um ourives faz uma joia, com carinho e atenção. Sente-se que cada plano foi muito bem pensado, o esmero acompanha todo o filme, que segue um fluxo contemplativo, poético  e meditativo difícil de ver em um filme brasileiro. Limite, de Mário Peixoto, é um filme que salta à mente quando se assiste Sudoeste, por seu ritmo, composição, e até por aspectos como ambos terem sido filmados em aldeias primitivas de pescadores (neste filme aqui, uma abandonada em Pontal de Massambaba, perto de Arraial do Cabo), o que gera inclusive algumas imagens muito semelhantes. A obra de Tarkovsky, principalmente Stalker, Solaris, O espelho, O sacrifício e Nostalgia também remetem ao filme pela forma com que Eduardo Nunes trabalha o tempo em seus longos planos, assim como a de Béla Tarr em seu enorme Sátántangó e Werckmeister Harmonies e a de Theo Angelopoulos, mais notadamente em Os atores ambulantes. Isso não quer dizer, porém, que o filme seja uma cópia desses filmes e diretores, longe disso, Sudoeste tem personalidade própria, é um filho direto do diretor, que como todo mundo, não pode (e nem conseguiria) negar suas influências e paixões, mas que consegue mesmo assim assinar sua obra com seus tons pessoais. E é uma obra de impacto, que deve dar orgulho de assinar.

O elenco conta com Simone Spoladore, Raquel Bonfante e Regina Bastos (as três interpretando Clarice, em estágios diferentes de sua curta vida), Dira Paes, Mariana Lima, Léa Garcia (atriz veterana desde os tempos de Orfeu do carnaval, que atua como a bruxa), Victor Navega Motta (o menino João) e Julio Adrião (Sebastião). Todos atuam muito bem, em compasso com o ritmo do filme. A vida estranha de Clarice, que dança entre o imaginário, o onírico e o fantasmagórico, ao durar apenas um dia naquela aldeia, causa reflexões no espectador da transitoriedade da vida e da sensação de destino. Ela, em toda a sua inocência de quem nada sabe (nem mesmo como é a chuva), plaina sobre os demais, e saboreia sensações de que quem vive normalmente já se acostumou a desprezar ou a não reparar mais. As atrizes que a interpretam, assim como todos os outros atores, auxiliam no olhar filosófico desta misteriosa obra. Mesmo assim, ao contrário de muitos filmes, aqui os atores não são tão centrais à obra, são componentes de um todo, que agrega elementos como a trilha sonora, a edição precisa, os sons (que ajudam até na fugidia percepção de tempo) e, claro, a fotografia.

Em Sudoeste, assim como aconteceu com Limite (entre Mário Peixoto e Edgar Brazil), a parceria entre diretor e diretor de fotografia é vital para o filme, é o que o destaca e a razão mesmo de ser da obra. Não é absurdo nenhum considerar Mauro Pinheiro Jr. (de trabalhos como Cinema, aspirinas e urubus, Mutum e Linha de passe) como uma espécie de co-autor do filme. Sua fotografia em preto e branco, granulada, de recorte 3:66 (que torna a imagem mais horizontal ainda do que o antigo Cinemascope) realça a poesia de um filme nostálgico e poético como poucos, a ponto de ser quase impossível imaginá-lo a cores e num tamanho tradicional. A beleza de cada frame salta aos olhos, e talvez até fosse adequada a exibição de Sudoeste não só em cinemas (é um luxo vê-lo em tela grande) como também em museus. Talvez o público fosse até mais adequado, no sentido de que costuma estar com a mente mais aberta do que o espectador normal de um cinema, mais propenso a aceitar e se deleitar com uma obra lenta e contemplativa como Sudoeste. Sim, talvez este seja um “filme-museu” por natureza, não por ser antigo ou coisa que o valha, mas por merecer um público mais disposto a aceitá-lo, a embarcar numa nova e diferente viagem, como costuma ser o público que visita um museu. Não há como negar que Sudoeste, mesmo com toda a sua beleza, tem sua forte contra-indicação para um público tradicional, acostumado a filmes narrativos, de cortes rápidos e muita adrenalina. Não é nada difícil imaginar este público caindo no sono ao tentar assistir o filme. Ressaltar isso pode afastar uma parcela do público, em tese parece machucar o filme, mas também o defende de ataques venenosos de quem não está acostumado ao tipo de experiência que ele proporciona (não é questão de inteligência do espectador de forma alguma, e sim de hábito cinematográfico. Quem está acostumado a assistir filmes de Tarkovsky, Antonioni, Béla Tarr e Cia., assiste Sudoeste facilmente. Quem não está, “briga” contra o conceito do filme desde o início). Sudoeste é para filósofos, cinéfilos hardcore, intelectuais em geral, que têm tudo para apreciá-lo como ele é. É champagne, é caviar, e não cerveja ou pipoca. Não é, nem pretende ser, um filme popular. Ele tem o seu público-alvo, e é o típico filme que divide crítica e público. E ambos têm suas razões para amá-lo ou repudiá-lo. Cabe a cada espectador saber onde se posicionar.

Feita esta ressalva, é razoavelmente nítido que Sudoeste logo entrará em muitas listas de “melhores filmes brasileiros do Século XXI”. Talvez até entre em listas mais abrangentes do que essa... O filme encantou por onde passou, ganhando diversos prêmios mundo afora, sendo que o mais adequado de todos foi o prêmio Andrei Tarkovsky no Festival de Zerkalo, que é o título em russo do filme O espelho. Quase como se o ídolo do diretor o congratulasse... É possível vislumbrar um futuro muito promissor de Eduardo Nunes, que antes já tinha se destacado por seus curtas (este é seu longa de estreia), e segue um viés filosófico pouco visto em nossas terras, talvez só encontrando semelhanças recentes com o Cinema de Luiz Fernando Carvalho. Como Clarice em relação à sua aldeia, Sudoeste parece não pertencer muito ao cenário nacional, não parece um filme brasileiro, mas é muito bem-vindo e traz uma maior percepção ao que não estamos acostumados a olhar, nos transformando todos em Clarices satisfeitas por aproveitar este dia repleto de experiências. Soprou um vento sudoeste no cinema brasileiro, trazendo com ele um novo clima e uma lembrança de quem nós fomos, somos e podemos ser. Ou podíamos ter sido. É só fechar os olhos e imaginar o que vai acontecer...

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