terça-feira, 30 de outubro de 2012

007 – Operação Skyfall (Skyfall – 2012)




A série de 007 chega a seus 50 anos, e o peso destes anos começa a se fazer presente tanto no personagem quanto no tratamento dado a ele. De um começo pouco auspicioso em O satânico Dr. No, quem poderia dizer que James Bond estaria com esta banca toda em pleno 2012, em seu 23º filme oficial? Porém James Bond aos poucos foi alcançando o posto de ícone da Grã-Bretanha, e parece que cada vez mais o orgulho britânico fará de tudo para mantê-lo sempre de pé, custe o que custar (como inclusive provou a própria Rainha Elizabeth II, contracenando brevemente com ele na abertura das Olimpíadas de Londres). Este povo pode ter suas excentricidades, mas é fiel aos seus ícones e tradições, e James Bond parece ter se tornado um símbolo para ele tão significativo como a monarquia, os Beatles, fish and chips e o chá das cinco... Vilões, feministas e críticos já tentaram matá-lo diversas vezes, e o personagem resistiu a todos, inclusive às inevitáveis trocas de atores em sua incorporação. Resistiu até mesmo ao processo de falência da Metro-Goldwyn-Mayer, que atrasou em cinco anos a sua volta aos cinemas. E aqui está ele, firme e forte, um pouco mais velho e baleado, é verdade, mas ainda com muita lenha na fogueira para queimar.

Para 007 – Operação Skyfall, porém, James Bond recebeu uma bela de uma ajuda para voltar ao topo, neste que é um dos melhores filmes da série. Nenhum outro filme anterior teve uma equipe tão tarimbada e prestigiada trabalhando para que Bond voltasse a brilhar, depois do discreto 007 – Quantum of solace, de 2007. A começar pelo próprio diretor, Sam Mendes (oscarizado por Beleza americana, e diretor de Soldado anônimo e Foi apenas um sonho, entre outros), disparado o de maior nome para dirigir um filme de 007, até hoje. Mendes, de criação teatral, soube se adaptar muito bem ao universo de um filme de ação, e foi importante ao não entupir o filme de tiros e explosões, sabendo focar nos personagens boa parte da atenção de seu filme. Ele está muito bem acompanhado de alguns membros cativos de seus filmes, como Roger Deakins, prestigiado diretor de fotografia (de obras como Onde os fracos não têm vez, O homem que não estava lá e Barton Fink – Delírios de Hollywood) que cria algumas das mais belas imagens da série. É uma fotografia que parece até pertencer mais a um filme de arte do que a um filme de ação padrão, de tanto esmero que apresenta. A trilha sonora também é de primeira, assinada por Thomas Newman (outro renomado músico que acompanha a carreira de Sam Mendes), que imprime a sua marca e tem a inteligência de não desprezar os acordes mais famosos da trilha clássica de James Bond, criados por Monty Norman e John Barry. Esse, aliás, é o grande mérito de 007 – Operação Skyfall: Ele soube reverenciar os 50 anos da série e atrair o interesse de um público novo ao mesmo tempo, algo dificílimo de se fazer. Há uma mistura de tradição e novidade que é reconfortante e energética, trazendo de volta pequenos detalhes que trazem sorrisos na boca dos bondmaníacos (como a canção-tema de Adele no começo do filme, com belos efeitos visuais, algo que vinha sendo abandonado), sem alienar os que não são tão fissurados pelo universo de James Bond. Os dois primeiros filmes com Daniel Craig modernizaram um pouco demais a série, a descaracterizando um pouco aos olhos dos fãs, e os levando a serem considerados como quase cópias da trilogia Bourne. O que é uma bruta ironia, pois na verdade filmes como os da trilogia Bourne devem sua existência ao sucesso perene da série James Bond.

Em 007 – Operação Skyfall, Bond é mais humano e falível, e tem que compensar um pouco suas limitações físicas com experiência e inteligência. E os próprios míticos personagens M e Q são mais substanciais, e não apenas as tradicionais escadas para que Bond brilhe mais. Judi Dench, inclusive, como M, é a Bond-Lady em pessoa, neste filme muito mais importante do que qualquer Bond-girl, deixando de ser apenas a misteriosa chefe de 007 para ser parte integrante da trama (de forma até mais enfática do que já tinha feito em 007 – O mundo não é o bastante). E Q, interpretado pelo jovem Ben Whishaw, se pode incomodar aos mais puristas por sua juventude, parece muito mais antenado e crível num mundo cibernético do Século XXI. Ralph Fiennes, como um importante membro do Governo britânico, e Albert Finney, como um esquecido personagem do passado de James Bond, trazem respeitabilidade ao filme e à trama, que poucos poderiam trazer com a mesma competência. Javier Bardem está um pouco exagerado, mas isto é até desejável e adequado em um vilão de filme do 007, e suas cenas sempre trazem uma carga extra de vitalidade e perigo, demonstrando mais uma vez a importância de se ter um grande vilão. As Bond-girls é que, surpresa das surpresas, ocupam um certo segundo plano no filme. Bérénice Marlohe é lindíssima, mas tem pouco tempo em cena (talvez o único defeito do filme, pois a química entre ela e Daniel Craig é muito boa), e Naomie Harris oscila entre ser uma Bond-girl e uma Bond-friend, o que inclusive se explica ao final do filme. Quanto a Daniel Craig, este está cada vez mais confortável e estabelecido no papel central. De muito combatido na época de sua escolha para ser o novo James Bond após a saída de Pierce Brosnan, ele mostra estar absoluto no papel e pronto para seguir por mais alguns filmes. Difícil vai ser ele ter tanto sucesso no futuro como teve neste filme. Parece que 007 – Operação Skyfall vai ser para ele o que 007 contra Goldfinger foi para Sean Connery, 007 – O espião que me amava foi para Roger Moore, e 007 – O mundo não é o bastante para Pierce Brosnan. Este tem tudo para ser o seu grande momento no papel.

Não adianta, tentaram de tudo. Vilões barra-pesada, loucos e megalomaníacos, seus comparsas perigosíssimos, lindas garotas munidas de muita sedução, helicópteros, jacarés, tubarões, Guerra Fria, terrorismo, Internet, nada disso derrubou James Bond. Nem mesmo o tempo, que costuma derrubar a todos, mas não parece que vai vitimá-lo pois ele aprendeu a usar o passar dos anos a seu favor. Ele veio para ficar, e já começa a não ser tão absurdo assim imaginar ele inaugurando outro filme em 2062, celebrando seus 100 anos. Dele pode-se esperar tudo. Desde as tiradas engraçadinhas de sempre, as mulheres se jogando a seus pés, a eficiência mítica no seu serviço, as esnobadas nas ordens de seus superiores, a vodka-martini, a sorte nos cassinos, que todos já estamos acostumadíssimos a ver, até a recente limitação física, a dor, o sangue, e até algumas eventuais lágrimas. Bond se mantém e se reinventa, num filme que rivaliza com 007 contra Goldfinger, 007 – O espião que me amava e mais alguns outros como dentre os melhores da série. Aliás, com tanto esmero na sua produção, gente talentosa e experiente à frente e atrás das câmeras, um ritmo impecável e várias cenas marcantes (de ação ou apenas dramáticas), 007 – Operação Skyfall já se mostra como um dos melhores filmes de 2012, de qualquer gênero ou nacionalidade. E isso é quase inacreditável em um 23º filme de uma série de ação, que tinha tudo para ter sido sepultada há muito tempo. Mas não foi, e parece que nunca será. Além de um herói das telas, James Bond é um herói de um povo. E um povo tradicional como nenhum outro, que resistiu aos vikings, a Napoleão, Hitler e até ao fim de seu fabuloso império, onde o Sol nunca se punha. Ele não vai deixar James Bond ser esquecido, nem que tenha que passar a cantar “God save James Bond”... 

domingo, 28 de outubro de 2012

Os donos do poder (Power – 1986)




Os donos do poder, de Sidney Lumet, é uma espécie de irmão caçula de Rede de intrigas, talvez sua maior obra. Pode-se até dizer que ele encontra-se numa situação parecida com a de Fedora em relação a Crepúsculo dos deuses, ambos de Billy Wilder. Estes dois filmes guardam grandes semelhanças em relação aos clássicos absolutos destes diretores, sendo claramente inferiores mesmo tendo seus méritos, e ficam bastante à sombra deles, mal sendo lembrados hoje em dia. Enquanto Crepúsculo dos deuses e Rede de intrigas recebem todas as honras de chefes de estado, Os donos do poder e Fedora só entram na cerimônia por parentesco, são enfaticamente revistados, ninguém nota suas presenças, e mal conseguem comer um canapé.

Este esquecidíssimo filme de Sidney Lumet surpreende até no peso do elenco, numa trama que analisa os meandros de uma eleição pelos olhos de um marqueteiro que trabalha extensivamente a imagem dos políticos que o contratam, pouco se importando com suas ideologias, se satisfazendo apenas e tão somente em receber dinheiro por elegê-los. Richard Gere interpreta este personagem central (Pete St. John) com estilo e desenvoltura. Gere pode não ser dos atores mais versáteis e ter seus maneirismos, mas sabe interpretar muito bem homens cínicos e sedutores, como demonstrou também em Chicago. Os outros atores, porém, estão longe de estar nos seus melhores dias, com a exceção de Denzel Washington, no começo da carreira, que tem um papel coadjuvante que lembra também o de Richard Gere, sem muitos escrúpulos. Julie Christie está apenas correta como a jornalista que é ex-esposa de Pete St. John, Gene Hackman não convence muito como um mentor de Pete que está decadente, J. T. Walsh é subaproveitado pelo roteiro, assim como E. G. Marshall, Kate Capshaw mal tem o que fazer, e Beatrice Straight (que ganhou um Oscar de coadjuvante justamente por Rede de intrigas) chegou a receber uma indicação do Framboesa de Ouro (Razzie Awards nos EUA) como uma das piores atrizes coadjuvantes do ano (um pouco exagerado, mas ela realmente está mal).

Curiosamente, o roteiro, de David Himmelstein, é responsável tanto pelos pontos mais altos como pelos mais baixos do filme. O roteirista teve a ideia básica de seu enredo ao ver vários monitores com as propagandas políticas de vários candidatos diferentes, e os achou todos iguais, padronizados e pasteurizados. O grande mérito de Os donos do poder é ilustrar muito bem o quanto as personalidades dos políticos são tosadas, vermifugadas e perfumadas por assessores como o Pete St. John do filme. É inevitável que fiquem parecidos entre si, sempre fugindo de questões polêmicas, e mostrando personalidades falsas no sentido de diminuir a rejeição do povo por eles a um mínimo. O problema, como fica implícito no filme, é que muitas vezes o efeito de tais mudanças de atitudes não se restringe apenas ao período das eleições, com o político tendendo a manter o que deu certo durante seu efetivo mandato. Algumas cenas do filme são muito marcantes, sendo características do Cinema de Sidney Lumet, muito escorado em bons roteiros e em muitas cenas de diálogos (como 12 homens e uma sentença, Um dia de cão e O veredito). Mas o roteiro falha ao querer apresentar várias sub-tramas, por acompanhar políticos demais e abandonar alguns deles no meio do caminho. O político interpretado por J. T. Walsh, por exemplo, tem uma grande apresentação, e depois é um pouco relegado a um inexplicável segundo plano. Alguns personagens são pouco desenvolvidos por causa desta dispersão, e sente-se ao final a inexistência de uma maior unidade ao filme, faltou um norte que a bússola desordenada do roteiro (e da direção de Lumet) não soube apontar.

O resultado, enfim, resulta irregular. Mas é uma irregularidade de um diretor do porte de Sidney Lumet, com um tema interessante e nada datado (infelizmente, longe disso, o filme continua atual), e com vários atores interessantes, mesmo que pouco inspirados ou prejudicados pelo roteiro. O filme não deveria ter sido tão esquecido assim, e seria justo ter recebido também mais reconhecimento em seu tempo (foi ignorado por crítica e público em 1986). Alguém deveria puxar papo com o irmão caçula de Rede de intrigas, enquanto este recebe suas medalhas das autoridades. Os donos do poder tem algo a dizer, mesmo que o faça de forma desordenada, pulando de um assunto para o outro. E seria bom também aproveitar e pegar um drink para ele, pois o garçom nem passa onde ele está sentado...

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ruby Sparks: A namorada perfeita (Ruby Sparks – 2012)




Ruby Sparks: A namorada perfeita é um filme que sofre o impacto de expectativas destorcidas e exageradas. Isto se refere ao fato de sofrer a “maldição do segundo filme” (já que é o segundo longa do casal Valerie Faris e Jonathan Dayton), com a consequente espera de todos de que seja um filme tão engraçado e interessante como Pequena Miss Sunshine o foi (e que faça o mesmo sucesso). Mas isto igualmente vale em relação à sua própria trama. Nela o jovem escritor genial Calvin (Paul Dano) começa a escrever sobre uma garota por quem sonhou (Zoe Kazan) e logo descobre, estupefato, que ela não só passa a existir (inclusive para os outros, não é só uma miragem sua), como também a fazer e pensar tudo o que ele escrever sobre ela. Uma marionete humana capaz de, em tese, finalmente fazê-lo feliz, ele que por tanto tempo foi tão sozinho (a ponto de sequer ter amigos). O que poderia dar errado numa relação em que ele poderia controlar sua parceira em todos os seus pensamentos e atitudes?

Entretanto, Calvin logo descobre que, passado o entusiasmo inicial, aquela situação toda poderia não ser tão perfeita e promissora assim. Será que realmente tudo o que ele quer é uma mulher que o obedece em tudo? E se parar de escrever sobre ela, deixá-la seguir sua vida normal, será que ela continuaria interessada nele? O que realmente deseja Calvin, uma mulher feita sob medida para ele, ou uma que o desafie e o force a amadurecer, mesmo que com isso corra o risco de perdê-la? Ruby Sparks pode ser perfeita para ele, mas seria Calvin perfeito para ela? Seria ela capaz de escrevê-lo também? Ruby Sparks: A namorada perfeita lida com estas questões de forma surpreendente, pois a sua premissa básica em geral aponta para um filme repleto de piadas e situações inusitadas, a uma comédia mais convencional. O filme bebe de um certo tom de ironia e magia, certamente, mas prefere mais se aprofundar no romance do que no tom de comédia, o que pode decepcionar o público (e o trailer do filme não ajuda em nada isso, dando a impressão do filme ser uma comédia à la Pequena Miss Sunshine). Talvez o que ajude o filme a se concentrar mais no romance é ter dois casais no seu leme, no caso Jonathan Dayton e Valerie Faris, assim como Paul Dano e Zoe Kazan. A neta de Elia Kazan inclusive já escreveu o roteiro pensando em seu namorado Paul Dano, e isso contribuiu a se ter mais veracidade no filme (e, claro, contribuiu também a que ela mesma interpretasse o papel principal do filme, com uma carreira ainda iniciante). Há um quê de pessoal ali entre os atores, indefinível mas existente. E não deixa de ser irônico que, na vida real, foi ela quem escreveu um personagem para o namorado, para que ele vivesse de acordo com a sua imaginação...

O resto do elenco sustenta bem o casal principal, desde o irmão de Calvin (Chris Messina), sua mãe e padrasto (Annette Bening e Antonio Banderas), até o seu psicólogo (Elliott Gould). O personagem de Chris Messina e o de Annette Bening parecem pertencer mais ao universo de Pequena Miss Sunshine, mas mesmo eles no desenrolar da trama se aquietam um pouco. Esta mudança de rumo, de uma comédia anunciada nos primeiros minutos (uma espécie de Mulher nota mil refilmada), a um drama romântico no decorrer da trama, realmente puxa o tapete do público, e sente-se que o filme tateia um pouco no escuro tentando se encontrar em seu miolo. Há uma ou outra topada no meio do caminho, um escorregão aqui e ali, mas por fim o filme acha a sua voz. Com um final aberto a algumas interpretações, Ruby Sparks: A namorada perfeita pode não ser um filme perfeito, até porque os diretores e a atriz-roteirista não podem escrever a audiência perfeita, que aplaudiria o filme deles de qualquer forma, de acordo com a vontade deles (seria sensacional ter esse poder... Ou será que não teria a menor graça?). O filme é imperfeito, não é tão cômico como muitos gostariam que ele fosse, nem tão profundo a ponto de ser existencialista ou filosófico, os atores não são as beldades que boa parte do público está acostumada a ver, e as respostas, mesmo que abertas, que o enredo apresenta podem decepcionar a alguns espectadores. Mas os que permitirem que o filme reescreva suas expectativas sobre os diretores, o próprio filme, os personagens dele e, talvez o mais difícil, suas próprias fantasias e desejos pessoais, podem ter um novo olhar sobre o que há de perfeito na imperfeição.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A arca de Noé (Noah’s ark – 1928)



A arca de Noé foi um projeto de fé, não só para o profeta bíblico, como também para a Warner Brothers e o diretor Michael Curtiz. Com o orçamento passando de um milhão de dólares (altíssimo para a época), contando cenas elaboradas de efeitos especiais, o filme ainda sofreu atribulações para virar parcialmente falado, o que alterou um pouco até o seu tamanho e seu enredo (o papel do próprio Noé foi diminuído, já que Paul McAllister, que o interpretou, não se saiu bem ao microfone). Se o filme afundasse, a Warner sofreria um prejuízo muito sofrido, justamente numa época em que já efetuara muitos gastos para ser a pioneira do Cinema falado. E o próprio Michael Curtiz, recém-chegado da Europa (onde fizera inclusive Sodoma e Gomorra, de 1922, que inspirou Jack Warner a contratá-lo para dirigir A arca de Noé) poderia ter sua carreira muito prejudicada por um fracasso num projeto daquela estatura. Felizmente, o filme se saiu muito bem nas bilheterias, dando um bom lucro e solidificando a carreira de Curtiz nos EUA, que durou décadas e teve vários destaques como Capitão Blood, A carga da brigada ligeira, As aventuras de Robin Hood, Anjos de cara suja, A canção da vitória, Almas em suplício e, claro, Casablanca, pelo qual é disparado mais lembrado.



Com um projeto daquele escopo, o estúdio e o roteirista Anthony Coldeway, adaptando uma história de Darryl F. Zanuck (que depois criaria o estúdio 20th Century, que compraria a Fox e se tornaria a 20th Century Fox que resiste até hoje, com canal de TV fortíssimo e tudo), partiram para uma solução já testada e aprovada em alguns filmes de Cecil B. DeMille, mais notadamente Os dez mandamentos (a versão de 1923): Dividir o enredo em duas partes, uma passada num passado mais recente, e a outra cobrindo mesmo o enredo bíblico em si. Assim, a história de Noé e sua arca só começa, na verdade, na metade do filme. A primeira metade é toda de uma trama onde Travis (George O’Brien) e Al (Guinn Big Boy Williams) são dois amigos que se alistam na Primeira Guerra Mundial, e Travis ainda se apaixona por uma alemã foragida, Mary (Dolores Costello), que tenta fugir da chantagem de um militar (Noah Beery) que a deseja, e ameaça entregá-la como uma falsa espião caso ela resista. Quando se começa a trama de Noé, todos estes mesmos atores incorporam personagens centrais também, inclusive com a história guardando diversas semelhanças com o enredo da primeira metade do filme. A arca de Noé faz mesmo essa certa comparação da carnificina absurda que foi a Primeira Guerra Mundial com o mundo pretensamente devasso que levara Deus a criar todo aquele dilúvio, só salvando a família de Noé e os pares de animais. A própria adoração a falsos deuses é comparada à adoração do homem do Século XX pelo dinheiro (onde não mais se adoraria animais de ouros, mas sim os tickers da Bolsa de Valores), assim como há um óbvio paralelo entre o arco-íris pós-dilúvio e o anúncio do fim da guerra.

Se na trama de Noé a influência de Os dez mandamentos continua a pesar (a forma como Deus se comunica com Noé remete logo ao filme de Cecil B. DeMille), na do passado recente a influência de filmes como Asas é mais direta, com o enredo lembrando bastante o do filme de William Wellman, que tinha feito bastante sucesso (e ganho até o primeiro Oscar de melhor filme). Sente-se que o filme foi todo construído para não deixar margens a muitos erros, escorando-se ele com o que já tinha sido eficiente em outros filmes. A própria medida de se acrescentar cenas faladas ao filme também previa justamente agradar ao máximo ao público, que já exigia isso depois do sucesso de O cantor de jazz. É de se registrar que a captação de áudio impressiona, sendo bem superior do que o usual na época (os diálogos são claros de se ouvir, com quase nenhum chiado), e a primeira cena falada até causa boa impressão. Imagina-se inclusive que tenha agradado ao público em cheio por até surpreendê-lo um pouco, por surgir depois de vários minutos após o filme ter se iniciado. Apesar disso, claro, as melhores cenas são mesmo as mudas, já que com a necessidade de se registrar o som necessitava-se de uma câmera muito estática e de muitos closes forçados. De qualquer forma, é um dos melhores filmes parcialmente falados, por saber evitar que o nível desabe com as cenas faladas. Quanto aos atores, se não brilham, fazem o seu trabalho adequadamente, mais notadamente George O’Brien (mais lembrado por sua atuação no clássico Aurora, de Murnau), a bela Dolores Costello (que ficou marcada por outro clássico, no caso Soberba, de Orson Welles) e Noah Beery (o irmão mais velho de Wallace Beery, aliás ambos eram muito parecidos fisicamente). Myrna Loy tem dois papéis no filme também, mas de pouco destaque, e ainda com sua imagem ligada a um certo exotismo, que só a abandonaria nos anos 30 (onde viraria a imagem da “esposa perfeita”). E Michael Curtiz demonstra, já desde essa época, seu domínio da linguagem narrativa, não deixando o ritmo cair e criando várias cenas de impacto. A partir daí criou uma carreira de muito sucesso, e é de se lamentar que vários diretores, com um décimo dos clássicos que ele dirigiu em seus respectivos currículos, costumam ser mais cultuados do que ele.

Mas nem tudo correu tão bem assim. O filme, mesmo custando tão caro, foi lucrativo, mas a produção dele foi um inferno quanto às cenas de efeitos especiais, mais propriamente o dilúvio em si. Como filme sobre a história de Noé sem muito aguaceiro não tem graça, a Warner e o diretor Michael Curtiz resolveram caprichar neste sentido, mas passaram totalmente da medida do bom-senso. Três figurantes morreram afogados, um teve sua perna amputada e a própria Dolores Costello pegou uma pneumonia por causa da força das águas. John Wayne foi inclusive um dos figurantes nas cenas de dilúvio, e imagina-se que o Duke tenha passado por um certo aperto. As cenas de dilúvio ainda impressionam, mas tais acidentes chocaram Hollywood e foram decisivos para que se regulasse um pouco mais a questão da segurança nas filmagens. Quanto a Cecil B. DeMille, não deve ter ficado tão chateado com a inspiração de seus filmes para a criação de A arca de Noé. Se ficou, pode-se quase afirmar que ele se vingou, pois bem que seu Sansão e Dalila (de 1949) tem cenas parecidíssimas com as do filme de Michael Curtiz quanto à cegueira forçada de um personagem, que é preso e forçado a trabalhos pesados, girando uma mó como Victor Mature fez no filme de 1949, num cenário muito similar.   

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O veleiro da aventura (Plymouth adventure – 1952)




Os EUA são hoje o país mais rico do mundo, líderes mundiais em termos políticos e militares desde o fim da Primeira Guerra Mundial, um colosso que apenas recentemente vêm sendo ameaçado pelo crescimento da China. Mas em 1620, o cenário daquela região era desolador. Tudo o que a Inglaterra tinha ali eram apenas algumas colônias vagabundas esparsas na Costa Leste, desprezadas pela metrópole que considerava que tinha chegado tarde na festa da era dos descobrimentos, já que os espanhóis deitavam e rolavam com a absurda quantidade de ouro e prata que descobriram em suas vastas terras nas Américas Central e do Sul, e os portugueses conseguiam lucros no Brasil também com monoculturas. Já tudo o que aquelas colônias tinham, na visão da coroa britânica, era o mesmo clima temperado da Inglaterra, nenhum ouro ou prata, e um monte de índios hostis. Não surpreende, assim, que existisse o desinteresse de que eles investissem qualquer coisa naquele novo mundo. Mas se o Governo britânico ignorava aquelas terras, uma parte de sua população, oprimida por um sistema de classes que nunca permitia sua ascensão social, e sufocada em seu credo religioso, começou a se interessar pela perspectiva de começar do zero em um novo lugar, por mais inóspito que fosse. Um inusitado lugar que não tinha nada que atraísse a atenção dos ricos cidadãos ingleses, mas tinha o suficiente para atrair os pobres cidadãos ingleses. E, assim, em 1620, 102 corajosos britânicos resolveram abandonar tudo (literalmente) e tentar a sorte nesta terra inóspita, arriscando morrer na árdua viagem no navio Mayflower, ou nas agruras de se viver numa terra sem suporte de ninguém. Em menos de um ano, só sobreviveram 53 destes peregrinos, sendo a maioria mulheres e crianças. Mas nenhuma dessas 53 pessoas quis retornar para a Inglaterra, mesmo com tanto sofrimento.  Era tudo ou nada, desde o começo.

O veleiro da aventura conta a história desta viagem e desses pioneiros. O filme surpreende por não forçar muito a mão no tom patriótico. Sendo um filme americano (de um povo que toca hino nacional toda hora, e leva a bandeira a qualquer canto), da Metro-Goldwyn-Mayer (estúdio que tendia a glamourizar os fatos) e realizado nos anos 50, a chance de se forçar a barra era grande, mas felizmente o diretor Clarence Brown (da velhíssima guarda, dirigiu clássicos do cinema mudo como O último dos moicanos, O águia e A carne e o diabo), em seu último filme, e a MGM souberam conduzir o filme sem histrionismos. O enredo, adaptado do livro homônimo de Ernest Gebler, romantiza um pouco a história, principalmente quanto a Gene Tierney estar sempre maquiada e de batom, e ao inventar uma intriga para levar os peregrinos a um outro lugar (isso aconteceu, o destino era a Virgínia, mas por razões climáticas não chegaram lá e se estabeleceram em Cape Cod, Massachussets, e não por causa de uma intriga), e a criar um breve romance entre a personagem de Gene Tierney e o de Spencer Tracy, que interpreta o capitão do navio. Este romance, de fato, não “pertence” muito ao enredo, não convence, mas de resto a história é conduzida com dignidade. Todos os nomes dos personagens são corretos, com nenhum personagem inventado para dar um molho à trama (coisa comum no Cinema), e inclusive o filme mostra que nem todos os peregrinos eram religiosos, e que a imundície à bordo, e o assédio dos marinheiros às mulheres, foram pragas de uma longa e tediosa viagem, num navio bastante modesto. O filme também não ignora as mortes na viagem, e se deixa a desejar um pouco, é na rápida resolução de tudo ao final, pouco mostrando a vida na nova colônia. Mas é um filme que tem méritos também ao se utilizar um navio de tamanho semelhante para as filmagens (construído especialmente para o filme), fazendo assim pouco uso de miniaturas, e nos efeitos especiais das duras tempestades, que até renderam ao filme um Oscar de efeitos especiais. O filme fica mais realista assim. Entretanto, é de se pensar como que um tema tão caloroso aos americanos não tenha gerado uma superprodução desde este hoje tão esquecido filme, com os efeitos especiais de hoje em dia, e com um tom revisionista da história.  

Spencer Tracy ajuda o filme a ficar com os pés no chão ao atuar como o capitão do navio, Christopher Jones, por ser ele, junto de seu imediato interpretado por Lloyd Bridges (numa de suas melhores atuações), sempre a voz dissonante, ao nunca acreditar em toda aquela loucura, e ficar gozando os pobres passageiros. É raro ver Spencer Tracy num papel antipático, mas ele o desempenha com correção. Van Johnson era um risco quanto ao elenco, com sua cara de galã juvenil, que poderia afundar o filme, mas se comporta bem. E Leo Genn, com sua voz lendária, acrescenta dignidade à trama, no papel central de William Bradford, que foi um dos líderes da Colônia, impedindo que ela caísse numa anarquia. Tais líderes redigiram o Pacto do Mayflower, que entre outras questões exigia os votos da maioria para que algo fosse aprovado. Uma espécie de Constituição primitiva, a primeira dos Estados Unidos.  O escritor Eduardo Galeano afirmou, sobre os EUA, que eles tiveram “a importância de não nascer importante”, e isso realmente ajudou que esses peregrinos corajosos e simplórios construíssem as bases da futura potência. Já há algum tempo, porém, o governo americano fecha as portas justamente para os imigrantes que tentam chegar ao país fugindo de realidades desoladoras, com o intuito de construir uma vida melhor nos EUA, ou morrer tentando. Não são mais um país aberto aos William Bradfords do Século XXI, como o foram até o começo do Século XX. Uma triste ironia da história.

sábado, 20 de outubro de 2012

César deve morrer (Cesare deve morire – 2012)




Os primeiros famosos irmãos na co-direção no Cinema (antes de surgirem os irmãos Coen, e posteriormente os Dardenne, Quay, Wachowsky, etc.), foram os irmãos Taviani, Paolo e Vittorio.  Dividindo cada filme por cenas (onde um não metia o bedelho na cena dirigida pelo outro), eles alcançaram bastante sucesso e eram considerados cult nas décadas de 70 e 80, ganhando a Palma de Ouro em Cannes por Pai Patrão em 1977, e alcançando grande sucesso com Allonsanfàn, A noite de São Lourenço e Bom dia, Babilônia, entre outros filmes. Porém, afora algum destaque com As afinidades eletivas, em 1996, eles sumiram bastante do cenário internacional a partir dos anos 90, a ponto de muitos pensarem (erradamente) que eles tinham encerrado suas carreiras. Mas eis que, com ambos tendo mais de 80 anos de idade (Vittorio é de 1929, Paolo de 1931), retornaram aos holofotes com César deve morrer, filme que ganhou o Urso de Ouro de Berlim de 2012.

Se os diretores já têm uma certa idade avançada, o filme pulsa pela juventude e garra de seus atores. Que nem são propriamente atores de ofício, mas sim presidiários de Rebibbia, na Itália, que se voltaram à adaptação de Julio César, de William Shakespeare, como uma forma de terem um mínimo de objetivo de vida dentro da cadeia. Impulsionados pelo diretor teatral Fabio Cavalli, eles falam em seus próprios dialetos e retiram boa parte da pompa e afetação de adaptações convencionais da obra do famoso bardo. Se alguma licença que eles tomam com a peça pode incomodar algum purista, em compensação há algo de adequado em ver “atores” italianos lidando com um enredo passado na Roma antiga. Parece bem mais verídico do que um inglês de sotaque aristocrático, apesar de evidentemente Shakespeare ser mais britânico do que fish and chips. Os atores surpreendem com suas performances, não causando nenhum estranhamento por esperados amadorismos. Muito pelo contrário, todos atuam muito bem, com mais destaque para Giovanni Arcuri (César), Salvatori Striani (Brutus) e Cosimo Rega (Cássio). Com eles a intriga política ganha uma dose extra de adrenalina e vitalidade.

O filme não é, entretanto, propriamente um documentário desses presidiários interpretando uma obra de Shakespeare. É uma obra de ficção, que inclusive é muito semelhante à de Ricardo III – Um ensaio, de Al Pacino, no sentido de explicar um pouco o contexto da peça, misturar ensaio com a peça em si, e apresentar um pouco os atores. E é aqui que o filme dos irmãos Taviani desliza um pouco. Algumas cenas são obviamente encenadas, tirando um pouco o frescor do que um real documentário poderia trazer. Os diretores intercalam bem o uso de preto e branco e de cores, e algumas cenas têm muito impacto, mas outras parecem um pouco falsas, quase como se fossem uma repetição de fatos ocorridos anteriormente, e repetidos para a câmera. Outro problema é que os atores, salvo raros e breves letreiros no começo e no final do filme, são pouco apresentados para o público, que não fica sabendo muito bem quem são aqueles homens, só podendo observar suas (boas) atuações na peça. César deve morrer deixa a estranha impressão de ser curto demais em seus breves 76 minutos, é um caso raro de um filme que poderia ter seus vinte minutos a mais, no mínimo, sem se perder nada do efeito ou de seu ritmo (é muito mais comum ver filmes esticados em demasia, que passam da conta). Os Taviani foram econômicos demais nas informações sobre aqueles presos, e isso pode frustrar um pouco o público. Igualmente, não foram muito transparentes quanto a Salvatore Striano, que tinha saído da prisão em 2006, participara até de Gomorra, de Matteo Garrone, em 2008, dentre outros filmes, e aceitou participar de César deve morrer. Salvo uma breve informação de sua saída da cadeia no fim do filme, não fica claro, no transcorrer do filme, que ele já não era mais um presidiário durante as filmagens. A fronteira entre ficção e documentário é um pouco difícil de demarcar no filme, e isso pode tirar um pouco do impacto para alguns espectadores.

De toda forma, com todas as suas virtudes e pecados constantes de seus 76 minutos, o filme funciona muito bem, passa voando inclusive, e transmite com competência a noção de como a busca pela cultura pode suavizar a brutalidade da vida, algo já demonstrado antes em Pai patrão. Em César deve morrer há até um toque estranho neste sentido, pois um dos presos destaca o quanto ele se sente mais preso depois de atuar na peça, do que se sentia antes. Uma maior sensibilidade trazida pela arte amplia tudo, até a sensação de angústia. É uma faca de dois gumes, gostemos ou não. César deve morrer, mas a arte deve sempre viver, mesmo na prisão.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sudoeste (2012)




Sudoeste é um projeto de dez anos, que o diretor Eduardo Nunes acalentou e confeccionou como um ourives faz uma joia, com carinho e atenção. Sente-se que cada plano foi muito bem pensado, o esmero acompanha todo o filme, que segue um fluxo contemplativo, poético  e meditativo difícil de ver em um filme brasileiro. Limite, de Mário Peixoto, é um filme que salta à mente quando se assiste Sudoeste, por seu ritmo, composição, e até por aspectos como ambos terem sido filmados em aldeias primitivas de pescadores (neste filme aqui, uma abandonada em Pontal de Massambaba, perto de Arraial do Cabo), o que gera inclusive algumas imagens muito semelhantes. A obra de Tarkovsky, principalmente Stalker, Solaris, O espelho, O sacrifício e Nostalgia também remetem ao filme pela forma com que Eduardo Nunes trabalha o tempo em seus longos planos, assim como a de Béla Tarr em seu enorme Sátántangó e Werckmeister Harmonies e a de Theo Angelopoulos, mais notadamente em Os atores ambulantes. Isso não quer dizer, porém, que o filme seja uma cópia desses filmes e diretores, longe disso, Sudoeste tem personalidade própria, é um filho direto do diretor, que como todo mundo, não pode (e nem conseguiria) negar suas influências e paixões, mas que consegue mesmo assim assinar sua obra com seus tons pessoais. E é uma obra de impacto, que deve dar orgulho de assinar.

O elenco conta com Simone Spoladore, Raquel Bonfante e Regina Bastos (as três interpretando Clarice, em estágios diferentes de sua curta vida), Dira Paes, Mariana Lima, Léa Garcia (atriz veterana desde os tempos de Orfeu do carnaval, que atua como a bruxa), Victor Navega Motta (o menino João) e Julio Adrião (Sebastião). Todos atuam muito bem, em compasso com o ritmo do filme. A vida estranha de Clarice, que dança entre o imaginário, o onírico e o fantasmagórico, ao durar apenas um dia naquela aldeia, causa reflexões no espectador da transitoriedade da vida e da sensação de destino. Ela, em toda a sua inocência de quem nada sabe (nem mesmo como é a chuva), plaina sobre os demais, e saboreia sensações de que quem vive normalmente já se acostumou a desprezar ou a não reparar mais. As atrizes que a interpretam, assim como todos os outros atores, auxiliam no olhar filosófico desta misteriosa obra. Mesmo assim, ao contrário de muitos filmes, aqui os atores não são tão centrais à obra, são componentes de um todo, que agrega elementos como a trilha sonora, a edição precisa, os sons (que ajudam até na fugidia percepção de tempo) e, claro, a fotografia.

Em Sudoeste, assim como aconteceu com Limite (entre Mário Peixoto e Edgar Brazil), a parceria entre diretor e diretor de fotografia é vital para o filme, é o que o destaca e a razão mesmo de ser da obra. Não é absurdo nenhum considerar Mauro Pinheiro Jr. (de trabalhos como Cinema, aspirinas e urubus, Mutum e Linha de passe) como uma espécie de co-autor do filme. Sua fotografia em preto e branco, granulada, de recorte 3:66 (que torna a imagem mais horizontal ainda do que o antigo Cinemascope) realça a poesia de um filme nostálgico e poético como poucos, a ponto de ser quase impossível imaginá-lo a cores e num tamanho tradicional. A beleza de cada frame salta aos olhos, e talvez até fosse adequada a exibição de Sudoeste não só em cinemas (é um luxo vê-lo em tela grande) como também em museus. Talvez o público fosse até mais adequado, no sentido de que costuma estar com a mente mais aberta do que o espectador normal de um cinema, mais propenso a aceitar e se deleitar com uma obra lenta e contemplativa como Sudoeste. Sim, talvez este seja um “filme-museu” por natureza, não por ser antigo ou coisa que o valha, mas por merecer um público mais disposto a aceitá-lo, a embarcar numa nova e diferente viagem, como costuma ser o público que visita um museu. Não há como negar que Sudoeste, mesmo com toda a sua beleza, tem sua forte contra-indicação para um público tradicional, acostumado a filmes narrativos, de cortes rápidos e muita adrenalina. Não é nada difícil imaginar este público caindo no sono ao tentar assistir o filme. Ressaltar isso pode afastar uma parcela do público, em tese parece machucar o filme, mas também o defende de ataques venenosos de quem não está acostumado ao tipo de experiência que ele proporciona (não é questão de inteligência do espectador de forma alguma, e sim de hábito cinematográfico. Quem está acostumado a assistir filmes de Tarkovsky, Antonioni, Béla Tarr e Cia., assiste Sudoeste facilmente. Quem não está, “briga” contra o conceito do filme desde o início). Sudoeste é para filósofos, cinéfilos hardcore, intelectuais em geral, que têm tudo para apreciá-lo como ele é. É champagne, é caviar, e não cerveja ou pipoca. Não é, nem pretende ser, um filme popular. Ele tem o seu público-alvo, e é o típico filme que divide crítica e público. E ambos têm suas razões para amá-lo ou repudiá-lo. Cabe a cada espectador saber onde se posicionar.

Feita esta ressalva, é razoavelmente nítido que Sudoeste logo entrará em muitas listas de “melhores filmes brasileiros do Século XXI”. Talvez até entre em listas mais abrangentes do que essa... O filme encantou por onde passou, ganhando diversos prêmios mundo afora, sendo que o mais adequado de todos foi o prêmio Andrei Tarkovsky no Festival de Zerkalo, que é o título em russo do filme O espelho. Quase como se o ídolo do diretor o congratulasse... É possível vislumbrar um futuro muito promissor de Eduardo Nunes, que antes já tinha se destacado por seus curtas (este é seu longa de estreia), e segue um viés filosófico pouco visto em nossas terras, talvez só encontrando semelhanças recentes com o Cinema de Luiz Fernando Carvalho. Como Clarice em relação à sua aldeia, Sudoeste parece não pertencer muito ao cenário nacional, não parece um filme brasileiro, mas é muito bem-vindo e traz uma maior percepção ao que não estamos acostumados a olhar, nos transformando todos em Clarices satisfeitas por aproveitar este dia repleto de experiências. Soprou um vento sudoeste no cinema brasileiro, trazendo com ele um novo clima e uma lembrança de quem nós fomos, somos e podemos ser. Ou podíamos ter sido. É só fechar os olhos e imaginar o que vai acontecer...

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mais um ano (Another year – 2010)




Depois de uma rara incursão pela euforia em seu último filme, Simplesmente feliz, onde a personagem principal ria até de tempestade, Mike Leigh volta a analisar a classe média-baixa britânica com seus habituais tons depressivos em Mais um ano. E o faz com o talento de um diretor de décadas de experiência, que trabalha sempre sem roteiro definido (famosamente seus filmes nascem de improvisações nos ensaios), e com um elenco de atores fidelíssimo a ele. Curiosamente, os filmes de Mike Leigh costumam emplacar indicações justamente na categoria de roteiro no Oscar (foi esta a única indicação do filme, perdendo para O discurso do Rei), o que demonstra que seu método nada convencional funciona de forma efetiva, já que o enredo de seus filmes é sempre bem trabalhado. Quanto ao elenco, Mike Leigh faz um rodízio inteligente com ele, usando atores que, em outros filmes seus, ficavam em segundo plano (por vezes em papéis bem discretos), e colocando-os nos papéis centrais de Mais um ano. Dessa vez quem consegue seu lugar ao Sol são as atrizes Ruth Sheen e Lesley Manville, que aproveitam muito bem suas oportunidades. Lesley Manville é Mary, a locomotiva depressiva do filme, uma mulher de meia-idade, amiga do casal formado por Jim Broadbent (Tom) e Ruth Sheen (Gerri), que, ao contrário destes, simplesmente não consegue fazer sua vida funcionar (e se afundar na bebida piora ainda mais o seu quadro). Sua performance é sublime (ela levou vários prêmios e indicações por sua atuação mundo afora), numa personagem que traz o desacerto na vida tão regrada e certinha do casal. Mas não é só ela que assim o faz, o filme trata das várias pessoas infelizes que, de um jeito ou de outro, convivem ao redor deste casal, por mais um ano da vida deles, desde o irmão quase catatônico de Tom (David Bradley) até o amigo solitário do casal, Ken (Peter Wight).

O filme lida com a tensão entre uma acomodada felicidade do casal e de seu filho com a nova namorada, e a infelicidade latente de todos os demais. Ao mesmo tempo em que aquele parece só mais um ano na vida de todos, ele também pode ser um ano decisivo. Mais um ano é daqueles filmes em que o espectador pode até descobrir mais de si mesmo através de sua reação sobre a conduta de cada personagem. O casal Tom e Gerri poderia ser visto como feliz e solidário, ou como distante e condescendente. Mary tanto pode ser uma bêbada com mentalidade egoísta de adolescente, daquelas incorrigíveis, ou alguém amável que precisa de ajuda e não a encontra, só recebendo piedade em troca. E o mesmo vale para os outros personagens, os julgamentos do caráter de cada um não são fáceis, os personagens são todos calejados e multidimensionais, e a câmera do diretor os observa com calma e diligência, despertando para os espectadores mais atentos os detalhes de cada personagem ou situação. Esta complexidade do filme de Mike Leigh encanta, até por ser este um caso cada vez mais raro de filme feito por e para pessoas de idade avançada, que não vira a cara para as tristezas e decepções da vida, não finge que elas não existem. Mais um ano é um filme duro, por vezes muito árido, que não oferece soluções fáceis e mágicas e nem rostinhos bonitos e joviais. Ele exige maturidade, curiosidade e paciência do espectador, até para poder notar detalhes como olhares, postura corporal dos personagens, etc. A reação a algo falado costuma ser muito mais revelador do que o diálogo em si, e a câmera de Mike Leigh está sempre pronta para registrar isso.

Os atores amam Mike Leigh, e não é à toa, seus filmes vivem e florescem do trabalho dos atores, que recebem um ótimo material para trabalhar, sob os olhares atentos de um diretor que os admira em suas funções. É difícil que atores razoavelmente desconhecidos como Ruth Sheen e Lesley Manville recebam papéis tão ricos através de outros diretores. Felizmente para alguns deles, Mike Leigh já deixou bem claro que nunca fará um filme tendo que aceitar ator X ou Y, por mais famoso que seja, e por mais que recebesse uma bela grana para fazer seus filmes se o contratasse. Prefere manter seu círculo de atores, e brindá-los eventualmente com papéis que marcarão suas vidas para sempre. Imelda Staunton (O segredo de Vera Drake), Sally Hawkins (Simplesmente feliz), Brenda Blethyn (Segredos e mentiras), David Thewlis (Naked), entre alguns outros, e mais Ruth Sheen e Lesley Manville neste filme aqui, todos sentiram na própria carne o quanto vale a pena fazer parte de sua trupe, fazendo sob a direção de Mike Leigh os filmes mais marcantes de suas carreiras. E evidentemente Mike Leigh também se beneficia, forjando diligentemente uma carreira de impacto no Cinema, com uma constância de filmes maduros e marcantes, que exigem um espectador preparado para ver o lado feio e triste da vida, mas que o recompensa com uma maior riqueza de olhar e de percepção.  Mais um ano é um dos maiores filmes do diretor, que domina com cada vez mais competência a câmera ao redor de seus atores, e que tem idade suficiente para tratar da velhice com intimidade. Muitos diretores surgem com tudo, e depois de uns três filmes já parecem ter dito tudo o que tinham a dizer (e a mostrar). Mike Leigh já dirigiu diversos filmes, e a força de seus filmes não parece esmorecer, pelo contrário. Após Mais um ano, tudo o que se pode pedir a ele é mais um filme. Com a vantagem de que é muito provável que mais um filme de Mike Leigh não seja apenas mais um filme qualquer.

domingo, 14 de outubro de 2012

Duas garotas românticas (Les demoiselles de Rochefort – 1967)




A Nouvelle Vague surgiu na França, no fim dos anos 50, propondo um novo tipo de Cinema, em oposição ao hollywoodiano (do qual repudiava, mas que estranhamente também sentia certa atração), e com isso influenciou cineastas do mundo inteiro, também interessados em surfar uma onda nova.  E talvez o gênero de filmes mais dissonante do que os cinema-novistas do mundo inteiro queriam (não só na França, mas como na Alemanha, Brasil, Japão, etc.) era exatamente o musical. Um gênero quase sempre alienante por natureza, muitas vezes dependente de se filmar em estúdios (quando os cineastas queriam sair para as ruas), escorado em belas estrelas (contra a tendência de se buscar rostos mais “comuns”)... O musical típico da época de Fred Astaire, Gene Kelly e Cia. parecia fadado aos museus, daqueles nunca visitados (só nos anos 70 haveria um revival desta época, muito por causa dos documentários That’s entertainment!). Mas foi justamente na França e neste período efervescente e iconoclasta que surgiu Jacques Demy, um amante dos musicais hollywoodianos, que teve a ousadia de fazer algo considerado reacionário e americanizado, isso numa época em que essas duas palavras estavam no ápice de suas conotações negativas. Primeiro fez um musical todo cantado em francês (todo mesmo, sem exceção, ninguém fala normalmente em momento algum) com seu Os guarda-chuvas do amor, com Nino Castelnuovo e a irmã mais nova de Françoise Dorléac no papel principal (uma certa Catherine Deneuve, ainda bastante desconhecida). Contando com a música inspirada de Michel Legrand, o filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes e encantou o mundo, com um raro exemplo de um musical com tom melancólico.
                                                                            
Alguns anos depois, Demy partiu para uma nova empreitada no gênero. Até queria filmar uma espécie de continuação de seu filme premiado, mas Nino Castelnuovo não estava disponível. Assim, mudou de ideia, partindo para toda uma nova trama. Mas o que não quis desistir de jeito nenhum foi de filmar com Gene Kelly. Esperou dois anos para que a agenda dele o permitisse participar do filme. Juntou ao seu redor Françoise Dorléac e novamente Catherine Deneuve (com ambas já bastante famosas), Jacques Perrin, o dançarino americano George Chakiris (oscarizado por seu trabalho em Amor, sublime amor), Michel Piccoli e a veterana Danielle Darrieux (atuando no Cinema desde 1931, tendo inclusive protagonizado o longa de estreia de Billy Wilder!), escorando todos com a música de Michel Legrand, e escolheu dessa vez Rochefort em lugar de Cherbourg como local do filme, por apreciar a praça principal da nova cidade. O resultado foi Duas garotas românticas, um charmoso musical à moda antiga (mesmo para 1967). Sim, daqueles em que as pessoas começam a cantar gratuitamente, e dançam alegremente no meio da rua, e ninguém ao redor acha estranho ou liga para o hospício.

Duas garotas românticas é a joie de vivre filmada. Poucos filmes, mesmo dentre os musicais mais açucarados, demonstram tanta alegria descompromissada, mas Demy consegue fazer com que ela seja palatável, mesmo para os padrões atuais. A música de Legrand é bela, mas não está, de jeito nenhum, no mesmo nível da que compôs para Os guarda-chuvas do amor. Filme, aliás, que acaba por fazer sombra a este aqui, a comparação quase inevitável machuca um pouco Duas garotas românticas. Sente-se falta de um mínimo de drama, que algum personagem fique a perigo, o que praticamente não acontece nesta nova empreitada. Todos cantam e dançam belamente (na verdade, dançam, pois cantar mesmo só Danielle Darrieux, o resto foi dublado por outros cantores, inclusive Gene Kelly), e ver Gene Kelly dançando, mesmo com idade avançada, é sempre um prazer. Mas ninguém realmente sofre ou teme pelo futuro, tudo é leve demais, falta um pouco de preocupação, de realidade, no meio de tantos sorrisos. Por triste ironia, a cota de drama quem trouxe foi a vida, mas apenas dias após terminadas as filmagens, com a trágica morte, por acidente de carro, de Françoise Dorléac, o que traumatizou por anos Catherine Deneuve. Ver essas duas garotas românticas juntas, irmãs interpretando irmãs, “cantando” alegres e muito entrosadas, é uma das magias do cinema, essa capacidade de poder congelar belos momentos, que a vida não permite que durem para sempre. Françoise Dorléac sempre estará em Duas garotas românticas, cantando e dançando, e vê-la nele, sabendo de sua tragédia logo depois, dói ao mesmo tempo em que satisfaz. Esse sentimento estranho, misto de alegria de poder ver um ídolo no seu ápice, e melancolia de saber que ele não está mais entre nós (e, pior no caso de Dorléac, que morreu logo depois de terminado o filme), todo cinéfilo conhece. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Post tenebras lux (2012)




Luz após a escuridão. Seria essa, de certa forma, a tradução para o português do título em latim do filme. Mas não é exatamente essa a impressão que fica ao término do filme, para a quase totalidade dos espectadores. Isso porque o diretor Carlos Reygadas, como vêm deixando claro em sua curta filmografia (Luz silenciosa Batalha no céu, entre outros), não pretende realmente deixar nada tão claro assim. Ele despreza o cinema narrativo, e afirma que o Cinema deve ser livre, mais parecido com a música no sentido de evocar sentimentos, do que como um veículo para se fazer uma espécie de teatro filmado ou literatura em imagens. É uma postura que ele carrega em Post tenebras lux, e que pode incomodar muito a uma parte do público desacostumada a um filme com um fiapo de enredo, e composto de várias cenas que por vezes parecem desconexas. 

Curiosamente, é possível se absorver mais o significado do filme pesquisando sobre o diretor, após o filme, do que simplesmente assistindo Post tenebras lux. Sente-se que se trata de um filme com viés autobiográfico, e saber que o diretor jogou Rugby a ponto de ser membro da seleção mexicana, que morou 12 anos na Europa (Bélgica, Espanha e Inglaterra), que trabalhou como advogado, que descobriu sua nova paixão ao ver filmes de Andrei Tarkovsky e Michelangelo Antonioni, e acha vital trabalhar com não-atores e com locações naturais (quase no estilo Dogma 95 mesmo), ajuda a dar um mínimo de sentido ao que se viu. Mas tais informações tanto podem servir como algo complementar ao filme, para muitos espectadores, como até algo desnecessário, para outros, pois no filme de Reygadas a emoção que cada cena traz a quem a assiste pode importar mais do que a compreensão do todo que ele poderia vir a ter.

É nítido que um filme como Post tenebras lux vai se fazendo naturalmente, através da escolha dos atores (estreantes no Cinema) para viverem seus personagens, pela descoberta de locações, pelos sons desses lugares... Assim como a fotografia utilizada, que por várias vezes foca apenas no centro, desfocando nas beiradas da imagem, passando uma ideia de imagem onírica, talvez egressa de uma memória infantil. A fotografia de Alexis Zabe (que também trabalhou brilhantemente em Luz silenciosa), aliás, é um desbunde, e valoriza muito o filme, principalmente por ele focar tanto na experiência sensorial do público, e não do que ele apreende de um roteiro. Todos estes elementos são fundamentais para o diretor se expressar na tela, e ele o faz através de várias cenas rurais, onde o embate civilização versus natureza é constante, e a sexualidade e a brutalidade são naturais como o nascer e o pôr do Sol. Carlos Reygadas é um diretor autoral como poucos, daqueles muito mais interessados em fazer os seus próprios filmes do que ver os filmes dos outros. A base de seu Cinema não é cinematográfica, como é tão comum em tantos diretores, mas sim pessoal, calcada em sua vida, e não do que viu em filme X ou Y.

Ao final da experiência, porém, devido à filosofia do diretor, é difícil não ficar com a impressão que Post tenebras lux é um filme formado por várias cenas muito belas, mas que formam um todo estranho, desconexo, insatisfatório, incompleto. Algo muito raro de se ver por aí, mas que parece que tende a se tornar comum no cinema extremamente pessoal e íntimo de Carlos Reygadas. Um roteirista tradicional poderia auxiliá-lo a criar um filme mais coeso e compreensível, mas Reygadas fugiria dele como o diabo foge da cruz. A busca de uma maior clareza para “ajudar” o público traria exatamente a morte de seu Cinema tão pessoal e intransferível, que se encontra na natureza, na escuridão, na penumbra, e não na luz e num saber estabelecido. Um Cinema de um homem único, feito para poucos (dentre eles, o Júri de Cannes, que lhe deu o prêmio de melhor diretor por este filme), e ignorado e/ou incompreendido por quase todos. Um Cinema que encanta, decepciona, atordoa e desnorteia. E que não pode ser repetido, com seus méritos e falhas, por mais ninguém. Difícil ser mais autoral que isso. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Looper: Assassinos do futuro (Looper – 2012)




Segundo o mundo criado pelo diretor/roteirista Rian Johnson, em 2074 a viagem no tempo seria descoberta, e logo tornada ilegal. Mesmo assim, alguns criminosos a usariam ilegalmente para se livrarem de forma segura de certas pessoas: Bastaria enviá-las para o ano de 2044, que um matador (um looper, segundo terminologia do filme) estaria prontinho para matá-las instantaneamente e incinerar seus corpos. Quem procuraria aqueles corpos, em 2044? Ninguém. Em tese, o crime perfeito. Mas, claro, planos perfeitos nunca calculam a imperfeição das pessoas. Looper: assassinos do futuro trata exatamente de quando esse plano perfeito não funciona, e as complexas consequências que resultam disso.

Uma ficção-científica eficiente, que também funciona como um bom thriller, Looper: Assasinos do futuro têm o mérito de entender suas limitações, e não tentar reinventar a roda. O conceito de viagem no tempo é tratado com certa parcimônia, sem gerar mil elucubrações. O roteiro é inteligente, mas não muito preciso, ele têm seus buracos, mas Rian Johnson sabe manter um ritmo rápido e envolvente, que evita que o espectador fique divagando muito durante o filme. Como Bruce Willis sugere para Joseph Gordon-Levitt, ou, se quiser, como ele diz para a versão mais nova de si mesmo (situação clássica de filmes de viagem no tempo), o ideal é não ficar filosofando muito sobre o assunto. Essa visão pragmática, rápida-e-rasteira, ajuda o filme e enfatiza o seu lado thriller. Misturando elementos de O exterminador do futuro, Os 12 macacos e Carrie, a estranha, o filme de Rian Johnson têm méritos suficientes para se manter de pé, agradar o público e até criar um mini-culto em torno de si, com o passar dos anos. Quanto às suas inconsistências no roteiro, podem perfeitamente ser perdoadas por um espectador que reconheça que teve um bom entretenimento. A jornada é proveitosa, mesmo que eventualmente o desembarque não seja perfeito para alguns espectadores.

Além da competência de Rian Johnson, que vai se firmando na profissão, Joseph Gordon-Levitt é outro que também demonstra, uma vez mais, sua maturidade, e vai afastando de vez a imagem de galã juvenil de TV. Ambos tinham trabalhado juntos em A ponta de um crime, longa de estreia do diretor (que ajudou a elevar o status de Gordon-Levitt, anos antes de (500) dias com ela, que foi o que mudou sua vida), e mostram entrosamento. Bruce Willis é o Bruce Willis velho de guerra, com direito a uma cena de chacina geral que entraria em qualquer Duro de matar facilmente (talvez o momento mais convencional do filme, felizmente o único). Seu papel ele faz de olhos fechados, ainda mais tendo a experiência de Os 12 macacos no currículo (um filme, não há como negar, bem mais profundo do que Looper: Assassinos do futuro). Emily Blunt é que surpreende, com um papel em que sai do seu convencional, ou seja, a aristocrática, com sotaque britânico e rosto de princesa. Aqui ela é uma mãe sofrida e dona de fazenda, que tenta ser o mais durona possível para proteger o pequeno Cid (o menino Pierce Gagnon, em uma bela atuação. Seu olhar é muito expressivo). Jeff Daniels também sai do seu perfil cômico para encarnar um bandidão tranquilo, de fala mansa, com muita eficiência. Até Paul Dano (Sangue negro, Pequena Miss Sunshine) tem seu pequeno papel, encorpando ainda mais o molho do elenco. Contando ainda com bons efeitos especiais (que sempre agradam os fãs do gênero), e uma maquiagem que faz Joseph Gordon-Levitt ficar realmente mais parecido com Bruce Willis (usaram até prótese no seu nariz), Looper: Assassinos do futuro é uma ficção-científica que, se não chega a sentar no camarote, também não fica de pé no setor popular dentre os filmes do gênero. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Pietà (피에타 - 2012)




Não existe geração espontânea em filmes autorais. Esses filmes nascem da vivência do diretor/roteirista, e consequentemente tanto colhem os frutos como pagam o preço disso. Kim Ki-Duk nasceu na Coréia do Sul e levou uma vida muito dura, mal estudando (num país que preza muito o estudo) e trabalhando desde cedo na lavoura ou em fabriquetas de fundo de quintal (estas são muito bem retratadas em Pietà, aliás). Num arroubo de coragem, juntou tudo o que tinha, que mal deu para comprar uma passagem só de ida para Paris, e lá viveu como um pintor de retratos na rua. Viu O silêncio dos inocentes, seu primeiro filme na vida, na cidade-luz (tendo mais de 30 anos de idade), e que mudou sua trajetória para sempre. Aprendeu Cinema fazendo, com filmes de baixíssimo orçamento, e sempre enfrentando a ira e o desprezo da crítica e do público coreano (ele é um exemplo clássico do provérbio que diz que “ninguém é profeta em sua terra”, obtendo muito mais sucesso no exterior do que dentro de seu país). Uma vida de viés marginal com muita luta, rejeição, baseada na coragem, obstinação, e também na sua religião, sendo ele um cristão (o Cristianismo, com todas as suas ramificações protestantes, é forte e crescente na Coréia do Sul). Pietà é um filho direto desse homem e cineasta, como não poderia deixar de ser. Nele temos os traços característicos do diretor, já revelados em filmes como Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera, Casa vazia e O arco: O uso de silêncios, com personagens intensos mais taciturnos (quase sempre marginais na sociedade), apresentando o sacrifício pessoal como tema, assim como a busca por um perdão, tudo embalado por um ritmo lento e minimalista, que exige paciência e atenção do espectador. Seus filmes não chegam a ser por demais complexos, mas é inegável que seu público-alvo é restrito, numa época onde o espectador é acostumado por anos a receber adrenalina pura de filmes frenéticos. Enquanto em outros filmes o espectador sente-se como numa Ferrari a trezentos por hora, fazendo as curvas de lado, com Kim Ki-Duk é como se passeasse a pé por um horizonte silencioso e de pouca esperança, mas do qual o cineasta conhece muito bem.

Em Pietà acompanhamos a trajetória de Gang-Do (Lee Jung-Jin), um cobrador de agiota frio e muito violento, que não sente a menor dor na consciência de aleijar clientes desesperados, que não conseguem pagar os juros absurdos de seus empréstimos. Um homem implacável desses não parece ter nenhum calcanhar de Aquiles, por não ter nada a perder, sua vida é de um vazio existencial muito grande, até por não ter ninguém que se importe com ele, e vice-versa. Isso até aparecer a figura de Mi-Son (Jo Min-Soo, de ótima atuação), que assume-se como sua mãe que lhe abandonou quando Gang-Do era um bebê, e parece buscar seu perdão e aceitação. A trama, assim, passa a acompanhar o quanto Gang-Do aceitaria, ou não, uma figura materna dessas, e o que teria a ganhar e a perder com isto. E o quanto sua possível mãe aguentaria de maus-tratos de um filho abandonado por tanto tempo. Tudo isso embalado em um sub-texto de crítica ao Capitalismo, que segundo o diretor permitiria que pobres trabalhadores fossem explorados por figuras como Gang-Do, sem quase nenhuma defesa. Algo que ele cansou de ver em sua juventude.

Kim Ki-Duk conduz o filme com maturidade. É um de seus melhores filmes mas, estranhamente, também é um dos que apresenta um pior ritmo, cansando o espectador no que parece um filme um pouco esticado, e por vezes repetitivo. O começo do filme, muito impactante, apresenta algumas cenas de forte impacto, mas o miolo do filme perde um pouco o embalo e causa uma certa fadiga, mas os espectadores mais resistentes são premiados com um final significativo. Alguns traços do cinema de Kim Ki-Duk, que irritam certos grupos, continuam presentes: Os maus-tratos gratuitos contra animais, a misoginia ancorada até em agressões sexuais... Não é à toa que muitas feministas não o suportem em seu país, e que ele perca ainda mais público com isso. Talvez o Leão de Ouro em Veneza, conquistado por seu trabalho em Pietà, o primeiro prêmio de grande expressão de um filme coreano, melhore um pouco o cenário e a receptividade para Kim Ki-Duk, dentro e fora de seu país. Prêmio esse, aliás, que ele foi receber com seus tênis gastos, mesmo em um cenário tão imponente e em um momento tão importante para o Cinema de seu país. Assim como em seus filmes, na vida Kim Ki-Duk não pode, e nem quer ou aceita, fugir de si mesmo. Ele continuará sendo ele mesmo, para irritação ou fascinação de seus detratores e admiradores, respectivamente.

sábado, 6 de outubro de 2012

Dentro de casa (Dans la maison - 2012)



Sherazade é uma personagem histórica da literatura, por provar a força de uma narrativa instigante, bem contada, que sabe prender a atenção de quem a escuta. Através de sua criatividade, planeja impedir a sua própria execução após ter se casado com um sultão louco e vingativo, que sempre executa suas esposas ao amanhecer. Mas com Sherazade o sultão não consegue fazer isso, pois essa mulher fascinante o conquista com suas histórias, deixando-o sempre ansioso por ouvir a próxima (e Sherazade têm 1001 histórias para contar). Assim, lentamente, Sherazade o modifica, controlando sua fúria vingativa. Dentro de casa é como que uma versão moderna desta famosa história, com alguns outros desdobramentos. O estudante Claude Garcia (Ernst Umhauer), de apenas 16 anos, é como que a Sherazade para Germain, seu professor (Fabrice Luchini). Se Sherazade foi o antídoto para um sultão ferido pela traição de sua primeira esposa, Claude o é para um professor desgastado pelo desinteresse de seus alunos pela literatura. Em Claude, Germain volta a acreditar em um aluno seu e passa a ficar fascinado em suas histórias. No caso, elas não tratam de Aladim e sua lâmpada maravilhosa, ou de Ali Babá e seus quarenta ladrões, mas em o que acontece dentro de uma casa de classe média que Claude visita, onde vivem Rapha pai (Denis Ménochet), Rapha filho (Bastien Ughetto) e a esposa/mãe Esther (Emmanuelle Seigner). Logo Germain, apaixonado pela capacidade narrativa de seu pupilo, praticamente fará de tudo para deixar com que a história continue a se desenvolver, se colocando como presa fácil dos ganchos narrativos de Claude, que o conduz aonde quer com seu estilo literário.

François Ozon conduz, igualmente com estilo, esta sua adaptação da peça “El chico de la última fila”, de Juan Mayorga. O roteiro, também de autoria de Ozon, é o ponto alto do filme, sendo muito envolvente, e tendo em pouco tempo a capacidade de também prender o espectador na teia narrativa do jovem Claude, mal conseguindo destinguir o que é real ou invenção de Claude. O filme, inclusive, guarda semelhanças com Adaptação, dirigido por Spike Jonze (com roteiro de Charlie Kaufman), neste sentido de deixar o espectador um pouco perdido na tênue fronteira (talvez inexistente) entre realidade e ficção. A dupla de atores Ernst Umhauer, no começo de sua carreira, e Fabrice Luchini, um comediante já estabelecido há décadas (trabalhou muito com Eric Rohmer, inclusive), ilustra bem este confronto e comunhão de experiência e juventude, entusiasmo e desgaste, talento e mediocridade, dos dois personagens. O entrosamento entre os dois enriquece a já fascinante e caleidoscópica trama. As mais famosas Emmanuelle Seigner e Kristin Scott Thomas (que interpreta a esposa de Germain) lhes dão um ótimo amparo, com Seigner sendo uma espécie de musa inspiradora e Kristin agindo como uma crítica (e sexy) testemunha de todo o processo. Seigner já está a anos-luz de ser “apenas a esposa bonita de Roman Polanski” (rótulo que a perseguiu no começo da carreira), por seu extenso e respeitado currículo, e Kristin Scott Thomas mostra cada vez mais que se dá até melhor no Cinema francês do que no britânico ou americano (inglesa de nascimento, viveu boa parte de sua vida na França, daí seu francês perfeito). 

Mas o filme é do professor e do aluno, ou, se preferir, do diretor François Ozon e de nós, os espectadores, que também sofremos influência da narrativa dele, assim como acontece com Germain em relação a Claude. Dentro de casa mexe com o espectador, por remeter ao eterno e inescapável encanto que uma narrativa bem contada exerce nele. Desde tempos imemoriais, com os velhos sábios nas tribos, contando suas histórias noturnas para as crianças, até a geração da Internet e de seriados de TV importados, quem sabe contar uma história, e domina os instrumentos para prender a atenção de seu público, alcança um poder muito grande e é valorizado. Germain inclusive ensina didaticamente alguns truques narrativos a Claude (e por extensão ao espectador), mas sem o talento de Claude eles não passam de truques. Claude no filme, e François Ozon no Cinema, encarnam estes grandes narradores de todos os tempos, que sempre existirão (não importa a mídia onde trabalhem), e que sabem destes truques por instinto, e têm talento suficiente para conduzirem seus públicos como um titereiro comanda suas marionetes, levando-as para onde quiser e contando ainda por cima com a aprovação delas. E, assim, descobrimos que somos diretos descendentes do sultão de Sherazade, sempre pedindo para ouvir mais uma historinha. Ou mais de 1001 histórias, se for possível, porque nunca ficamos saciados, ainda mais depois de ouvir, e ver, uma história tão interessante.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Killer Joe – Matador de aluguel (Killer Joe – 2011)




William Friedkin é um cineasta interessado em gente. Disse inclusive, certa vez, que qualquer paisagem, por mais bonita que fosse, nunca teria a mesma relevância para ele do que o rosto de um Steve McQueen, por exemplo. Sua câmera crua, visceral, valoriza exatamente o trabalho dos atores e o consequente drama humano que eles evocam, muitas vezes retratando pessoas marginalizadas e/ou depravadas. Mesmo que sejam policiais, como o Popeye Doyle de Operação França, ou o Joe Cooper deste filme aqui, eles têm seus métodos sangrentos e costumam ser mais estúpidos e agressivos do que os bandidos.  Killer Joe – Matador de aluguel indica que Friedkin está de novo no auge da forma, mostrando que ainda vive o cineasta que marcou o início dos anos 70 com os enormes sucessos, de público e de crítica, de Operação França (filme que lhe deu o Oscar de diretor) e O exorcista.

O filme, uma adaptação da peça de Tracy Letts (com roteiro do próprio, na segunda parceria de roteirista e diretor, após Possuídos, de 2006), retrata uma família Smith, o sobrenome mais comum nos EUA, mas esta família é totalmente diferenciada das demais em sua amoralidade: Como estão na pior, desejam matar a mãe para receberem o seguro dela. O instrumento para isso é exatamente o Killer Joe do título, retratado brilhantemente por Matthew McConaughey, no que é até o momento o papel de sua vida. O ator, um grande amante da natureza, uma vez disse que queria reencarnar em um jaguar, por admirar seu senso de auto-controle, sua pose, e por considerá-lo o animal mais cool do mundo. De certa forma McConaughey faz isto no filme, com sua presença tranquila e ameaçadora, que sabe se mover sempre com estilo e determinação, cercando a presa com seu olhar de predador, e não deixando dúvida em ninguém de quem está no controle da situação. Por sua causa, o filme tem momentos de uma tensão quase irrespirável. Os outros atores estão um plano abaixo, mas não deixam a peteca cair. Thomas Haden Church (de Sideways) é o patriarca resignado de uma família esfarelada, e mal consegue entender o que ocorre à sua volta. Emile Hirsch é o filho que começa todo o processo, por dever dinheiro e correr grave risco de vida por isso, e Juno Temple, sua irmã no filme, é uma espécie de Cinderela enganosa, pura mas não muito, que atrai Joe Cooper sexualmente com sua pretensa inocência. A madrasta, interpretada por Gina Gershon (muito marcada negativamente, por anos, por ter atuado em Showgirls), é outra de atuação visceral, principalmente numa cena antologicamente chocante com Matthew McConaughey. O filme, aliás, é bom ressaltar, não é para os fracos de estômago, alguns podem até considerá-lo doentio. Têm nudez frontal, muita violência, e várias cenas são como um soco no estômago. É impossível o espectador ficar impassível ao assisti-lo. É um filme “ame ou odeie” por natureza.

William Friedkin, quarenta anos mais velho, talvez não tenha mais a mesma energia insana do começo de sua carreira, onde dirigiu Operação França quase como se fosse um filme de guerrilha, sem se preocupar com autorizações de filmagem ou o que fosse, inclusive filmando a clássica cena de perseguição de carros praticamente no meio de um tráfego real. Mas a sua carga ainda é de alta voltagem (principalmente em contraste com um cenário politicamente correto, como o atual) e pode eletrocutar os mais fracos. Até porque agora ele está mais maduro, e sabe canalizar esta energia e coragem inatas na busca de um cinema explosivo, e Killer Joe- Matador de aluguel é uma prova disso, um policial noir e underground que sacode o espectador como poucos filmes fizeram nos últimos anos. Sabendo segurar a tensão ao máximo, com um timing preciso que estica ao limite do humanamente possível a lentidão de uma cena muito tensa, e soltando-a com movimentos rápidos e alguns toques de comédia, Friedkin está tanto no comando externo do filme como Matthew McConaughey está dentro dele. Juntos e inspirados, fizeram um filme inesquecível, que pode não ser para todos os públicos, mas que é imperdível para amantes de um cinema que senta na cabeceira da mesa e sabe impor sua autoridade. Killer Joe – Matador de aluguel pode ser rotulado como um “filme de macho”, com toda a carga positiva, negativa e, por quê não dizer, antiquada, que esta expressão carrega. Ou talvez possa ser um filme de jaguar, que destroça as presas sem misericórdia e sem perder a pose. Mas com certeza é um filme de William Friedkin, daquele Friedkin dos anos 70 (e não o que perdeu a forma nos anos seguintes), o velho de guerra, um cineasta que parece mostrar que voltou com tudo, arrombando a porta, botando o revólver na mesa e perguntando o que tem pra comer, porque ele parece estar de novo com muita fome.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Martha Marcy May Marlene (2011)




O fim dos anos 60 e começo dos anos 70 tiveram dois casos muito famosos de grupos comandados por rebeldes enlouquecidos, que conseguiam dominar adolescentes descontentes e/ou abandonados por seus pais com uma boa dose de coerção psicológica, beirando a lavagem cerebral: O sequestro de Patty Hearst e a família Manson. Martha Marcy Mae Marlene de certa forma retrata uma mistura dos dois casos. Martha (Elizabeth Olsen) não é sequestrada como ocorreu com Patty Hearst (neta do milionário das comunicações William Randolph Hearst, justamente o homem que mais inspirou Orson Welles a fazer Cidadão Kane), pois entra de livre arbítrio no grupo alternativo capitaneado por Patrick (John Hawkes), mas sofre aos poucos a influência nefasta do grupo, passa a crer e repetir seus mantras e começa a perder até o sentido de sua própria personalidade, como aconteceu com Patty Hearst (que chegou a participar de roubos do bando, e foi presa por causa disso). Igualmente, o grupo aos poucos entra numa espiral de loucura que aponta para resultados cada vez mais violentos e paranóicos, e a família Manson chocou o mundo com assassinatos extremamente violentos como o de Sharon Tate, esposa de Roman Polanski e grávida dele, quando foi brutalmente espancada até a morte pelos comandados de Charles Manson.

Este filme dirigido por Sean Durkin, porém (em seu longa de estreia), foca mais na personagem Martha do que no entorno dela, o que pode frustrar parte do público. Ele apresenta duas características típicas do cinema atual: Os constantes saltos temporais, e a indefinição proposital dos acontecimentos. O diretor não ilustra com muitas cores o real objetivo ou filosofia do grupo, e nem o passado de Martha, que a levou a abandonar a sociedade para se juntar àquela estranha seita. Temos, em contrapartida, uma visão sempre distorcida, pois acompanhamos os pretensos fatos através dos olhos de Martha, que assustada abandona o grupo e tenta mudar de vida, e ela está longe de ser uma testemunha confiável. O espectador fica preso no meio deste jogo de gato e rato, onde é difícil distinguir o rato do gato. As perguntas constantes são: O que estamos vendo realmente aconteceu? Se sim, foi exatamente desta maneira? Esta insegurança acompanha o espectador do filme do princípio ao fim, o que pode ser enervante ou fascinante, de acordo com o perfil de quem assiste.

Martha Marcy May Marlene é uma obra aberta por natureza, e fascinante como estudo psicológico da personagem principal, com uma sólida interpretação de Elizabeth Olsen, irmã mais nova das gêmeas açucaradas Ashley e Mary-Kate, que cada vez mais encontra seu lugar ao sol. John Hawkes ( de Inverno da alma) também auxilia, com sua presença sempre soturna, tranquila mas amedrontadora, um ator cada vez mais estabelecido no cenário americano. E Sarah Paulson, interpretando a irmã de Martha, que tenta salvá-la de si mesma, cumpre sua sofrida jornada com competência. É bom ressaltar, porém, que como thriller o filme deixa a desejar, não necessariamente por incompetência do diretor, mas porque essa foi uma estrada que ele pareceu não querer trilhar com muito afinco, e é aconselhável que o espectador saiba disso de antemão. Por concentrar-se demais na personagem principal, por vezes o filme parece incompleto, anseia-se por mais informações, mas elas surgem a conta-gotas, e sempre fornecidas pelo filtro da visão dúbia de Martha. Muito por conta disso, ao final de tudo não é de todo improvável que o espectador acabe de ver o filme tão paranoico quanto Martha.