Mostrando postagens com marcador Andrei Tarkovsky. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Andrei Tarkovsky. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sudoeste (2012)




Sudoeste é um projeto de dez anos, que o diretor Eduardo Nunes acalentou e confeccionou como um ourives faz uma joia, com carinho e atenção. Sente-se que cada plano foi muito bem pensado, o esmero acompanha todo o filme, que segue um fluxo contemplativo, poético  e meditativo difícil de ver em um filme brasileiro. Limite, de Mário Peixoto, é um filme que salta à mente quando se assiste Sudoeste, por seu ritmo, composição, e até por aspectos como ambos terem sido filmados em aldeias primitivas de pescadores (neste filme aqui, uma abandonada em Pontal de Massambaba, perto de Arraial do Cabo), o que gera inclusive algumas imagens muito semelhantes. A obra de Tarkovsky, principalmente Stalker, Solaris, O espelho, O sacrifício e Nostalgia também remetem ao filme pela forma com que Eduardo Nunes trabalha o tempo em seus longos planos, assim como a de Béla Tarr em seu enorme Sátántangó e Werckmeister Harmonies e a de Theo Angelopoulos, mais notadamente em Os atores ambulantes. Isso não quer dizer, porém, que o filme seja uma cópia desses filmes e diretores, longe disso, Sudoeste tem personalidade própria, é um filho direto do diretor, que como todo mundo, não pode (e nem conseguiria) negar suas influências e paixões, mas que consegue mesmo assim assinar sua obra com seus tons pessoais. E é uma obra de impacto, que deve dar orgulho de assinar.

O elenco conta com Simone Spoladore, Raquel Bonfante e Regina Bastos (as três interpretando Clarice, em estágios diferentes de sua curta vida), Dira Paes, Mariana Lima, Léa Garcia (atriz veterana desde os tempos de Orfeu do carnaval, que atua como a bruxa), Victor Navega Motta (o menino João) e Julio Adrião (Sebastião). Todos atuam muito bem, em compasso com o ritmo do filme. A vida estranha de Clarice, que dança entre o imaginário, o onírico e o fantasmagórico, ao durar apenas um dia naquela aldeia, causa reflexões no espectador da transitoriedade da vida e da sensação de destino. Ela, em toda a sua inocência de quem nada sabe (nem mesmo como é a chuva), plaina sobre os demais, e saboreia sensações de que quem vive normalmente já se acostumou a desprezar ou a não reparar mais. As atrizes que a interpretam, assim como todos os outros atores, auxiliam no olhar filosófico desta misteriosa obra. Mesmo assim, ao contrário de muitos filmes, aqui os atores não são tão centrais à obra, são componentes de um todo, que agrega elementos como a trilha sonora, a edição precisa, os sons (que ajudam até na fugidia percepção de tempo) e, claro, a fotografia.

Em Sudoeste, assim como aconteceu com Limite (entre Mário Peixoto e Edgar Brazil), a parceria entre diretor e diretor de fotografia é vital para o filme, é o que o destaca e a razão mesmo de ser da obra. Não é absurdo nenhum considerar Mauro Pinheiro Jr. (de trabalhos como Cinema, aspirinas e urubus, Mutum e Linha de passe) como uma espécie de co-autor do filme. Sua fotografia em preto e branco, granulada, de recorte 3:66 (que torna a imagem mais horizontal ainda do que o antigo Cinemascope) realça a poesia de um filme nostálgico e poético como poucos, a ponto de ser quase impossível imaginá-lo a cores e num tamanho tradicional. A beleza de cada frame salta aos olhos, e talvez até fosse adequada a exibição de Sudoeste não só em cinemas (é um luxo vê-lo em tela grande) como também em museus. Talvez o público fosse até mais adequado, no sentido de que costuma estar com a mente mais aberta do que o espectador normal de um cinema, mais propenso a aceitar e se deleitar com uma obra lenta e contemplativa como Sudoeste. Sim, talvez este seja um “filme-museu” por natureza, não por ser antigo ou coisa que o valha, mas por merecer um público mais disposto a aceitá-lo, a embarcar numa nova e diferente viagem, como costuma ser o público que visita um museu. Não há como negar que Sudoeste, mesmo com toda a sua beleza, tem sua forte contra-indicação para um público tradicional, acostumado a filmes narrativos, de cortes rápidos e muita adrenalina. Não é nada difícil imaginar este público caindo no sono ao tentar assistir o filme. Ressaltar isso pode afastar uma parcela do público, em tese parece machucar o filme, mas também o defende de ataques venenosos de quem não está acostumado ao tipo de experiência que ele proporciona (não é questão de inteligência do espectador de forma alguma, e sim de hábito cinematográfico. Quem está acostumado a assistir filmes de Tarkovsky, Antonioni, Béla Tarr e Cia., assiste Sudoeste facilmente. Quem não está, “briga” contra o conceito do filme desde o início). Sudoeste é para filósofos, cinéfilos hardcore, intelectuais em geral, que têm tudo para apreciá-lo como ele é. É champagne, é caviar, e não cerveja ou pipoca. Não é, nem pretende ser, um filme popular. Ele tem o seu público-alvo, e é o típico filme que divide crítica e público. E ambos têm suas razões para amá-lo ou repudiá-lo. Cabe a cada espectador saber onde se posicionar.

Feita esta ressalva, é razoavelmente nítido que Sudoeste logo entrará em muitas listas de “melhores filmes brasileiros do Século XXI”. Talvez até entre em listas mais abrangentes do que essa... O filme encantou por onde passou, ganhando diversos prêmios mundo afora, sendo que o mais adequado de todos foi o prêmio Andrei Tarkovsky no Festival de Zerkalo, que é o título em russo do filme O espelho. Quase como se o ídolo do diretor o congratulasse... É possível vislumbrar um futuro muito promissor de Eduardo Nunes, que antes já tinha se destacado por seus curtas (este é seu longa de estreia), e segue um viés filosófico pouco visto em nossas terras, talvez só encontrando semelhanças recentes com o Cinema de Luiz Fernando Carvalho. Como Clarice em relação à sua aldeia, Sudoeste parece não pertencer muito ao cenário nacional, não parece um filme brasileiro, mas é muito bem-vindo e traz uma maior percepção ao que não estamos acostumados a olhar, nos transformando todos em Clarices satisfeitas por aproveitar este dia repleto de experiências. Soprou um vento sudoeste no cinema brasileiro, trazendo com ele um novo clima e uma lembrança de quem nós fomos, somos e podemos ser. Ou podíamos ter sido. É só fechar os olhos e imaginar o que vai acontecer...

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Post tenebras lux (2012)




Luz após a escuridão. Seria essa, de certa forma, a tradução para o português do título em latim do filme. Mas não é exatamente essa a impressão que fica ao término do filme, para a quase totalidade dos espectadores. Isso porque o diretor Carlos Reygadas, como vêm deixando claro em sua curta filmografia (Luz silenciosa Batalha no céu, entre outros), não pretende realmente deixar nada tão claro assim. Ele despreza o cinema narrativo, e afirma que o Cinema deve ser livre, mais parecido com a música no sentido de evocar sentimentos, do que como um veículo para se fazer uma espécie de teatro filmado ou literatura em imagens. É uma postura que ele carrega em Post tenebras lux, e que pode incomodar muito a uma parte do público desacostumada a um filme com um fiapo de enredo, e composto de várias cenas que por vezes parecem desconexas. 

Curiosamente, é possível se absorver mais o significado do filme pesquisando sobre o diretor, após o filme, do que simplesmente assistindo Post tenebras lux. Sente-se que se trata de um filme com viés autobiográfico, e saber que o diretor jogou Rugby a ponto de ser membro da seleção mexicana, que morou 12 anos na Europa (Bélgica, Espanha e Inglaterra), que trabalhou como advogado, que descobriu sua nova paixão ao ver filmes de Andrei Tarkovsky e Michelangelo Antonioni, e acha vital trabalhar com não-atores e com locações naturais (quase no estilo Dogma 95 mesmo), ajuda a dar um mínimo de sentido ao que se viu. Mas tais informações tanto podem servir como algo complementar ao filme, para muitos espectadores, como até algo desnecessário, para outros, pois no filme de Reygadas a emoção que cada cena traz a quem a assiste pode importar mais do que a compreensão do todo que ele poderia vir a ter.

É nítido que um filme como Post tenebras lux vai se fazendo naturalmente, através da escolha dos atores (estreantes no Cinema) para viverem seus personagens, pela descoberta de locações, pelos sons desses lugares... Assim como a fotografia utilizada, que por várias vezes foca apenas no centro, desfocando nas beiradas da imagem, passando uma ideia de imagem onírica, talvez egressa de uma memória infantil. A fotografia de Alexis Zabe (que também trabalhou brilhantemente em Luz silenciosa), aliás, é um desbunde, e valoriza muito o filme, principalmente por ele focar tanto na experiência sensorial do público, e não do que ele apreende de um roteiro. Todos estes elementos são fundamentais para o diretor se expressar na tela, e ele o faz através de várias cenas rurais, onde o embate civilização versus natureza é constante, e a sexualidade e a brutalidade são naturais como o nascer e o pôr do Sol. Carlos Reygadas é um diretor autoral como poucos, daqueles muito mais interessados em fazer os seus próprios filmes do que ver os filmes dos outros. A base de seu Cinema não é cinematográfica, como é tão comum em tantos diretores, mas sim pessoal, calcada em sua vida, e não do que viu em filme X ou Y.

Ao final da experiência, porém, devido à filosofia do diretor, é difícil não ficar com a impressão que Post tenebras lux é um filme formado por várias cenas muito belas, mas que formam um todo estranho, desconexo, insatisfatório, incompleto. Algo muito raro de se ver por aí, mas que parece que tende a se tornar comum no cinema extremamente pessoal e íntimo de Carlos Reygadas. Um roteirista tradicional poderia auxiliá-lo a criar um filme mais coeso e compreensível, mas Reygadas fugiria dele como o diabo foge da cruz. A busca de uma maior clareza para “ajudar” o público traria exatamente a morte de seu Cinema tão pessoal e intransferível, que se encontra na natureza, na escuridão, na penumbra, e não na luz e num saber estabelecido. Um Cinema de um homem único, feito para poucos (dentre eles, o Júri de Cannes, que lhe deu o prêmio de melhor diretor por este filme), e ignorado e/ou incompreendido por quase todos. Um Cinema que encanta, decepciona, atordoa e desnorteia. E que não pode ser repetido, com seus méritos e falhas, por mais ninguém. Difícil ser mais autoral que isso.