quarta-feira, 29 de junho de 2011

Quando fala o coração (Spellbound – 1945)


Entre as muitas ironias do Oscar, está a de reconhecer filmes menores de grandes diretores e ignorar os seus filmes mais relevantes. “Quando fala o coração” foi indicado a melhor filme e diretor de 1945, um dos dois únicos filmes Hitchcockianos a conseguir essa dobradinha (o outro foi “Rebecca”).  Foi um dos primeiros filmes a tratar de psicologia como tema central, e se tornou um sucesso de público e crítica na época. O ineditismo do tema ajudou a tornar isso possível, assim como a presença da consagrada Ingrid Bergman e do então novo astro Gregory Peck (seu primeiro filme de destaque, “As chaves do reino”, tinha sido lançado um ano antes), e com uma pitada adicional de Salvador Dalí para adoçar a boca dos mais intelectualizados.

Porém, visto hoje, é nítido que este filme é um Hitchcock menor, com muitos altos e baixos, errático mesmo. E que envelheceu mal. A culpa principal disso é justamente do tratamento dado à psicologia. Mesmo para leigos, fica bem clara a superficialidade com que ele é tratado, com conclusões imediatas sendo atingidas, sendo tudo por demais explicado e sem deixar margem à menor dúvida, com resultados milagrosos aparecendo em pouco tempo e apresentando um desempenho nada profissional da parte da personagem da Ingrid Bergman. O filme força a barra o tempo todo nesse sentido, o que torna a trama claudicante, por vezes. Hitchcock depois reconheceu que tratou o filme como “mais uma caçada humana envolta em pseudo-psicanálise”, e essa informalidade em relação ao tema tornou o filme um pouco ridículo em alguns momentos.  Diga-se de passagem, o filme é praticamente irmão-gêmeo de “Marnie”, feito quase 20 anos depois, que apresenta o mesmo tratamento raso do assunto, e com uma trama muito semelhante inclusive nos sintomas apresentados pelos “pacientes” (e, consequentemente, um filme que repete quase que os mesmos defeitos de “Quando fala o coração”).

Felizmente, tinha muita gente de talento envolvida, e com isso o filme tem também seus momentos sublimes, como a cena em que Gregory Peck está com uma navalha na mão, ou na cena final do revólver na frente da tela, que apresenta até 3 frames coloridos, de muito impacto. A fotografia trabalha muito bem com sombras e cria uma ótima ambientação para o filme. E quando Hitchcock volta a ser Hitchcock e se livra das amarras da psicanálise e trata de suspense, o filme avança. Ingrid Bergman e Gregory Peck tem desempenhos apenas corretos, mas felizmente Leo G. Carroll (ator que Hitchcock utilizou diversas vezes) e Michael Chekhov estão muito bem e mostram a importância de se contar com bons atores coadjuvantes. A sequência de sonho, concebida por Salvador Dalí, é o ponto alto do filme, e só existiu por insistência de Hitchcock (contra o julgamento de David O. Selznick, que era contra os gastos envolvidos), apesar de que quem a dirigiu e fez funcionar foi mesmo William Cameron Menzies (que não quis ser creditado), o eterno às da manga de Selznick desde “E o vento levou”.  A trilha sonora de Miklós Rózsa também é muito marcante, com o uso do Theremin acentuando a “loucura” do personagem de Gregory Peck. Rózsa ganhou o único Oscar do filme e também uma certa inimizade tanto com Hitchcock como com Selznick, que brigaram muito com ele e não gostaram do resultado final. Hitchcock inclusive julgou a trilha muito espalhafatosa, roubando um pouco a cena em alguns momentos (o que não deixa de ter razão, apesar de ser muito bela). Nunca mais trabalharam juntos.

Esse é o filme de maior destaque da carreira de Michael Chekhov, que era sobrinho do ilustre dramaturgo Anton Chekhov. Ainda na Rússia se aliou a Stanislavski, que o considerava um gênio. Ao emigrar para os EUA, acrescentou imaginação e movimento uma noção de criatividade subconsciente às táticas de atuação de Stanislavski, conseguindo grande sucesso junto a muitos atores americanos (como pupilos ele teve os próprios Gregory Peck e Ingrid Bergman, além de Gary Cooper, Elia Kazan e Clint Eastwood, entre muitos outros). Muito respeitado no meio, teve pouco destaque no Cinema, porém, e recebeu sua única indicação ao Oscar (como coadjuvante) por esse filme.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A dama das camélias (Camille - 1937)

Um dos filmes mais conhecidos com a Greta Garbo (e o favorito dela), essa versão do livro clássico de Alexandre Dumas Filho pode não ser lá muito fiel ao livro, mas sem dúvida é ainda a versão mais conhecida e respeitada até hoje. O filme é da MGM e isso se mostra desde cedo, com os sets luxuosos e a história bastante glamourizada.

De certa forma, o filme começa em marcha lenta... Greta Garbo demora a entrar em seu papel e abusa um pouco dos sorrisos e de sua simpatia a princípio, que contrastam um pouco com a Marguerite Gautier do livro. A personagem sorri demais e é muito “leve”, não carregando junto com ela a melancolia e tragédia da personagem literária. Robert Taylor, como Armand Duval, em seu melhor papel no cinema (ao qual ele credita muito a ter contracenado com a Garbo), é quem segura esta parte inicial, com seu romantismo latente que, se em outros filmes é exagerado, neste encontra o seu apropriado nicho. Os outros personagens também estão ótimos, como Laura Hope Crewes, que era respeitadíssima no teatro e que impunha respeito e temor até em Bette Davis (mas que hoje só é lembrada, quando muito, como a tia Pitty de “E o vento levou”) e Henry Daniell, inaugurando a sua longa linha de “vilões” no cinema. O cinismo dele é perfeito e seu drama ajuda a dar muita força ao filme (até porque compreendemos, em parte, a sua frieza). George Cukor também mais uma vez demonstra que sabia comandar atores (principalmente atrizes), conduzindo o filme com elegância. Mas a coisa toda não convence inicialmente, como se o filme ficasse esperando pela Greta Garbo finalmente engrenar.

Felizmente, na segunda parte do filme a Greta Garbo pára de bater o ponto e desperta, retomando as rédeas da situação, atuando em algumas cenas memoráveis (a melhor delas no dramático encontro com Lionel Barrymore, em um pequeno (mas importante) papel). Por este filme ela foi novamente indicada ao Oscar, mas de novo não levou (aliás, nunca levou – quatro indicações e todas saindo de mãos vazias). É covardia comparar o filme com o livro, ainda mais levando-se em conta que foi filmado na década de 30, com todas as restrições da censura existentes (o que complica muito em uma história sobre uma cortesã), mas o fato é que no segundo terço de “A dama das camélias” o filme não fica devendo nada ao livro, o que é ótimo sinal. Há, sim, um comprometimento na cena final, uma glamourização exagerada (e desnecessária), que retira a força do final do livro, mas, de novo, é um sinal daqueles tempos, quase uma exigência do público e dos estúdios. Aliás, é curioso que um livro do Século XIX seja, em diversas partes, bem mais ousado que um filme feito quase cem anos depois!

No geral, é um dos grandes clássicos da Garbo e um romance de respeito, açucarado sim, mas feito com inteligência. Uma prova do que um grande elenco era capaz de fazer, principalmente quando estava inspirado. Talvez a versão definitiva de “A dama das camélias” ainda esteja para ser feita mas, até lá, a pole position é deste glamouroso filme de 1937.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Heróis esquecidos (The roaring twenties - 1939)

Um glorioso representante dos filmes de gângsters, e um filme que praticamente fecha este ciclo do cinema, fazendo uma análise global do que tinha acontecido nos “insanos anos 20”. O filme faz uso de algumas partes documentais (com uso de uma narração bem parcial, claro) que dinamizam a narração e explicam, melhor do que qualquer outro filme do gênero, a época retratada. Este “olhar para trás” é o que torna o filme único entre os filmes de gângster dos anos 30.

O fato de ser estrelado por James Cagney é a cereja do sundae, já que ele é um dos atores-símbolo deste cinema tão impactante (e este tipo de papel já tinha marcado a sua carreira para sempre). Ele está ótimo como o gângster de bom coração, em um papel muito similar ao seu de “Anjos de cara suja”, já que é uma vítima do destino que fica no meio do caminho entre seu correto e ético amigo de guerra Jeffrey Lynn e Humphrey Bogart, ainda nos seus papéis de vilão coadjuvante (mas ganhando cada vez mais destaque – o estrelato não estava longe para o Bogie). Priscilla Lane cumpre com louvor o papel de musa do filme, com direito a cantar “It had to be you” fazendo biquinho, o que enlouquece o James Cagney e a qualquer um com um mínimo de sangue nas veias. Mas mesmo o James Cagney, que não é qualquer um, fica um pouco eclipsado pelo Bogart, em um papel muito forte e pragmático, não confiando nem em sua sombra, e principalmente por Gladys George, que é a alma do filme como Panamá Smith, sempre apaixonada e desiludida, mas com fibra para resistir aos “roaring twenties” e ao que mais viesse pela frente.

O filme não esconde uma certa ingenuidade... as cenas de guerra são claramente filmadas em estúdio (salta aos olhos isso) e o mesmo pode ser dito nas cenas de assalto de barco, onde é óbvio até para uma criança de jardim de infância que tudo aquilo é em miniatura. Mas relevando-se isso temos várias cenas clássicas, um elenco de peso em ótima forma, os costumazes diálogos cortantes típicos da Warner Brothers e, claro, James Cagney duelando com Humphrey Bogart, com um final-ícone do gênero e da época... 1939 foi talvez o auge do cinema clássico americano, e esse filme aqui, que nem é dos que primeiro lembramos quando este ano vêm à mente, é uma prova cabal disto.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O espírito da colméia (El espíritu de la colmena - 1973)

Considerado por muitos como o maior filme espanhol da década de 70, “O espírito das colméias” por vezes sofre um pouco justamente por causa de tamanho cartaz. Não porque não o mereça, mas porque um filme de foco pequeno, humilde e com um ritmo lento não raro é recebido com certa decepção por um público que normalmente associa a noção de um “grande filme” a um “grande espetáculo”. Cinéfilos de plantão sabem que pequenos filmes podem também ser “grandes” (como “Desencanto”, “Sonata de Outono” e tantos outros provam), e neste sentido o filme é de grande vulto. Victor Erice, em apenas seu segundo longa, resolve retratar a infância de duas meninas em um cenário triste e moroso do interior da Espanha no ano de 1940, quando Franco já tinha se consolidado no poder. Vivendo uma ditadura mais brutal do que a que vivíamos no Brasil (apesar de moribunda – Franco morreria poucos anos depois), Erice consegue realizar um filme alegórico que possibilita muitas leituras (o único jeito de se escapar de uma censura implacável), mas cujo extrato é mesmo de crítica ao regime e, por que não, de associação da figura do generalíssimo com a do monstro de “Frankenstein”, de James Whale (até os nomes são parecidos...).

Entretanto, isto não quer dizer que o filme seja político (até porque não poderia ser). Longe disso, o tema principal versa sobre as agruras da infância, o que é muito ressaltado pelo fato da personagem principal do filme ser um achado, pois Ana (interpretada por Ana Torrent – todos os personagens do filme tem os mesmos nomes dos atores que os interpretam – e que depois seria aproveitada por Carlos Saura no também marcante “Cría cuervos”) não é uma menina típica de anúncio de margarina, ou seja, aquela criança sorridente e cantante (e, por isso mesmo, um pouco irritante em sua falsa perfeição). Ana Torrent escapa instintivamente desta classificação, pois tão nova já demonstra em seus grandes olhos todo o tédio de uma vida interiorana aliado a uma curiosidade inata, atiçada ainda por assistir ao “Frankenstein”, no que claramente é um grande evento na minúscula cidade. Mesmo sofrendo um pouco por conta de sua sádica irmã mais velha, Ana conhece aos poucos um pouco mais da realidade que a cerca, ao mesmo tempo em que mistura ficção com realidade em sua confusa cabeça. Não há neste filme um enredo elaborado, com grandes diálogos e ação intermitente. Muito pelo contrário, a base deste filme é claramente a poesia, e não a prosa, o que pode incomodar boa parte dos espectadores não acostumados com semelhante narrativa. É um filme muito mais próximo de “Limite”, de Mário Peixoto, ou “O homem de Aran”, de Robert Flaherty, do que de um cinema convencional. Neste sentido é de fundamental importância a fotografia de Luis Cuadrado, que capta a solidão e o tédio da vida no interior, alternando imagens de interior (algumas com um filtro dourado emulando a cor do mel) e muitos closes em Ana Torrent com paisagens vastas dignas de um John Ford (por um grande infortúnio, Luis Cuadrado estava já ficando cego durante a realização do filme, e anos depois cometeu suicídio justamente porque não conseguia aceitar a cegueira, cruel demais para um homem de sua profissão e de seu talento). Desta feita, com a ajuda de Cuadrado, o que Victor Erice pretende (e consegue com maestria) é exibir este painel de uma vida no interior naquela época, além de mostrar como era uma verdadeira infância naquelas condições. Em uma era de Internet e de milhões de brinquedos e atividades para as crianças, pode ser difícil se compreender isso, mas para uma menina como Ana os dias se arrastavam, com pouco para se fazer ou brincar, e ver um filme tão fascinante como “Frankenstein” era um evento suficiente para realmente mudar a sua vida. O diretor ainda consegue enfatizar tal solidão ao jamais enfocar a família da menina junta, pois mesmo nas cenas de jantar cada membro é mostrado sozinho, não há um plano geral – detalhes que podem passar desapercebidos pelo público, mas que muitas vezes ajudam a ressaltar o clima reinante no filme.

Esse é o grande mérito de Victor Erice, ele acerta desde o princípio, ao mostrar a chegada de “Frankenstein” na cidade, o vazio que é a vida dos pais de Ana e, claro, ao focar a própria Ana com um carinho que poucas vezes diretores conseguem com crianças. O diretor, por exemplo, consegue, entre outras coisas, filmar Ana Torrent realmente assistindo o filme “Frankenstein” pela primeira vez na vida, junto com todas aquelas crianças, e a imagem de seu rosto expressando medo e curiosidade simbolizam o que seria o filme de Erice daquele momento em diante. A menina sorri apenas uma vez no filme inteiro, e está quase sempre com um semblante sério ou triste, mas mesmo assim é encantadora, um imã para os nossos olhos, talvez até por nunca interpretar, ela apenas e tão-somente é aquela Ana (é possível que apenas uma criança tão nova consiga realizar inteiramente este que é o sonho de qualquer ator). O final do filme, emulando a famosa cena (por tantos anos censurada) do filme de James Whale é tão lírica, sutil e tocante que pode chegar a causar inveja em muitos cineastas.

Seja encostando a cabeça nos trilhos de uma ferrovia, auxiliando um combatente ferido, escolhendo cogumelos ou sendo aterrorizada por sua irmã, Ana aos poucos cresce e começa a descobrir o quão fascinante pode ser o mundo, desde que não se tenha medo para descobrir isto. Na sua varanda, ao final, está todo o seu futuro, que terá que enfrentar de qualquer maneira naqueles tristes anos 40, o mesmo futuro que uma Espanha, décadas depois, finalmente observaria, com certo receio mas abundante esperança, depois da morte daquele que foi certamente um ditador muito mais assustador que o monstro de Frankenstein.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Hell's hinges (1916)

É estranho se analisar um western de 1916, talvez até por estar tão próximo da própria época que retratava, que hoje nos parece tão distante. Era tudo ainda bem recente e não tão “histórico” assim. Para se ter uma idéia, este aqui fez parte de uma verdadeira leva de westerns produzidos no esteio do cinqüentenário da Guerra Civil americana, e seu astro, William S. Hart, inclusive nascera nesta época (em 1864) e era amigo íntimo de Wyatt Earp! A coisa toda é tão antiga que John Gilbert, depois famoso por suas parcerias com Greta Garbo, neste filme é só um extra (reconhecível, por sinal)...

O que surpreende é que o filme não é muito convencional, ele sai um pouco daquele esquemão industrial de westerns de um e dois rolos da época (até pela metragem, pois trata-se de um “longa” de 64 minutos). A parte besta, digamos assim, fica por conta de parte da trama, que trata de um padre e sua irmã tendo que cuidar de uma paróquia em uma cidade corrompida do velho oeste, com tudo bem esquemático, claramente dividido entre os “bons” e os “maus”. William S. Hart a princípio é o maior dos vilões, mas muda de casaca instantaneamente ao ver a tal irmã do padre (Clara Williams, que fez muitas parcerias com Hart), e enxergar toda a bondade do mundo nela... ou seja, é complicado engolir mudança tão súbita no personagem dele. Mas relevando-se isso, o filme tem muitos méritos. A começar pelo próprio William S. Hart. Ator egresso dos palcos (atuava até em peças de Shakespeare) e dos primórdios do cinema (foi o Messala do “Ben-Hur” de... 1907!), e com todo este “background” do velho oeste nas veias, ele tinha um grande carisma e naturalmente entendeu que o ideal seria não aderir às caras e bocas tão comuns das atuações da época. Geralmente ele está com a cara dura, bem séria, convincente como um homem de ação, a ponto de, mesmo em um filme em que só “apresenta serviço” no final, sempre nos convencer de que é capaz de botar pra quebrar. É uma espécie de John Wayne do cinema mudo: Gostamos dele, mesmo quando não faz nada demais. Ele convence só pelo seu semblante. E o fato dele ter 52 anos na época das filmagens é impressionante, o homem deve ter descoberto a fonte da juventude e não contou para ninguém, porque ele aparenta muito menos, estava em ótima forma.

Mas o que chama mesmo a atenção no filme, e o faz valer a pena ser assistido, é seu tom pessimista e, principalmente, ousado. O padre, por exemplo, é um fraco, um péssimo pastor de almas que, em pouco tempo, cede às tentações, vira um bêbado e começa a ter relações com as prostitutas da cidade (e isso é mostrado explicitamente, com ele na cama com uma delas)! E, ao final, William S. Hart salva a mocinha sim, mas praticamente só isso, não há uma redenção ou sequer um “final feliz”. Inclusive, o final do filme é muito forte, tendo até uma longa cena de uma construção em chamas que muito remete a “O sacrifício”, de Tarkovsky, e com eventos que lembram os finais de filmes como “O estranho sem nome” e “Os imperdoáveis”. Em termos de ousadia, trata-se de um filme mais avançado do que praticamente toda a produção americana no gênero até os anos 50! Só mesmo nos anos 60, com Sam Peckinpah (e com os italianos, liderados por Sergio Leone) que o western voltaria a ter este enfoque mais selvagem que se observa em “Hell’s hinges”.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Laura (1944)

Será que existe algum filme tão elegante quanto “Laura”? O charme desse filme atravessa décadas e permanece irresistível. Nunca Gene Tierney esteve tão bonita e sofisticada, a fotografia (oscarizada) de Joseph LaShelle é suave e vital para a trama, que diga-se de passagem é de primeira linha... vários diálogos são de um “wit” digno de um Oscar Wilde inspirado... e a maioria deles ironicamente ditos pelo Waldo Lydecker de Clifton Webb, fácil um dos personagens mais marcantes tanto do cinema noir quanto do próprio cinema como um todo.

A música, então, é covardia... se mistura ao filme, um não existe sem o outro. O mais incrível é que David Raksin a compôs em um único final de semana, na correria (inspirado por uma carta em que sua mulher o abandonou), e ainda tendo que convencer Otto Preminger e os produtores de que a sua música seria perfeita. É uma das grandes trilhas do cinema, bela, profunda e envolvente, das que não esquecemos jamais. Hedy Lamarr, anos depois, reclamou que dispensou fazer o filme, a princípio, porque lhe tinham enviado o script, e não a trilha sonora...

Mas foi bom a Hedy Lamarr ter pulado do barco. Isto porque Gene Tierney nasceu para ser Laura. A sua beleza e elegância (desculpem pelo abuso deste adjetivo, mas é difícil fugir dele quando se fala de “Laura”) justificam todos aqueles homens ao redor, ela é tão fascinante que nos convence que mesmo um homossexual assumido como o Clifton Webb poderia ficar obcecado por ela. Aliás, este é um dos grandes trunfos do filme: Os personagens são ricos, ambíguos, não há um clichê gratuito no filme. Laura é uma musa mas tem personalidade, coleciona homens, mente, e ao mesmo tempo é claramente bondosa e feminina. Mark, o detetive interpretado por Dana Andrews (um ator limitado, mas que participou de vários clássicos nos anos 40 – devia ter um bom agente) é calmo, controlado, mas também tem seus momentos de raiva, e termina por se apaixonar por uma defunta. Vincent Price e Judith Anderson interpretam personagens cínicos, fracos, que conhecem seus defeitos e tem, por isso mesmo, um certo magnetismo por trás de suas pretensas superficialidades. E Waldo Lydecker, magistralmente interpretado por Clifton Webb (no papel que marcaria toda a sua carreira) é rico, cínico ao extremo, mordaz, frio, mas que também enlouquece sob os encantos de Laura (sejamos sinceros também: Quem não enlouqueceria?).

Otto Preminger teve uma carreira de altos e baixos, mas aqui ele acertou na mosca, claramente é sua obra-prima. Ele assumiu o filme que era de Rouben Mamoulian, jogou tudo o que fora filmado fora, desprezou o script original (que tinha um final diferente e decepcionante) e soube conjugar todos os elementos do filme com maestria, construindo um clássico de marcar época.

“Laura” tem uma certa similaridade com “Casablanca”, na medida em que eram dois filmes “B” que acabaram, por circunstâncias fortuitas, ganhando um tratamento “A”, com elenco e diretores de respeito, que se acertaram quase que por mágica. Esta é uma das graças do cinema, de vez em quando tudo dá certo e ninguém sabe explicar direito como tudo aquilo aconteceu. Sem dúvida, “Laura” foi favorecido pelos deuses do cinema, e, por extensão, foram agraciados todos os amantes dos grandes filmes, de ontem, hoje e sempre.

Uma rua chamada pecado (A streetcar named desire - 1951)

Em um caso raro em Hollywood, a Warner Brothers aceitou adaptar a famosa peça de Tennessee Williams, "A streetcar named desire", seguindo quase que fielmente os pedidos de Elia Kazan, diretor já renomado no cinema (tinha até recebido um Oscar por "A luz é para todos"), que também alcançara grande sucesso no teatro justamente dirigindo esta peça, que marcou época na Broadway. Kazan conseguiu contratar diversos profissionais de outros estúdios para trabalharem no filme, o que ainda era bastante inusitado no começo da década de 50. Por extensão, vários atores também repetiram seus papéis no filme, como Marlon Brando, Kim Hunter e Karl Malden. A exceção ficou por conta de Jessica Tandy (que demoraria a marcar seu nome no cinema, em filmes como "Os pássaros" (1963), e no que lhe deu seu oscar, "Conduzindo Miss Daisy" (1989)), que foi barrada para a chegada de Vivien Leigh, a grande estrela de "...E o vento levou", que poderia trazer mais público para o cinema com a sua fama.

O filme, ridiculamente chamado de "Uma rua chamada pecado" no Brasil, tornou-se, por conseguinte, uma das mais felizes adaptações de uma obra teatral da história do Cinema. A força da peça de Tennessee Williams foi mantida, apesar das restrições da censura na época. Por conta do famigerado Código Hayes, o homossexualismo de Allan, o marido suicida de Blanche, foi ocultado no filme, e o final também foi alterado, já que um criminoso sempre tinha que ser punido no final de um filme americano desta época. Entretanto, como posteriormente ressaltou o próprio Elia Kazan, estas alterações não mudaram em quase nada o significado da história, já que o público poderia entender perfeitamente o que estava acontecendo. E o que o público via na tela (e nos palcos), poucos autores tinham a capacidade e a ousadia de mostrar – e com certeza Tennessee Williams era um deles.

Em um cenário de constante ilusão, embalada por um clima otimista pós-guerra simbolizado pela geração baby boomer, Tennessee Williams teve a sagacidade de enxergar a falsidade da suposta jóia de perfeição que o american way of life tentava vender ao mundo. Blanche du Bois, desta feita, cujo nome pode ser traduzido como “Branca do bosque”, é exatamente uma Branca de Neve sempre vestida de branco e supostamente indefesa (mas com um passado que a persegue), que foge da realidade como o diabo foge da cruz (não à toa, Hollywood simbolizava exatamente esta fuga da realidade). A própria fazenda da família, que ela perde, se chamava Belle Reve (belo sonho) – mostra do forte simbolismo das obras do autor. Quando chamada (e forçada) à luz, seus ideais e sua própria sanidade desmoronam – uma análise próxima logo desmascara seu faz-de-contas, como se vê na clássica cena que Mitch finalmente a confronta. Stanley Kowalski é o filho de imigrantes poloneses (povo historicamente gozado como burro pelos americanos), um homem bruto, de óbvio apelo sexual, estúpido e vingativo, que teme pelo seu casamento com a chegada da irmã de sua mulher à sua casa. Stella é escrava de sua paixão por Stanley: Simplesmente não consegue resistir a ele, e Stanley usa e abusa de sua sexualidade para conseguir tudo o que quer com ela – inclusive uma certa “absolvição” no final da peça original. Já Mitch é o próprio americano grandão, meio abobalhado, que vive à sombra da mãe e que enxerga em Blanche a chance de finalmente se casar e ter vida própria – mas o passado (e a realidade) de Blanche é um estigma para ambos, e um indício da tragédia que se abaterá sobre ela (e, por extensão, sobre ele também). A tragédia, aliás, está o tempo todo presente na trama.

O filme é brilhantemente interpretado por esses quatro atores, que acrescentam ainda mais força à já lendária história de Tennesse Williams. Marlon Brando teve uma atuação tão marcante que mudou para sempre a forma de se entender como deve ser uma atuação para o cinema. Influenciado no começo de sua carreira por Stella Adler, e conseqüentemente pela técnica de memória emocional de Stanislavsky, Brando transformou o termo “O Método” em um novo ideal de interpretação no cinema. A entrega de Marlon Brando para o personagem é comovente (o que é incrível, levando-se em conta que ele pessoalmente detestava tudo o que seu personagem significava), não se enxerga qualquer resquício de técnica em sua atuação – ele efetivamente É Stanley Kowalski, e sua ferocidade e selvageria explodem na tela, em um filme que lhe ergueria à condição de estrela de primeira grandeza em Hollywood (sem escalas). O público simplesmente não estava acostumado e preparado para ver uma atuação de tamanha selvageria, e estava ainda menos preparado para a sensualidade de Brando, desfilando metade do filme com uma camisa suada colada ao corpo (o que ajudou a atrair ainda mais o público feminino), agredindo a mulher e sendo sempre perdoado como um garanhão irresistível para ela. Seu magnetismo era tão grande que o público de suas apresentações na Broadway acabava por ficar dividido entre Blanche e Stanley, o que era um contra-senso ao se analisar o enredo de Tennessee Williams.

Elia Kazan, com sagacidade, viu isso e equilibrou mais o filme neste sentido, colocando como Blanche uma Vivien Leigh ainda sensual e famosa, atraindo com isso a simpatia do público por essa trágica personagem (e que ainda tinha a vantagem de já ter interpretado o mesmo papel na montagem britânica da peça, sob a batuta de Laurence Olivier). Claro que Vivien Leigh teve a difícil tarefa de substituir Jessica Tandy, o que já lhe trouxe um pouco de antipatia pela classe de atores a princípio, e a deixou se sentindo um peixe fora d’água frente ao elenco da peça, fator este que foi explorado por Kazan para criar um ainda maior sentido de alienação para a sua personagem. Vivien Leigh carrega com garra o filme (que é um pouco mais focado em Blanche do que era a peça original, conforme o desejo de Kazan) e é parte de sua força motriz. Críticas surgiram por causa de um certo exagero em sua composição da personagem, de que estaria forçando demais as auto-ilusões e devaneios de Blanche, mas sua tour-de-force neste filme exigia uma atuação mais “quente” – o filme perderia muito se ele tivesse uma atuação contida à la “Laurence Olivier” (seu marido na época – apesar de que ela creditava sua atuação mais ao marido que a Elia Kazan). Até mesmo sua loucura pessoal (era bipolar e sofria de constantes depressões) a ajudou na composição de Blanche – conforme confirmou o próprio Brando, que era um dos que a preferiam em relação a Jessica Tandy. Francamente, apesar de todo o cartaz, o fato é que é difícil enxergar Jessica Tandy neste papel. Kim Hunter é outra que se saiu magnificamente bem, compondo com maestria uma personagem erotizada em uma época em que isto não podia ser exibido claramente. Mas ela trafega com classe nesta linha tênue entre a censura e a sub-representação, assim como o faz sua própria personagem, pega no fogo cruzado entre seu marido e sua irmã, entre o desejo e a fraternidade, entre o real e o ilusório, o concreto e o abstrato. E Karl Malden demonstra que não era um dos atores preferidos de Elia Kazan à toa: Seu Mitch também está preso entre a respeitabilidade e o desejo. Ele quer Blanche, mas não consegue ignorar a sociedade e o olhar inquisitório de sua mãe. O ator depois disse que interpretou o personagem como um homem que, apesar de ser visto como alguém que ama a sua mãe, na verdade a odeia, pela castração que lhe causa. Uma prova de como um sub-texto criado pelo ator pode enriquecer em sua composição e, conseqüentemente, o próprio filme, que é todo ancorado nestes grandes atores. O filme, aliás, é uma prova em celulóide da riqueza que bons atores podem acrescer a uma trama, principalmente à uma deste calibre.

Elogios também devem ser dirigidos a Elia Kazan, ele mesmo um ator no começo da carreira (apesar de medíocre), que soube trabalhar com maestria o potencial que tinha em mãos. Sua direção é sensível e explora o melhor de cada ator e personagem – tanto que era respeitado por todo o elenco e era um dos poucos que Marlon Brando realmente creditava como um de seus mentores (ao contrário de Lee Strasberg, que ele costumava dizer que se aproveitava de sua fama se intitulando “o criador de Marlon Brando”). Seu perfeccionismo chegou ao ponto de ordenar a “diminuição” do tamanho do set da casa de Stanley, para aumentar a sensação de claustrofobia de Vivien Leigh enquanto seu drama avançava. Com todos esses fatores, "Uma rua chamada pecado" não só é um dos grandes filmes da história do Cinema, como também é um dos poucos filmes que mudaram efetivamente esta mesma história – depois dele, o padrão de atuação no cinema teve que ser erguido.

O filme ganhou Oscar em 3 das quatro categorias de atuação em 1951 (Vivien Leigh, Karl Malden e Kim Hunter), fato até hoje apenas igualado por "Rede de intrigas", em 1976. Marlon Brando foi vítima de um prêmio sentimental para Humphrey Bogart (vencedor por "Uma aventura na África" – uma boa atuação, mas não há como compará-la à de Brando), que também sofrera injustiças ao perder por "Casablanca" e nem ser indicado por "O tesouro de Sierra Madre". Mas depois Marlon Brando receberia o seu Oscar (e depois até esnobaria outro...). Sua performance é uma aula de atuação do começo ao fim, e talvez tenha sido mesmo o seu maior momento no cinema, ele que é sempre considerado um dos grandes atores da sétima arte (se não O maior de todos eles).