Entre as muitas ironias do Oscar, está a de reconhecer filmes menores de grandes diretores e ignorar os seus filmes mais relevantes. “Quando fala o coração” foi indicado a melhor filme e diretor de 1945, um dos dois únicos filmes Hitchcockianos a conseguir essa dobradinha (o outro foi “Rebecca”). Foi um dos primeiros filmes a tratar de psicologia como tema central, e se tornou um sucesso de público e crítica na época. O ineditismo do tema ajudou a tornar isso possível, assim como a presença da consagrada Ingrid Bergman e do então novo astro Gregory Peck (seu primeiro filme de destaque, “As chaves do reino”, tinha sido lançado um ano antes), e com uma pitada adicional de Salvador Dalí para adoçar a boca dos mais intelectualizados.
Porém, visto hoje, é nítido que este filme é um Hitchcock menor, com muitos altos e baixos, errático mesmo. E que envelheceu mal. A culpa principal disso é justamente do tratamento dado à psicologia. Mesmo para leigos, fica bem clara a superficialidade com que ele é tratado, com conclusões imediatas sendo atingidas, sendo tudo por demais explicado e sem deixar margem à menor dúvida, com resultados milagrosos aparecendo em pouco tempo e apresentando um desempenho nada profissional da parte da personagem da Ingrid Bergman. O filme força a barra o tempo todo nesse sentido, o que torna a trama claudicante, por vezes. Hitchcock depois reconheceu que tratou o filme como “mais uma caçada humana envolta em pseudo-psicanálise”, e essa informalidade em relação ao tema tornou o filme um pouco ridículo em alguns momentos. Diga-se de passagem, o filme é praticamente irmão-gêmeo de “Marnie”, feito quase 20 anos depois, que apresenta o mesmo tratamento raso do assunto, e com uma trama muito semelhante inclusive nos sintomas apresentados pelos “pacientes” (e, consequentemente, um filme que repete quase que os mesmos defeitos de “Quando fala o coração”).
Felizmente, tinha muita gente de talento envolvida, e com isso o filme tem também seus momentos sublimes, como a cena em que Gregory Peck está com uma navalha na mão, ou na cena final do revólver na frente da tela, que apresenta até 3 frames coloridos, de muito impacto. A fotografia trabalha muito bem com sombras e cria uma ótima ambientação para o filme. E quando Hitchcock volta a ser Hitchcock e se livra das amarras da psicanálise e trata de suspense, o filme avança. Ingrid Bergman e Gregory Peck tem desempenhos apenas corretos, mas felizmente Leo G. Carroll (ator que Hitchcock utilizou diversas vezes) e Michael Chekhov estão muito bem e mostram a importância de se contar com bons atores coadjuvantes. A sequência de sonho, concebida por Salvador Dalí, é o ponto alto do filme, e só existiu por insistência de Hitchcock (contra o julgamento de David O. Selznick, que era contra os gastos envolvidos), apesar de que quem a dirigiu e fez funcionar foi mesmo William Cameron Menzies (que não quis ser creditado), o eterno às da manga de Selznick desde “E o vento levou”. A trilha sonora de Miklós Rózsa também é muito marcante, com o uso do Theremin acentuando a “loucura” do personagem de Gregory Peck. Rózsa ganhou o único Oscar do filme e também uma certa inimizade tanto com Hitchcock como com Selznick, que brigaram muito com ele e não gostaram do resultado final. Hitchcock inclusive julgou a trilha muito espalhafatosa, roubando um pouco a cena em alguns momentos (o que não deixa de ter razão, apesar de ser muito bela). Nunca mais trabalharam juntos.
Esse é o filme de maior destaque da carreira de Michael Chekhov, que era sobrinho do ilustre dramaturgo Anton Chekhov. Ainda na Rússia se aliou a Stanislavski, que o considerava um gênio. Ao emigrar para os EUA, acrescentou imaginação e movimento uma noção de criatividade subconsciente às táticas de atuação de Stanislavski, conseguindo grande sucesso junto a muitos atores americanos (como pupilos ele teve os próprios Gregory Peck e Ingrid Bergman, além de Gary Cooper, Elia Kazan e Clint Eastwood, entre muitos outros). Muito respeitado no meio, teve pouco destaque no Cinema, porém, e recebeu sua única indicação ao Oscar (como coadjuvante) por esse filme.
2 comentários:
"Michael Chekhov, que era sobrinho do ilustre dramaturgo Anton Chekhov".Nunca tinha me ligado nesse parentesco.Valeu pela dica.
Antes de pesquisar para esse filme (e fazer esse texto), eu desconfiava disso, mas não tinha certeza. Criar um Blog (e mantê-lo) também é cultura, he, he...
Um grande abraço.
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