Considerado por muitos como o maior filme espanhol da década de 70, “O espírito das colméias” por vezes sofre um pouco justamente por causa de tamanho cartaz. Não porque não o mereça, mas porque um filme de foco pequeno, humilde e com um ritmo lento não raro é recebido com certa decepção por um público que normalmente associa a noção de um “grande filme” a um “grande espetáculo”. Cinéfilos de plantão sabem que pequenos filmes podem também ser “grandes” (como “Desencanto”, “Sonata de Outono” e tantos outros provam), e neste sentido o filme é de grande vulto. Victor Erice, em apenas seu segundo longa, resolve retratar a infância de duas meninas em um cenário triste e moroso do interior da Espanha no ano de 1940, quando Franco já tinha se consolidado no poder. Vivendo uma ditadura mais brutal do que a que vivíamos no Brasil (apesar de moribunda – Franco morreria poucos anos depois), Erice consegue realizar um filme alegórico que possibilita muitas leituras (o único jeito de se escapar de uma censura implacável), mas cujo extrato é mesmo de crítica ao regime e, por que não, de associação da figura do generalíssimo com a do monstro de “Frankenstein”, de James Whale (até os nomes são parecidos...).
Entretanto, isto não quer dizer que o filme seja político (até porque não poderia ser). Longe disso, o tema principal versa sobre as agruras da infância, o que é muito ressaltado pelo fato da personagem principal do filme ser um achado, pois Ana (interpretada por Ana Torrent – todos os personagens do filme tem os mesmos nomes dos atores que os interpretam – e que depois seria aproveitada por Carlos Saura no também marcante “Cría cuervos”) não é uma menina típica de anúncio de margarina, ou seja, aquela criança sorridente e cantante (e, por isso mesmo, um pouco irritante em sua falsa perfeição). Ana Torrent escapa instintivamente desta classificação, pois tão nova já demonstra em seus grandes olhos todo o tédio de uma vida interiorana aliado a uma curiosidade inata, atiçada ainda por assistir ao “Frankenstein”, no que claramente é um grande evento na minúscula cidade. Mesmo sofrendo um pouco por conta de sua sádica irmã mais velha, Ana conhece aos poucos um pouco mais da realidade que a cerca, ao mesmo tempo em que mistura ficção com realidade em sua confusa cabeça. Não há neste filme um enredo elaborado, com grandes diálogos e ação intermitente. Muito pelo contrário, a base deste filme é claramente a poesia, e não a prosa, o que pode incomodar boa parte dos espectadores não acostumados com semelhante narrativa. É um filme muito mais próximo de “Limite”, de Mário Peixoto, ou “O homem de Aran”, de Robert Flaherty, do que de um cinema convencional. Neste sentido é de fundamental importância a fotografia de Luis Cuadrado, que capta a solidão e o tédio da vida no interior, alternando imagens de interior (algumas com um filtro dourado emulando a cor do mel) e muitos closes em Ana Torrent com paisagens vastas dignas de um John Ford (por um grande infortúnio, Luis Cuadrado estava já ficando cego durante a realização do filme, e anos depois cometeu suicídio justamente porque não conseguia aceitar a cegueira, cruel demais para um homem de sua profissão e de seu talento). Desta feita, com a ajuda de Cuadrado, o que Victor Erice pretende (e consegue com maestria) é exibir este painel de uma vida no interior naquela época, além de mostrar como era uma verdadeira infância naquelas condições. Em uma era de Internet e de milhões de brinquedos e atividades para as crianças, pode ser difícil se compreender isso, mas para uma menina como Ana os dias se arrastavam, com pouco para se fazer ou brincar, e ver um filme tão fascinante como “Frankenstein” era um evento suficiente para realmente mudar a sua vida. O diretor ainda consegue enfatizar tal solidão ao jamais enfocar a família da menina junta, pois mesmo nas cenas de jantar cada membro é mostrado sozinho, não há um plano geral – detalhes que podem passar desapercebidos pelo público, mas que muitas vezes ajudam a ressaltar o clima reinante no filme.
Esse é o grande mérito de Victor Erice, ele acerta desde o princípio, ao mostrar a chegada de “Frankenstein” na cidade, o vazio que é a vida dos pais de Ana e, claro, ao focar a própria Ana com um carinho que poucas vezes diretores conseguem com crianças. O diretor, por exemplo, consegue, entre outras coisas, filmar Ana Torrent realmente assistindo o filme “Frankenstein” pela primeira vez na vida, junto com todas aquelas crianças, e a imagem de seu rosto expressando medo e curiosidade simbolizam o que seria o filme de Erice daquele momento em diante. A menina sorri apenas uma vez no filme inteiro, e está quase sempre com um semblante sério ou triste, mas mesmo assim é encantadora, um imã para os nossos olhos, talvez até por nunca interpretar, ela apenas e tão-somente é aquela Ana (é possível que apenas uma criança tão nova consiga realizar inteiramente este que é o sonho de qualquer ator). O final do filme, emulando a famosa cena (por tantos anos censurada) do filme de James Whale é tão lírica, sutil e tocante que pode chegar a causar inveja em muitos cineastas.
Seja encostando a cabeça nos trilhos de uma ferrovia, auxiliando um combatente ferido, escolhendo cogumelos ou sendo aterrorizada por sua irmã, Ana aos poucos cresce e começa a descobrir o quão fascinante pode ser o mundo, desde que não se tenha medo para descobrir isto. Na sua varanda, ao final, está todo o seu futuro, que terá que enfrentar de qualquer maneira naqueles tristes anos 40, o mesmo futuro que uma Espanha, décadas depois, finalmente observaria, com certo receio mas abundante esperança, depois da morte daquele que foi certamente um ditador muito mais assustador que o monstro de Frankenstein.
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