domingo, 25 de novembro de 2012

Uma mulher delicada (Une femme douce – 1969)




Robert Bresson conseguiu unir a crítica francesa e mundial em elogios ao seu Cinema, e isso numa época explosiva, em que a geração da Cahiers Du Cinéma destroçava a reputação de quase todos os cineastas anteriores à dela. Bresson, porém, não só passou incólume por este massacre de reputações, como também era muito admirado pelos integrantes da Nouvelle Vague, a ponto de Jean-Luc Godard dizer que seu status em relação ao Cinema francês era o mesmo que desfrutava Fiodor Dostoievski em relação à Literatura russa. Se assim o era, então em Uma mulher delicada houve a lustrosa “parceria” destes dois artistas, com Bresson adaptando um conto de Dostoievski (Uma criatura gentil), em seu primeiro filme colorido (o que foi acontecer apenas em 1969).

Se o Cinema de Bresson sempre recebeu aplausos da crítica em geral, em compensação ele nunca foi muito popular, devido ao fato de Bresson apostar em filmes calcados em interpretações minimalistas, reduzindo em muito a carga dramática delas que o público estava acostumado a ver, e usando atores amadores, que ele chamava de “modelos”. E foi justamente uma modelo (no caso, daquelas de passarelas mesmo) que ele colocou no papel principal do título, talvez a única atriz a ter conseguido destaque posteriormente na carreira após participar de um filme dele (como quase todos os atores eram amadores, abandonavam a carreira em seguida, como o fez o ator principal deste filme, Guy Frangin). E a escolha não poderia ter sido mais precisa. Dominique Sanda, em sua estreia no Cinema, é perfeita para o filme, por características que possivelmente apenas Vittorio de Sica, em seu clássico O jardim dos Fizzi-Contini, soube aproveitar tão bem como Bresson. Ela plaina, flutua sobre o filme, interpretando uma suicida que tem sua história lembrada pelo confuso e arrasado marido, que, defronte a seu caixão, tenta entender o que a levou a tão trágica atitude. O filme, consequentemente, tem este caráter de uma lembrança emotiva, e é claro que a parcialidade do narrador tem que ser levada em conta. Mas até que ponto, se é que seria o caso, a “culpa” de tal evento poderia ser creditada ao marido? O enredo não oferece uma solução prontinha, fácil, de se mostrar um marido abusivo, grosseiro, que agredisse a esposa e a forçasse a escolher uma solução drástica, ou algo assim. Bresson nunca é maniqueísta a este ponto. Cabe ao espectador formular a sua tese do porquê aquilo ter acontecido.

Dominique Sanda apresenta aqui algo que ela sabia fazer como ninguém, que é incorporar uma mulher doce, gentil, delicada de fato, mas que sabe ser agressiva em sua passividade. As coisas sempre parecem acontecer com ela, como se fosse sempre uma eterna vítima, mas até que ponto ela mesma não estaria no comando dos acontecimentos? A atriz consegue impor à sua personagem (tão etérea que nem é nomeada), a singularidade de ser ausente em sua presença. Ela está sempre lá, mas é como se não estivesse. É doce, mas não retribui muito o amor do marido. Delicada, mas sabe agredir com seus doces olhares e gestos. Fala macio, mas nunca é submissa ou obediente. E com isso, claro, quase enlouquece o certinho Luc de Guy Frangin, assim como fez com Lino Capolicchio em O jardim dos Fizzi-Contini. Talvez Luc não fosse mesmo o homem certo para ela. Assim como é possível que ninguém fosse, que ela fosse uma pessoa tão delicada, que não conseguiria sobreviver às inevitáveis agruras do cotidiano de um casal. O filme gira em torno desta personagem quase indecifrável, e o tom quieto e sossegado de Bresson, seu estilo minimalista, se encaixa com perfeição com o tom da história. É seu filme mais facilmente assimilável pelo público comum, apesar de hoje Uma mulher delicada ser um filme tão esquecido.

A atriz entrou pela porta da frente no Cinema, e ainda pisando em tapete vermelho. Depois dessa estreia com ninguém menos que Robert Bresson, seu segundo filme foi com Bernardo Bertolucci (O conformista), o terceiro foi dirigido por Maximilian Schell (Erste liebe), e no quarto atuou no clássico de Vittorio de Sica (O jardim dos Fizzi-Contini). E sempre em papéis de destaque. E, poucos anos depois, ganhou o prêmio de atriz em Cannes por A herdeira, de Mauro Bolognini, em 1976. Ainda trabalhou em O emissário de Mackintosh (de John Huston) e 1900 (Bertolucci de novo). Atua até hoje, mas claramente numa carreira mais discreta. Quem viu seu rosto, e escutou sua doce voz, porém, nunca esquece Dominique Sanda. Não são só os personagens de seus filmes que ficam hipnotizados por sua beleza e suavidade. Os espectadores caem no seu feitiço também, apesar dela parecer alheia e até contrafeita a causar semelhante efeito. Mas Bresson sabe controlá-la, e explorar o que ela tinha de melhor. Sua carreira foi o contrário da dela, pois teve um começo modesto. Dirigiu um curta de comédia (Les affaires de publique, com Marcel Dalio, em 1934), depois dois longas mais convencionais (e de boa qualidade!), Os anjos do pecado (1943), com Mila Parély, e As damas do Bois de Bologne (1945), com María Casares. Só com Diário de um pároco de aldeia, em 1951, começaria seu Cinema mais característico, onde passaria a desprezar trabalhar com atores profissionais ou em sets de estúdios, por achar que eles não eram reais. O destino uniu este diretor tão obcecado pela busca do real com uma atriz tão convidativa a uma atmosfera de sonho inalcançável. O resultado deste encontro singular está em Uma mulher delicada. Um filme que não está cotado como um dos melhores de Bresson. Mas deveria estar. Pranteia-se seu esquecimento assim como Luc o faz ao lado do caixão de sua esposa. Sem entender o porquê.

3 comentários:

Ailton Monteiro disse...

É um Bresson que falta eu ver.

Marcelo Rennó disse...

Vale conferir com certeza, Ailton. Acho que você vai curtir. Um grande abraço...

RobertoMenezes disse...


Um grande filme. Pena não se encontrar mais em DVD. Está fora de catálogo. É excelente. Bresson, um mestre.