sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sem sol (Sans soleil – 1983)




Filme autoral por excelência, Sem sol foi dirigido, fotografado e editado por Chris Marker, que ainda compôs música e elaborou os efeitos especiais do filme (adotando pseudônimos para tal). Uma personalidade tão fascinante quanto misteriosa, Chris Marker foi um renomado recluso (raríssimas vezes deu entrevistas, e mandava um desenho de um gato quando lhe solicitavam uma foto sua), estudou filosofia juntamente com Jean-Paul Sartre, foi fotógrafo, jornalista, adorava viajar, fez vários documentários comunistas (inclusive um sobre Carlos Marighela, e outro das torturas no Brasil)... Sem sol inevitavelmente reflete este caldeirão de características pessoais, com um tom filosófico-meditativo, ancorado na narração de Florence Delay (da Academia Francesa). Chamá-lo de documentário seria reduzi-lo, pois Sem sol transcende barreiras e gêneros, sendo dos filmes mais difíceis de se categorizar. Melhor definir como “um filme de Chris Marker” mesmo, pois seus filmes são muito particulares. Terrence Malick talvez seja o diretor que mais se assemelhe a Marker, até por questão de personalidade (igualmente recluso, com fascinação pela natureza e também formado em Filosofia). Mesmo assim, cada um segue sua vertente.

Sem sol é um filme de 100 minutos e um milhão de leituras possíveis.  Usando tanto material seu como de outros filmes, Marker analisa o Japão e sua incrível ambivalência entre tradição e futurismo (o fascínio dos japoneses por jogos eletrônicos já era evidente nos anos 80), assim como sua capacidade de mastigar, regurgitar e nacionalizar características ocidentais. Se debruça também sobre a caça de animais, sobre olhares destemidos que teimam em olhar a câmera de frente, sobre a crueldade da natureza, que tudo pode destruir em um momento apenas... Marker atira para vários lados, e acerta o que vê e o que não vê. Mas foca principalmente na memória, coletiva ou individual, e de como ela é evasiva e indecifrável. Como não poderia deixar de ser, volta-se a seu filme-fetiche preferido, Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock (que já o tinha inspirado a fazer seu famoso curta La jetée), chegando a visitar locações do filme em San Francisco, como se buscasse um impossível encontro com a personagem Madeleine Elster de Kim Novak.  Quase como se dissesse que o Cinema parece ser o melhor meio de preservar a memória, mas que não consegue evitar que esta continue sendo efêmera, emotiva e inalcançável.

Ao final do filme, o espectador pode ficar perdido, desorientado ou iluminado. Extasiado ou decepcionado por não encontrar respostas fáceis. Todas reações possíveis e compreensíveis. Mas nunca ficará indiferente, pois é um filme que o faz refletir sobre mil questões, e é difícil que nenhuma lhe cause um mínimo de interesse. E pode voltar, se desejar, a ver 10 vezes o filme, que terá 10 leituras diferentes. O filme sempre será o mesmo, mas o espectador muda por dentro, e a experiência cinematográfica se altera. Um filme intuitivo como Sem sol não tem script definido. Mas a vida também não tem. Chris Marker faleceu recentemente, no dia de seu aniversário de 91 anos. É agora parte de nossa memória, como cineasta, cidadão e ser humano. Espera-se que a memória de sua vida e seu trabalho não seja efêmera, que não perca brilho com o passar dos anos, e que alguns cineastas e artistas continuem tentando trilhar caminhos parecidos. Nunca encontrariam Chris Marker realmente (assim como ele nunca encontraria Madeleine Elster em San Francisco), até porque cada artista tem seu caminho pessoal e intransferível, mas a jornada seria fascinante mesmo assim.  

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