domingo, 30 de setembro de 2012

Mistérios de Lisboa (2010)




A maioria dos filmes de época capricha na direção de arte e nos figurinos, mas a volta no passado se resume a isso. Todo o resto é moderno, incluindo a direção e o modo de se comportar dos atores, que nos dão a impressão que voltam a seus computadores e celulares assim que o diretor grita “Corta!”. Em muitos casos, deve-se ressaltar, isso é proposital, para fazer o espectador assimilar melhor o conteúdo, sem lhe causar nenhuma estranheza ver pessoas se comportando de forma tão estranha ao que está acostumado a ver no dia-a-dia. Raúl Ruiz foge de tudo isso em Mistérios de Lisboa, seu projeto de mais de quatros horas e meia que aborda o (também enorme) romance homônimo de Camilo Castelo Branco. Fazendo uso o tempo todo de planos longos, sem o uso de closes, e de uma câmera que sempre se move devagar e elegantemente pelos cenários (quase como se bisbilhotasse os personagens), a sensação de volta no tempo é completa. Um diretor com base muito literária como Ruiz se casou perfeitamente com o projeto, tornando o resultado muito orgânico, ao contrário do que provavelmente faria um diretor egresso de videoclipes, por exemplo (que entupiria o filme de câmera nervosa e um milhão de cortes, e consequentemente o modernizaria). Com uma mão muito segura, apesar de sua frágil saúde (passou inclusive por uma cirurgia durante o projeto, pois sofria de câncer no fígado, que o vitimou em 2011), Ruiz nos deixa, com este filme, uma bela e sofrida herança cinematográfica (pensar que estava perto da morte ao filmar Mistérios de Lisboa aumentou sua dramaticidade, conforme declarou em entrevistas).

Os atores também nos ajudam muito a voltar ao Século XIX em Portugal, principalmente Adriano Luz (Padre Diniz), Maria João Bastos (Àngela de Lima), Ricardo Pereira (Alberto de Magalhães), Clotilde Hesme (Elisa de Monfort) e Rui Morrison (Marquês de Montezelos). Suas performances quietas, resolutas (com a exceção de Ricardo Pereira, que causa faíscas na trama), nos transportam a um outro tempo, onde se apressar era considerado indigno de um aristocrata, ser filho bastardo era uma inglória inescapável, não ser o primogênito definia o seu destino, e duelos resolviam questões de honra. A trama é labiríntica, e o que começa com um menino, chamado apenas de João, procurando por seus pais e sendo ajudado por Padre Diniz, acaba desembocando em diversas outras tramas que nascem umas das outras, com personagens que inclusive adotam múltiplas personalidades, e tudo isso demanda muita atenção do espectador, para não se perder. Com algumas imagens oníricas, Raúl Ruiz reforça o romantismo de uma época, sendo ajudado pelo roteiro de Carlos Saboga, a trilha de Jorge Arriagada (chileno como o diretor, e parceiro de sua carreira desde o começo) e principalmente pela sensacional fotografia de André Szankowski (brasileiro de nascimento, mas que constrói sua carreira em Portugal). A fotografia evoca quadros da época, e cada frame é de uma poesia irretocável. É das melhores fotografias dos últimos tempos, até por se casar com o estilo do filme à perfeição.

Mistérios de Lisboa é um belo filme, que conquista os cinéfilos, os apaixonados por literatura (principalmente de grandes romances antigos), e igualmente os interessados pelas tradições e costumes do Século XIX. Devido ao ritmo lento do filme e à sua metragem, porém, é inegável que o público-alvo dele é restrito (poucos têm disposição para ver um filme de mais de quatro horas, e ainda mais um filme lento). Talvez até ajude vê-lo como se fosse uma minissérie mesmo, aos poucos (inclusive existe a versão para a TV portuguesa, de quase seis horas, mas Raúl Ruiz prefere a cinematográfica), para evitar um cansaço que prejudique o prazer do espectador. Principalmente levando-se em conta que Camilo Castelo Branco o escreveu assim, sendo publicado periodicamente no Diário portuense O Nacional, em 1854. Isso numa época em que romances deste quilate eram publicados diariamente em jornais para atrair o público, que os comprava majoritariamente por causa desses romances de escritores famosos, e não para ler notícias. O mundo avançou demais desde 1854, mas obviamente não em tudo. 

Nenhum comentário: