terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O amante da rainha (En kongelig affære – 2012)




No final do Século XVIII, ainda havia algo de podre no Reino da Dinamarca. Não havia o Hamlet fictício de William Shakespeare, é claro, mas as intrigas da corte e as disputas pelo trono continuavam atribuladas. Um país então bastante atrasado em relação ao resto da Europa, a Dinamarca teimava em se ater a tradições feudais, com uma nobreza e um clero que não queriam largar o osso, e com quase todos os camponeses presos a relações de servidão em relação aos nobres. Para piorar tudo mais um pouco, o Rei em exercício era Christian VII, considerado devasso e com rompantes de insanidade. Sua jovem esposa, recém-vinda da Inglaterra, passa vários apertos a seu lado, sendo maltratada o tempo todo, mesmo dando ao Reino de cara um herdeiro masculino ao trono. É neste cenário nada acolhedor que Johann Friedrich Struensee chega para ser o médico pessoal do Rei. Mesmo sem grandes currículos, e em certo ostracismo por ter ideias iluministas (até escrevera panfletos assim, que o relegaram a ser um mero médico de província), Struensee conquista o Rei inicialmente com sua erudição, paciência e cumplicidade. Mas é uma conquista árdua, sujeita a perseguições e suspeitas de um Rei profundamente instável, que podia sorrir para ele num momento, e ordenar sua execução no minuto seguinte. É andando nesta corda bamba balouçante que Struensee tenta se equilibrar, ao mesmo tempo em que vai conquistando a confiança da Rainha com sua cultura e seus ideais.

O infeliz título em português do filme tenta desmanchar um pouco os prazeres, mas não consegue, pois este é um filme fascinante, baseado em incríveis fatos reais, sobre um passado pouco conhecido de um país hoje visto como progressista, mas que era profundamente retrógrado na época. O filme tem alguns paralelos com As loucuras do Rei George, mas vai mais fundo do aquele filme ia, se concentrando também na vida ao redor do monarca. Struensee tenta influenciar aos poucos o Rei, querendo que ele faça as reformas necessárias, mas como fazer isso com um Rei tão instável, e com a nobreza e o clero em seus percalços? Struensee enxerga toda a floresta, mas os homens no poder só querem defender as suas árvores em particular, e estão dispostos a tudo para defender seus status e privilégios.

A atuação do trio principal de atores ajuda sobremaneira a que o diretor Nikolaj Arcel consiga envolver o público na trama real. Mads Mikkelsen, disparado o ator mais conhecido do elenco internacionalmente (o Le Chiffre de Cassino Royale, tendo atuado também em Coco Chanel & Igor Stravinsky e Depois do casamento, entre outros), atua com muita competência e carisma como Struensee, um homem que faz um pouco de tudo, e tenta tocar todos os instrumentos ao mesmo tempo sem poder desafinar. Alicia Vikander (a Kitty de Anna Karenina, versão de 2012 dirigida por Joe Wright) está um degrau abaixo como Caroline Mathilde, mas ainda assim demonstra em seu jovem semblante a decepção e receio de fazer parte de um casamento arranjado com um homem, a princípio, tão estúpido e instável. E Mikkel Boe Folsgaard dá um show como Christian VII, sendo ameaçador e frágil ao mesmo tempo, sempre deixando o espectador e os outros personagens em uma posição instável, sem saber como vai proceder em seguida. O ator, em sua estréia no Cinema, ganhou o Urso de prata em Berlim por sua atuação, com muito merecimento (o filme também ganhou o Urso de prata pelo inteligente roteiro de Nikolaj Arcel e Rasmus Heisterberg, parceiros de longa data, inclusive no roteiro da versão sueca de Os homens que não amavam as mulheres, de 2009, dirigida por Niels Arden Oplev). Um prêmio muito merecido, e que aponta um grande futuro para um ator que passou com louvor por um batismo de fogo, em um papel muito difícil. A veterana Trine Dyrholm (de Em um mundo melhor, filme vencedor do Oscar de filme estrangeiro de 2010, de Susanne Bier, e também Festa de família, de Thomas Vinterberg), como Juliane Marie, está sempre à espreita para defender seus interesses, assim como o sinistro Guldberg, interpretado com a frieza necessária por David Dencik (de O espião que sabia demais e Cavalo de guerra). Coadjuvantes como eles carregam de tensão uma trama que pode parecer antiquada em sua essência, por abordar reis e nobres, mas que continua relevante por analisar a eterna resistência a avanços, mesmo que sejam daqueles com benefícios incontestáveis a 99% da população.

Nikolaj Arcel acerta em praticamente tudo no filme, desde a reconstituição de época, como também no comando das atuações e no ritmo do filme. Para um diretor que diz querer fazer um filme de cada gênero antes de se aposentar, pode-se dizer que ao menos neste drama histórico ele obteve sucesso, em sua recente carreira de diretor. Seus pecadilhos são perfeitamente perdoáveis, como deixar o linguajar do filme em dinamarquês, quando na verdade esta era a língua do povo, mas não dos nobres e da corte dinamarquesa, que falavam alemão (mais um aspecto do quanto estavam alienados em relação ao resto do país). É ajudado, claro, por uma competente equipe, mais notadamente o Diretor de fotografia, Rasmus Videbaek, e os compositores da bela trilha sonora, Gabriel Yared e Cyrille Aufort. Juntos, todos eles criaram uma aula de história fascinante em forma de Cinema, que tem tudo para agradar a todos os públicos. Se fosse um filme americano, O amante da rainha concorreria a várias categorias no Oscar (dentre outros prêmios de prestígio). Como não é, tem que se satisfazer com a categoria de filme estrangeiro apenas, e ser visto por um público bem mais reduzido. É injusto, mas não deixa de ser algo corente com o próprio enredo do filme, porém. O amante da rainha não tem grandes currículos, por contar com diretor e atores (afora Mads Mikkelsen) desconhecidos. Mais ou menos como Struensee, seu destino é comer pelas beiradas, e tentar conseguir deixar sua marca mesmo assim. Apesar de tudo, uma civilização não precisa de mais do que alguns Struensees para navegar para a frente, mesmo com tanta gente remando para trás. Às vezes só um basta, inclusive. A história costuma guardar os nomes de Reis e Presidentes, mas as pessoas que mais importam raramente estão nessas posições, e O amante da rainha é uma prova disso.

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