No final do Século XVIII, ainda
havia algo de podre no Reino da Dinamarca. Não havia o Hamlet fictício de
William Shakespeare, é claro, mas as intrigas da corte e as disputas pelo trono
continuavam atribuladas. Um país então bastante atrasado em relação ao resto da
Europa, a Dinamarca teimava em se ater a tradições feudais, com uma nobreza e
um clero que não queriam largar o osso, e com quase todos os camponeses presos
a relações de servidão em relação aos nobres. Para piorar tudo mais um pouco, o
Rei em exercício era Christian VII, considerado devasso e com rompantes de
insanidade. Sua jovem esposa, recém-vinda da Inglaterra, passa vários apertos a
seu lado, sendo maltratada o tempo todo, mesmo dando ao Reino de cara um
herdeiro masculino ao trono. É neste cenário nada acolhedor que Johann
Friedrich Struensee chega para ser o médico pessoal do Rei. Mesmo sem grandes
currículos, e em certo ostracismo por ter ideias iluministas (até escrevera
panfletos assim, que o relegaram a ser um mero médico de província), Struensee
conquista o Rei inicialmente com sua erudição, paciência e cumplicidade. Mas é
uma conquista árdua, sujeita a perseguições e suspeitas de um Rei profundamente
instável, que podia sorrir para ele num momento, e ordenar sua execução no minuto
seguinte. É andando nesta corda bamba balouçante que Struensee tenta se
equilibrar, ao mesmo tempo em que vai conquistando a confiança da Rainha com
sua cultura e seus ideais.
O infeliz título em português do
filme tenta desmanchar um pouco os prazeres, mas não consegue, pois este é um
filme fascinante, baseado em incríveis fatos reais, sobre um passado pouco
conhecido de um país hoje visto como progressista, mas que era profundamente
retrógrado na época. O filme tem alguns paralelos com As loucuras do Rei
George, mas vai mais fundo do aquele filme ia, se concentrando também na vida
ao redor do monarca. Struensee tenta influenciar aos poucos o Rei, querendo que
ele faça as reformas necessárias, mas como fazer isso com um Rei tão instável,
e com a nobreza e o clero em seus percalços? Struensee enxerga toda a floresta,
mas os homens no poder só querem defender as suas árvores em particular, e
estão dispostos a tudo para defender seus status e privilégios.
A atuação do trio principal de
atores ajuda sobremaneira a que o diretor Nikolaj Arcel consiga envolver o
público na trama real. Mads Mikkelsen, disparado o ator mais conhecido do
elenco internacionalmente (o Le Chiffre de Cassino Royale, tendo atuado também
em Coco Chanel & Igor Stravinsky e Depois do casamento, entre outros), atua
com muita competência e carisma como Struensee, um homem que faz um pouco de
tudo, e tenta tocar todos os instrumentos ao mesmo tempo sem poder desafinar.
Alicia Vikander (a Kitty de Anna Karenina, versão de 2012 dirigida por Joe
Wright) está um degrau abaixo como Caroline Mathilde, mas ainda assim demonstra
em seu jovem semblante a decepção e receio de fazer parte de um casamento
arranjado com um homem, a princípio, tão estúpido e instável. E Mikkel Boe
Folsgaard dá um show como Christian VII, sendo ameaçador e frágil ao mesmo
tempo, sempre deixando o espectador e os outros personagens em uma posição
instável, sem saber como vai proceder em seguida. O ator, em sua estréia no
Cinema, ganhou o Urso de prata em Berlim por sua atuação, com muito merecimento
(o filme também ganhou o Urso de prata pelo inteligente roteiro de Nikolaj
Arcel e Rasmus Heisterberg, parceiros de longa data, inclusive no roteiro da
versão sueca de Os homens que não amavam as mulheres, de 2009, dirigida por
Niels Arden Oplev). Um prêmio muito merecido, e que aponta um grande futuro para
um ator que passou com louvor por um batismo de fogo, em um papel muito
difícil. A veterana Trine Dyrholm (de Em um mundo melhor, filme vencedor do Oscar de filme estrangeiro de 2010, de Susanne Bier, e também Festa de família, de Thomas Vinterberg),
como Juliane Marie, está sempre à espreita para defender seus interesses, assim
como o sinistro Guldberg, interpretado com a frieza necessária por David Dencik
(de O espião que sabia demais e Cavalo de guerra). Coadjuvantes como eles
carregam de tensão uma trama que pode parecer antiquada em sua essência, por
abordar reis e nobres, mas que continua relevante por analisar a eterna
resistência a avanços, mesmo que sejam daqueles com benefícios incontestáveis a
99% da população.
Nikolaj Arcel acerta em praticamente
tudo no filme, desde a reconstituição de época, como também no comando das
atuações e no ritmo do filme. Para um diretor que diz querer fazer um filme de
cada gênero antes de se aposentar, pode-se dizer que ao menos neste drama histórico
ele obteve sucesso, em sua recente carreira de diretor. Seus pecadilhos são
perfeitamente perdoáveis, como deixar o linguajar do filme em dinamarquês,
quando na verdade esta era a língua do povo, mas não dos nobres e da corte
dinamarquesa, que falavam alemão (mais um aspecto do quanto estavam alienados
em relação ao resto do país). É ajudado, claro, por uma competente equipe, mais
notadamente o Diretor de fotografia, Rasmus Videbaek, e os compositores da bela
trilha sonora, Gabriel Yared e Cyrille Aufort. Juntos, todos eles criaram uma
aula de história fascinante em forma de Cinema, que tem tudo para agradar a
todos os públicos. Se fosse um filme americano, O amante da rainha concorreria
a várias categorias no Oscar (dentre outros prêmios de prestígio). Como não é,
tem que se satisfazer com a categoria de filme estrangeiro apenas, e ser visto
por um público bem mais reduzido. É injusto, mas não deixa de ser algo corente
com o próprio enredo do filme, porém. O amante da rainha não tem grandes
currículos, por contar com diretor e atores (afora Mads Mikkelsen)
desconhecidos. Mais ou menos como Struensee, seu destino é comer pelas
beiradas, e tentar conseguir deixar sua marca mesmo assim. Apesar de tudo, uma
civilização não precisa de mais do que alguns Struensees para navegar para a
frente, mesmo com tanta gente remando para trás. Às vezes só um basta,
inclusive. A história costuma guardar os nomes de Reis e Presidentes, mas as
pessoas que mais importam raramente estão nessas posições, e O amante da rainha
é uma prova disso.
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