Em 2007, Joe Wright dirigiu uma
pérola cinematográfica chamada Desejo e reparação. De condução e ritmo praticamente
irretocáveis, o filme só saiu de tom em um único momento, justamente na cena de
evacuação das tropas inglesas da Europa Continental, um longo plano
ininterrupto que isoladamente faria qualquer cinéfilo babar, mas que dentro do
contexto do filme soou como um soluço na trama, tirando um pouco o peso do
enredo durante aqueles poucos minutos. Com Anna Karenina, Joe Wright faz quase
que o inverso, ele subordina a intrincada trama de Tolstoi ao visual
esplendoroso do filme, dando pouca relevância à trama em si e baseando boa
parte de seus esforços em criar, de acordo com uma citação sua, uma espécie de “balé
em palavras”.
Anna Karenina tem mesmo um pouco
disso,como se fosse um musical sem canções, pois é todo artificialmente criado,
nos mínimos detalhes, com o intuito de deslumbrar o espectador a cada segundo.
E deslumbra. Visualmente, Anna Karenina é dos mais belos filmes produzidos nos
últimos anos. Todas as suas indicações foram merecidas no Oscar (Fotografia, Figurinos, Trilha sonora e Design de Produção), e em algumas delas é o trabalho
de maior peso dentre os indicados (merecia indicação de Edição também, muito criativa
nas transições entre cenas, por exemplo). Os outros filmes de época do diretor,
Orgulho e preconceito e Desejo e reparação, já eram produções de grande esmero,
mas Anna Karenina está em outro patamar, se utilizando muito bem de um grande
palco de um teatro londrino abandonado para sediar boa parte do filme. O visual
é propositalmente artificial, que pode incomodar algumas pessoas, isso se elas
ainda tiverem algum senso crítico no meio de tanta beleza. Algumas cenas, como
a da dança entre Anna Karenina (Keira Knightley mais uma vez, o amuleto de Joe
Wright) e Vronsky (Aaron Taylor-Johnson), a corrida de cavalos, e a própria
cena final são inacreditavelmente belas. A câmera de Joe Wright dança ao redor
dos personagens e cenários, com uma elegância raramente vista, e o próprio trabalho sonoro é muito interessante, em vários casos enfatizando a solidão e rejeição de Anna no meio daquela rígida sociedade, com um interessante uso de silêncios.
No meio de tanta criatividade, esplendor
e esmero, porém, o texto de Tolstoi fica um pouco para escanteio, quase que
sem-graça de lembrar ao diretor que ele existe e que muitos poderiam ficar
decepcionados de ver uma obra desta envergadura com tanta predominância do
visual sobre o texto. Não há problema nenhum em se fazer uma adaptação que
altere bastante a obra original, vários filmes de sucesso seguiram esse rumo. O
problema é quando a obra original é um dos maiores clássicos da História da
Literatura. Com esse tipo de coisa não se brinca, sob pena de se sofrer uma
saraivada de críticas. Alfred Hitchcock sempre entendeu isso, e nunca quis
adaptar grandes obras, justamente para não sofrer este tipo de escrutínio e
ficar livre para fazer o que quisesse (numa exceção em sua carreira, sofreu
muito na produção de Rebecca, a mulher inesquecível justamente porque era um livro de enorme sucesso
na época, e foi obrigado a ser fiel ao texto de Daphne Du Maurier). É de se
perguntar o porquê de Joe Wright não fazer o mesmo tratamento em cima de um livro
ou peça de menor expressão. Como escolheu Anna Karenina, ele e o roteirista Tom Stoppard (de Shakespeare apaixonado, Brazil - O filme e Império do Sol) sofreram críticas não
por deformar a história (que é aceitavelmente fiel ao livro), mas por reduzirem seu peso e importância, com a exceção da parte final do filme, onde eles tentam se emendar neste sentido, e acrescentar relevância no meio de toda aquela
beleza.
O elenco coadjuvante está afiado
e contribui muito com o filme, contando com Matthew Macfadyen (Oblonsky),
Olivia Williams (Condessa Vronsky), Alicia Vikander (a atriz de O amante da
rainha, como Kitty), e Emily Watson (Condessa Lydia Ivanova), dentre outros. O mesmo,
infelizmente, não se pode dizer da dupla principal, logo ela, tão fundamental para
qualquer adaptação deste clássico de Tolstoi. Keira Knightley, que deve boa
parte da elevação de prestígio de sua carreira à sua parceria com Joe Wright,
dessa vez não convence no papel. Ela parece jovem demais e, pior, apresenta
pouca profundidade no papel-título. Em comparação com Greta Garbo e Vivien
Leigh, as mais famosas intérpretes de versões americanas no Cinema deste livro,
ela sai perdendo feio (concorrência forte, é claro, mas quem se propõe a um
papel desses deve saber de antemão que o nível de comparação será elevado). Ela
já provou que rende bem em filmes de época (não só em filmes de Joe Wright, mas
também em A duquesa, por exemplo), mas dessa vez não parece tão compenetrada
quanto antes, demora a esquentar e só apresenta uma boa atuação na parte final,
onde até demonstra um interessante aspecto quase-esquizofrênico da sua personagem.
Aaron Taylor-Johnson (de Selvagens e Kick-Ass – Quebrando tudo) também parece
um pouco jovem demais, e não demonstra ainda ter capacidade de encarar um papel
de peso em uma produção tão avantajada. A falta de química entre ambos também
atrapalha, evitando que a relação deles ganhe o peso que deveria ter. Jude Law,
como Karenin, o marido de Anna, é o de melhor desempenho dentre os três (talvez
até do filme inteiro), surpreendendo a muitos que costumam duvidar de sua
capacidade de atuação. Ele sim parece ter a consciência de que está numa
adaptação do clássico de Tolstoi, e que é bom estar nas pontas dos cascos para não
comprometer. Seu olhar triste e amargurado carrega boa parte do filme, sem cair
na tentação de virar uma espécie de vilão estereotipado.
Joe Wright mostra em Anna
Karenina, mais uma vez, que é um diretor de mão-cheia, que domina a arte
cinematográfica como poucos no Cinema atual. De certa forma, mostra até demais,
Anna Karenina tem um quê de exibicionismo de sua parte. É possível que o
resultado final fosse mais harmonioso e enfático se ele servisse um pouco mais
à história do que o contrário, que fosse um instrumento dela, e não o principal
artífice desta versão, deixando interpretações e o próprio texto em segundo
plano. Este seu filme termina sendo com um belíssimo restaurante de luxo cinco
estrelas, com uma vista fantástica, serviço de primeira e clientela expressiva de VIPs,
mas que peca um pouco justamente na qualidade dos pratos servidos, que são
lindos, mas um tanto insossos. Falta drama e contundência no meio de tanta
exuberância. Falta Tolstoi e sobra Joe Wright, o que acarreta em uma versão
belíssima de Anna Karenina, mas um tanto vazia em sua essência, e que custa a
empolgar e envolver o público.
Nenhum comentário:
Postar um comentário