sábado, 16 de fevereiro de 2013

Indomável sonhadora (Beasts of the southern wild – 2012)




Indomável sonhadora não parece muito um filme americano. Em parte por se passar na Louisiana, um estado de certa forma mais aparentado com as Américas Central e do Sul culturalmente do que com o resto do país onde está localizado. E também pelo tratamento proporcionado pelo diretor Benh Zeitlin, estreante em longas-metragens, mas que segue o realismo mágico de seu último curta, Glory at sea, um estilo no qual o Cinema latino costuma ser rotulado (estereotipado, inclusive) mundo afora. Este não é um filme de roteiro cirúrgico, definido, apesar de derivar de uma peça de Lucy Alibar (que também escreveu o roteiro do filme, junto com Zeitlin). O que importa aqui é a atmosfera, as impressões e sensações que são captadas pelo público. O espectador segue uma jornada emotiva e lírica através dos inocentes e impressionáveis olhos da menina Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), e esse olhar infantil, rodeado de um mundo assustador e fascinante, assevera que a lógica e a racionalidade ficarão em segundo plano, tendo em vista que Hushpuppy mal entende o que acontece ao seu redor. Em uma luta pela sobrevivência no meio de uma enchente (que ela entende como resultante das calotas polares se derretendo), ao lado de seu pai e em busca de sua mãe, Hushpuppy vai lidando com o aprendizado de sua vida e com seus temores.

Benh Zeitlin conduz esta quase-odisséia da menina muito ancorado na bela fotografia de Ben Richardson (também egresso de Glory at sea), formando com ele essa parceria tão importante para os dois filmes. É uma fotografia que abusa de câmera-na-mão e de algumas imagens desfocadas, porém, que podem irritar boa parcela do público. Indomável sonhadora não é um filme “fácil”, de público definido, nem visa o entretenimento puro e simples. Sua bandeira é outra, de um filme independente vencedor do Festival de Sundance, que visa desde o princípio um público um pouco mais seleto. Dos nove indicados ao Oscar de melhor filme referente ao ano de 2012, é sem dúvida o menos acessível ao grande público, que tende a ficar entediado com ele ou se sentir perdido em meio a eventos quase surrealistas, muitas vezes pouco (ou nada) explicados, mesmo que estes sejam envoltos em algumas belas cenas. É estranho, mas as indicações ao Oscar, que o trouxeram visibilidade e contato com um público que poderia nem saber de sua existência, também expõem Indomável sonhadora a uma rejeição muito maior do que sofreria se estivesse restrito a um público mais identificado com este tipo de filme.

O elenco é formado por não-atores, que Benh Zeitlin cuidadosamente escolheu em um longo período. Quvenzhané Wallis conseguiu se projetar no meio de 4000 meninas entrevistadas, tendo até que mentir a idade (tinha apenas 5 anos quando ingressou no processo de seleção). Conseguiu a façanha de se tornar a mais jovem indicada ao Oscar de melhor atriz, com 9 anos (de todas as categorias competitivas, o recorde ainda é de Justin Henry, com 8 anos por Kramer vs. Kramer), e impressiona porque na verdade ela tinha apenas 6 anos quando foram realizadas as filmagens. Não chega a ser uma atuação deslumbrante, até por ser muito dependente de narração em voz over, e algumas atuações infantis famosas são de fato mais complexas do que a dela (a de Justin Henry mesmo, por exemplo), mas mesmo assim é digna de elogios, pois não é qualquer criança que carrega um filme desta envergadura nas costas. Se ela não funcionasse em seu papel o filme desabaria, e o mesmo pode ser dito de Dwight Henry, que interpreta Wink, o pai de Hushpuppy. Curiosamente, ele era apenas o dono da padaria localizada defronte à produção do filme, onde inclusive eram afixados pôsteres chamando as pessoas para atuar no projeto. Em um momento de calmaria, participou do processo de seleção sem grandes ambições, e logo sumiu do mapa quando abriu seu negócio em outro local. Benh Zeitlin teve dificuldades em encontrá-lo, mas fez questão de contar com ele, fazendo malabarismos para filmá-lo em horários em que não estivesse trabalhando (de noite ou de madrugada). Ele traz uma vitalidade importante para o filme, e instabilidade estranhamente misturada com proteção para a jovem Hushpuppy, ao tentar ensiná-la a viver naquele ambiente tão hostil, já que sabe que não conseguirá protegê-la por muito tempo.

O filme de Benh Zeitlin, se afasta parte significativa do público com sua narrativa não-linear e lírica, em contrapartida costuma agradar em cheio ao público mais intelectualizado, não só pela questão da ecologia, como também por uma certa inocência ao retratar os habitantes daquele local, em especial Hushpuppy, sob a ótica de serem “nobres selvagens”. Há um evidente olhar afetivo para aquelas pessoas, que encontra eco em uma maioria do público atual que vive em cidade grande e que de certa forma idolatra viver uma vida mais ligada à natureza. Igualmente, há também uma certa divinização da pobreza extrema, que faria Joãosinho Trinta soltar uma bela de uma gargalhada e dizer “Eu não disseque intelectual adora pobreza?”, se ainda estivesse vivo. Indomável sonhadora pode ser perfeitamente criticado por abusar um pouco desta questão por espectadores mais cínicos. Aliás, o filme pressupõe mesmo um certo mergulho de cabeça, uma aceitação de peito aberto das premissas da história e do estilo do diretor. E muitos o fizeram, inclusive o Presidente dos EUA Barack Obama, que o elogiou aos quatro ventos, ajudando a trazer ainda mais publicidade para o filme. Aliás, a campanha política de sua reeleição usou a trilha sonora do curta Glory at sea, composta por Dan Romer e pelo próprio Benh Zeitlin, o que já demonstra a identificação de Obama com o estilo de Zeitlin, desde antes de Indomável sonhadora.

Se o diretor e os atores Quvenzhané Wallis e Dwight Henry serão sambistas de uma nota só, conseguindo muito sucesso (mais de crítica do que de público) com este filme, para desaparecerem de cena poucos anos depois, o futuro dirá. A possibilidade existe, e qualquer um que estude sobre a História do Cinema verá que isso é muito comum. O próprio Oscar, a cada ano, apresenta indicações de “jovens promessas” que depois muita gente tem dificuldade de lembrar. Quvenzhané Wallis e Dwight Henry em breve aparecerão em Twelve years a slave, o próximo filme de Steve McQueen (diretor de Shame), o que pode indicar um mínimo de continuidade em suas recém-iniciadas carreiras. Quanto ao diretor, a proximidade temática entre os dois filmes mais recentes da breve carreira de Benh Zeitlin apontam o risco de possivelmente ele ser um homem com um discurso único, apesar dele demonstrar ser eclético por mostrar talento também como compositor, tendo em vista a bela trilha sonora do filme. O caminho à frente destes três artistas tende a ser tão espinhoso quanto o de Hushpuppy em Indomável sonhadora. Talento eles tem, mesmo os maiores críticos do filme tendem a reconhecer isso, cabe saber se vão resistir ao realismo nada mágico de dirigir e atuar em filmes, em ambientes ainda mais inóspitos do que os dos pântanos da Louisiana. 

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