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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Verão de 42 (Summer of ‘42 - 1971)




Robert Mulligan tinha um talento inegável com crianças e adolescentes. Seus dois maiores filmes tratam exatamente da realidade sendo vista através delas, tanto em O sol é para todos como em Verão de 42 (por muito tempo conhecido como Houve uma vez um verão, no Brasil). Enquanto no filme com Gregory Peck (no papel que o imortalizou) acompanhávamos a realidade racial sulista pela ótica de duas crianças brancas, em Verão de 42 vemos a lembrança emotiva de um garoto na adolescência, e do efeito que uma mulher em especial teve sobre ele, neste ano em que os EUA já estavam em guerra e o marido dela estava distante. Em O sol é para todos, Mulligan pôde trabalhar em cima de um material de primeira categoria, no caso o livro de Harper Lee. Neste filme aqui a base não era literária, o que ele contava inicialmente era com as memórias do roteirista Herman Raucher, tanto que o livro foi inclusive escrito após as filmagens, de tanta confiança que se tinha que o filme daria certo, e consequentemente um livro sobre a história dele também daria (crença justificada, nos dois casos). Este é um caso clássico em que o roteirista é, no mínimo, tão co-autor como o diretor.

O filme é muito autobiográfico, a ponto de sequer mudar o nome das pessoas reais. Hermie (Gary Grimes) é o escritor em 1942, um adolescente normal, de seus 15 anos, que passa este verão numa ilha junto com dois amigos, Oscy (Jerry Houser) e Benjie (Oliver Connant). Verão de 42 é especial, dentre muitas coisas, por mostrar o que era ser adolescente nesta época, ilustrando alguns pequenos detalhes daquele cotidiano que um adolescente de hoje em dia teria dificuldades de imaginar. Os três ficam soltos na ilha (sequer vemos os seus pais, quando muito apenas ouvimos suas vozes), sem grandes entretenimentos, passando um bom tempo na horrenda praia inventando o que fazer para se distrair. Inevitavelmente, já estavam na fase de pensar em mulheres, e o desconhecimento de praticamente qualquer coisa sobre sexo os atormenta. Devoram o único livro que encontram sobre o assunto, e tentam ao máximo se chegar em meninas da sua idade, com a exceção de Benjie, um pouco mais novo e que sente mais medo que desejo das meninas (o que rende uma hilariante cena numa fila de cinema, onde inclusive eles “assistem” A estranha passageira, com Bette Davis e Paul Henreid). Tudo muito normal e fascinante de se ver, como uma volta ao tempo mesmo. De fato, Verão de 42 é um filme nostálgico como poucos, ainda mais capturado pela fotografia onírica e enevoada de Robert Surtees, que evoca ainda mais as lembranças emotivas de Herman Raucher. Mas há algo que apimenta tudo, que sai da normalidade e causa um fascínio inesquecível em Hermie, a ponto de fazê-lo escrever um roteiro 29 anos depois sobre aquele decisivo verão. Havia ela, naquela afastada casa.

Jennifer O’Neill. Ou Dorothy, se preferir. No papel em que é disparado mais lembrada, Jennifer O’Neill incorpora  a mulher mais velha, de seus vinte e poucos anos, casada, mas cujo marido estava servindo ao país na Guerra. Ela, com sua simples presença distante, praticamente enlouquece o pobre Herman em sua beleza, charme e simplicidade (e o espectador também não sai ileso dessa). Não que ela o seduza. Ela apenas o trata bem, com um certo afeto, mas não com o intuito de mexer com ele. Mas mexe. Confunde ele todo porque qualquer coisa que faça encanta o rapaz. Para Hermie, carregar suas compras é o paraíso, tomar seu café pelando supera qualquer noite de alta classe em Montecarlo. Ele faz de tudo para parecer adulto perto dela, treinando frases prontas e até mesmo fingindo que não conhece seus amigos quando ambos passam ao lado deles na rua, para não parecer imaturo. Algo inútil, claro, pois a distância de idade entre eles, se não é tão grande assim (menos de dez anos de diferença, talvez menos), nesta fase da vida costuma ser definitiva, quase intransponível. Mas sonhar não custa nada, e Hermie é claramente um sonhador, um especialista no assunto. Ele tudo repara nela, menos que é humana, que também tem seus medos, anseios e carências, e que sente a solidão e o tédio daquela ilha assim como ele. Poderia o jovem Hermie ver isso?

Herman Raucher, ao começar a escrever suas memórias no roteiro, inicialmente pensava mais em seu amigo Oscy, queria contar como fora a amizade deles (até como um tributo ao amigo que morrera no exato dia de aniversário de 24 anos do escritor, o que o fizera nunca mais comemorar um aniversário na vida). O filme tem essa estranha particularidade de realçar, ao menos quanto ao tempo em cena, muito mais a amizade deles do que toda a questão do fascínio de Herman por Dorothy. Mas não teve jeito, Dorothy cobrou sua força no inconsciente do roteirista, e consequentemente no roteiro e no filme. Jennifer O’Neill, objetivamente, atua apenas por doze minutos em Verão de 42. Mas são doze minutos de ouro, que envolvem todo o filme e, claramente, o próprio autor. Besteira tentar relegar Dorothy a um segundo plano. Ninguém fica imune a uma mulher como Dorothy/Jennifer, nem um garoto impressionável, com os hormônios em ebulição, nem um espectador dos anos setenta ou do Século XXI. Quando o filme termina, é dela que nos lembramos. Dela e da belíssima trilha do filme, vencedora do único Oscar que o filme levou, daqueles incontestáveis. Michel Legrand é, se não um co-autor, então uma espécie de Dorothy musical do filme. Impossível pensar em Verão de 42 sem lembrar dos simples e tocantes acordes de sua música. No tom perfeito, ela traz um sentido de saudade e nostalgia que poucas trilhas conseguem atingir.

Os atores infantis atuam razoavelmente bem, e seguram o filme quando Jennifer O’Neill não está presente. Os três estralariam uma esquecidíssima sequência, chamada O verão que passou (Class of ’44), que acompanha os três personagens já no colégio e às voltas com a guerra (numa versão mais fantasiosa da vida real). Mas era um filme fadado ao fracasso, sem as presenças de Robert Mulligan, Michel Legrand e, principalmente, Jennifer O’Neill. Pode-se dizer que os três atores-mirins seguiram para o anonimato após Verão de 42. Aliás, o filme marcou um certo ápice na carreira de todos os envolvidos, na verdade, inclusive Jennifer O’Neill, que nunca mais repetiu este verão em outras temporadas. E quanto a Herman Raucher, este até recebeu uma carta da verdadeira Dorothy, logo após o filme ser exibido nos cinemas, com grande sucesso. Mas foi um contato efêmero (nunca mais escreveu para ele), de uma mulher que já era avó, e que só queria saber se ele estava bem. Ele estava bem sim, Dorothy. Só nunca conseguiu esquecer de você, assim como ninguém se esquece de Jennifer O’Neill após assistir ao belíssimo Verão de 42. É um fascínio eterno. 


domingo, 14 de outubro de 2012

Duas garotas românticas (Les demoiselles de Rochefort – 1967)




A Nouvelle Vague surgiu na França, no fim dos anos 50, propondo um novo tipo de Cinema, em oposição ao hollywoodiano (do qual repudiava, mas que estranhamente também sentia certa atração), e com isso influenciou cineastas do mundo inteiro, também interessados em surfar uma onda nova.  E talvez o gênero de filmes mais dissonante do que os cinema-novistas do mundo inteiro queriam (não só na França, mas como na Alemanha, Brasil, Japão, etc.) era exatamente o musical. Um gênero quase sempre alienante por natureza, muitas vezes dependente de se filmar em estúdios (quando os cineastas queriam sair para as ruas), escorado em belas estrelas (contra a tendência de se buscar rostos mais “comuns”)... O musical típico da época de Fred Astaire, Gene Kelly e Cia. parecia fadado aos museus, daqueles nunca visitados (só nos anos 70 haveria um revival desta época, muito por causa dos documentários That’s entertainment!). Mas foi justamente na França e neste período efervescente e iconoclasta que surgiu Jacques Demy, um amante dos musicais hollywoodianos, que teve a ousadia de fazer algo considerado reacionário e americanizado, isso numa época em que essas duas palavras estavam no ápice de suas conotações negativas. Primeiro fez um musical todo cantado em francês (todo mesmo, sem exceção, ninguém fala normalmente em momento algum) com seu Os guarda-chuvas do amor, com Nino Castelnuovo e a irmã mais nova de Françoise Dorléac no papel principal (uma certa Catherine Deneuve, ainda bastante desconhecida). Contando com a música inspirada de Michel Legrand, o filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes e encantou o mundo, com um raro exemplo de um musical com tom melancólico.
                                                                            
Alguns anos depois, Demy partiu para uma nova empreitada no gênero. Até queria filmar uma espécie de continuação de seu filme premiado, mas Nino Castelnuovo não estava disponível. Assim, mudou de ideia, partindo para toda uma nova trama. Mas o que não quis desistir de jeito nenhum foi de filmar com Gene Kelly. Esperou dois anos para que a agenda dele o permitisse participar do filme. Juntou ao seu redor Françoise Dorléac e novamente Catherine Deneuve (com ambas já bastante famosas), Jacques Perrin, o dançarino americano George Chakiris (oscarizado por seu trabalho em Amor, sublime amor), Michel Piccoli e a veterana Danielle Darrieux (atuando no Cinema desde 1931, tendo inclusive protagonizado o longa de estreia de Billy Wilder!), escorando todos com a música de Michel Legrand, e escolheu dessa vez Rochefort em lugar de Cherbourg como local do filme, por apreciar a praça principal da nova cidade. O resultado foi Duas garotas românticas, um charmoso musical à moda antiga (mesmo para 1967). Sim, daqueles em que as pessoas começam a cantar gratuitamente, e dançam alegremente no meio da rua, e ninguém ao redor acha estranho ou liga para o hospício.

Duas garotas românticas é a joie de vivre filmada. Poucos filmes, mesmo dentre os musicais mais açucarados, demonstram tanta alegria descompromissada, mas Demy consegue fazer com que ela seja palatável, mesmo para os padrões atuais. A música de Legrand é bela, mas não está, de jeito nenhum, no mesmo nível da que compôs para Os guarda-chuvas do amor. Filme, aliás, que acaba por fazer sombra a este aqui, a comparação quase inevitável machuca um pouco Duas garotas românticas. Sente-se falta de um mínimo de drama, que algum personagem fique a perigo, o que praticamente não acontece nesta nova empreitada. Todos cantam e dançam belamente (na verdade, dançam, pois cantar mesmo só Danielle Darrieux, o resto foi dublado por outros cantores, inclusive Gene Kelly), e ver Gene Kelly dançando, mesmo com idade avançada, é sempre um prazer. Mas ninguém realmente sofre ou teme pelo futuro, tudo é leve demais, falta um pouco de preocupação, de realidade, no meio de tantos sorrisos. Por triste ironia, a cota de drama quem trouxe foi a vida, mas apenas dias após terminadas as filmagens, com a trágica morte, por acidente de carro, de Françoise Dorléac, o que traumatizou por anos Catherine Deneuve. Ver essas duas garotas românticas juntas, irmãs interpretando irmãs, “cantando” alegres e muito entrosadas, é uma das magias do cinema, essa capacidade de poder congelar belos momentos, que a vida não permite que durem para sempre. Françoise Dorléac sempre estará em Duas garotas românticas, cantando e dançando, e vê-la nele, sabendo de sua tragédia logo depois, dói ao mesmo tempo em que satisfaz. Esse sentimento estranho, misto de alegria de poder ver um ídolo no seu ápice, e melancolia de saber que ele não está mais entre nós (e, pior no caso de Dorléac, que morreu logo depois de terminado o filme), todo cinéfilo conhece.