O livro de Morris West As
sandálias do pescador foi um best seller mundial, e foi lançado em 03 de Junho
de 1963, o mesmo dia em que o Papa João XXIII faleceu (na primeira das
incríveis coincidências que cercam esta obra). Não demorou muito para que se
desejasse fazer um filme sobre este livro tão popular, com seu lançamento ocorrendo
justamente quando o mundo estava em ebulição, em pleno 1968. O diretor Michael
Anderson (de A volta ao mundo em 80 dias e Fuga no Século 23) encarregou-se da
tarefa, com roteiro de John Patrick (Suplício de uma saudade) e James Kennaway
(Glória sem mácula). O resultado foi um fracasso de público na época, e um
filme um pouco lento e arrastado, até por abandonar por vezes a trama central
ao mostrar a pouco interessante relação de um jornalista americano (David Janssen,
o Richard Kimble da antiga série de TV O fugitivo) com sua esposa e também sua amante.
A direção pouco inspirada de Michael Anderson não ajuda, infelizmente.
Mas o interesse maior que As sandálias
do pescador desperta é exatamente a sua estranha capacidade de prever o futuro.
Até porque o filme e o livro que o originou, mesmo produzidos na década de 60,
se debruçavam sobre o que poderia acontecer na década de 80, ou seja, há um quê
de ficção-científica no meio daquela trama de cardeais. Anthony Quinn
interpreta Kiril Lakota, um padre ucraniano (sendo que, naquela época,
costumava-se chamar qualquer um daquela região como “russo”) que, após décadas
na Sibéria, é libertado pelo Premier Soviético, interpretado por Laurence
Olivier (em uma de suas atuações mais discretas). Em uma ascensão
inacreditável, logo é nomeado como Cardeal pelo Papa vigente (John Gielgud, que
atua apenas em uma cena). E, com a morte repentina deste Papa, há um conclave
que o efetiva, após várias rodadas, como o novo Papa, com apoio de cardeais interpretados
por Leo McKern e Vittorio de Sica (ele mesmo, o diretor de Ladrões de
bicicleta). É curioso ver a reação de surpresa e desgosto, inclusive, quando os
americanos descobrem que o novo Papa é “russo”, no meio de uma tremenda Guerra
Fria...
Um elenco desta envergadura
acrescenta respeitabilidade a qualquer filme, e As sandálias do pescador de
fato necessitava disso, para uma realidade tão formal quanto a do Vaticano.
Nenhuma das interpretações é genial, mas Anthony Quinn decerto está crível como
Papa, muito solene e consciente de sua grande responsabilidade. A ascensão tão surpreendente
de seu personagem de certa forma evoca o que aconteceu em sua carreira, onde começou
estereotipado como indígena (inclusive em filmes de seu então sogro Cecil B. de
Mille), sem nenhum futuro brilhante à vista, mas que paulatinamente foi subindo
na carreira até ganhar 2 Oscars de coadjuvante (por Viva Zapata! e Sede de
viver), transpor o Oceano Atlântico para brilhar na Europa (em clássicos como A
estrada da vida), até finalmente conseguir o respaldo curricular para poder
interpretar um Papa neste filme. Leo McKern faz um bom contraponto a ele, como
um cardeal que resiste um pouco até se deixar conquistar por Kiril Lakota, e
Oskar Werner está na sua especialidade, como um padre amargurado e repleto de
dúvidas (ele parece um pouco um James Dean mais velho neste sentido, aliás até
fisicamente). Estes três atores juntos
são responsáveis pelas melhores cenas do filme, juntamente com os
grandiloquentes momentos de escolha do Papa e algumas cerimônias de grande
vulto, que são muito bem retratadas (até por se usar também material real, registrado
quando da escolha do novo Papa em 1963). O que não funciona tão bem é a trama comunista,
de crise entre URSS, China e EUA (que estariam fazendo um bloqueio comercial
aos chineses, por causa das expansões territoriais deles), que ameaçaria uma 3ª
Guerra Mundial, e que fazem o Papa Kiril tentar intermediar aquilo, propondo
uma bela solução, mesmo que bastante utópica. O filme acaba prometendo mais do
que cumprindo, apesar de algumas cenas emocionantes e de certo impacto, e de
contar com uma bela trilha sonora de Alex North (usando partes justamente da
trilha que compusera para 2001: Uma odisseia no espaço, que entretanto fora então
recusada por Stanley Kubrick).
Mas um Papa vindo de trás da
então Cortina de Ferro, que quebrava uma tradição de Pontífices italianos que durava
mais de 400 anos (desde 1522), de grande popularidade, e que queria se chegar mais no povo e
sair o possível da clausura do Vaticano... Não tem como não ver este filme e
não pensar em Karol Wojtyla, que se tornou o Papa João Paulo II em 1978.
Bizarramente, até os nomes Karol Wojtyla e Kiril Lakota são semelhantes. As
sandálias do pescador não prevê, claro, a influência decisiva de João Paulo II
em derrubar o regime polonês, e ressuscitar a Igreja Católica em regimes
comunistas que a agrediam, assim como não visualizou o próprio desabamento coletivo
dos regimes comunistas no fim da década de 80 e começo da de 90, a partir da
queda do muro de Berlim. Seria pedir demais. Mas a visão da possibilidade de
uma Igreja um pouco mais ligada no mundo real, e a busca por Papas
não-italianos, que visitavam lugares onde antes nem se sonhava receber a visita
de um Papa (Brasil, entre eles), para justamente integrar mais o mundo, são
méritos inegáveis do filme e do livro. A própria renúncia recente do Papa Bento
XVI encontra certo eco no filme, quando Kiril Lakota ameaça renunciar, se suas
ações não forem do agrado dos cardeais, o que causa grande rebuliço entre eles
(aliás, Morris West escreveu outro livro depois, Os fantoches de Deus, que
trata justamente de um Papa que renuncia ao cargo). Assim como a tentativa de
aproximação com outras religiões, como aconteceu com João Paulo II e com o
próprio Bento XVI, um vislumbre do futuro que se pode verificar em uma cena
onde o Papa Kiril, mesmo que incógnito, reza para um judeu, e em hebraico.
Rumores na época indicavam que
Morris West poderia ter baseado o seu Kiril Lakota em Albino Luciani, tendo em
vista suas ideias mais liberais e boa fama dentre muitos cardeais, pela sua
correção e postura. Luciani se tornaria justamente o Papa João Paulo I, que
ficou pouquíssimo tempo no cargo, apenas 33 dias (inclusive com alguns boatos
de que poderia ter sido assassinado, o que o próprio O poderoso chefão III de
certa forma alude, usando outros nomes, evidentemente). No conclave seguinte,
Karol Wojtyla seria o escolhido (e até homenagearia seu antecessor usando o mesmo nome), e
começaria sua peregrinação mundial marcada por muitos beijos em solos de aeroportos
(sua marca registrada) e em muito carisma, e que indiretamente contribuiu para
o fim dos severos regimes comunistas no leste europeu (de forma mais ativa na
Polônia, evidentemente). E com o tempo Karol Wojtyla acabou criando uma amizade
com o próprio Anthony Quinn, que sempre foi muito religioso. Não chega a ser
absurdo afirmar que as coincidências e profecias involuntárias de As sandálias
do pescador são mais interessantes do que o próprio filme em si.
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