sexta-feira, 22 de março de 2013

A caça (Jagten – 2012)




Em 1998 Thomas Vinterberg causou furor em Cannes, e posteriormente no mundo inteiro, ao apresentar seu já clássico Festa de família, feito seguindo fielmente as regras rígidas do movimento Dogma 95, cujos maiores expoentes eram ele e Lars Von Trier. Neste filme havia uma tentativa de um dos filhos de um patriarca expor o abuso sexual que sofrera em suas mãos na infância, e a tentativa de todos da família de acobertar tudo o que aconteceu, tentando ao máximo calar a boca do filho rebelde. Em A caça, Thomas Vinterberg mostra que já superou a fase de radicalização do Dogma 95, mas que continua sendo um cineasta muito contundente (como poucos, inclusive), em um cinema muito realista e detalhista, trabalhando com primor uma trama (elaborada por ele e pelo roteirista Tobias Lindholm) onde curiosamente vemos uma cidade inteira acusando um homem de ter abusado sexualmente de crianças, enquanto o espectador sabe que ele é inocente e que nada aconteceu. Uma situação inversa, mas talvez ainda mais impactante.

O personagem central é Lucas (Mads Mikkelsen), um modesto professor de jardim de infância de uma cidade pequena da Dinamarca, que começa a ver sua vida engrenar e já até cogita conseguir fazer com que seu filho more com ele, e não com a ex-esposa. Tem vários amigos na cidade, e é muito querido pelos alunos, principalmente por Klara (Annika Wedderkopp), filha de Theo (Thomas Bo Larsen, que atuara também em Festa de família, além de em outros filmes do diretor), o maior amigo de Lucas. Infelizmente, a menina se confunde toda em sua inocência e em seu amor infantil por Lucas, e é o estopim de um desastre na carreira e na vida íntima deste pobre professor. Assim como acontecera em Festa de família, Vinterberg não só põe o dedo, como abre a ferida com tudo e expõe as vísceras da histeria coletiva de uma cidade que acredita piamente no ditado “onde há fumaça, há fogo”. O filme tem alguma semelhança com a peça “The children’s hour”, de Lillian Hellman, adaptada para o Cinema com o título de Infâmia em 1937 e 1961 (a versão mais famosa, com Audrey Hepburn e Shirley MacLaine), onde boatos e maledicências destroem reputações, e adultos talvez até mais infantis que as crianças se recusam a aceitar a hipótese de que elas poderiam estar mentindo ou inventando tudo. Mas claro que Vinterberg vai mais longe em 2012, sem a censura a atrapalhá-lo, e também com o bom-senso de não apelar para cenas de caráter duvidoso. Ele trabalha a tensão como ninguém, e o ritmo do filme é impecável, de deixar o espectador grudado na cadeira e suando frio. A caça perdeu a Palma de Ouro em Cannes para Amor, de Michael Haneke, e a indicação dinamarquesa ao Oscar de filme estrangeiro para O amante da rainha (curiosamente, outro filme estrelado por Mads Mikkelsen), ambos ótimos filmes, mas que podem perfeitamente serem considerados inferiores a este A caça.

Um que foi premiado em Cannes, porém, foi Mads Mikkelsen. Um ator na crista da onda, fazendo um filme bom atrás do outro, e com uma persona cinematográfica mais reconhecida como de durão (foi até vilão de um filme de James Bond, no caso 007 – Cassino Royale), em A caça ele possivelmente teve a melhor atuação de sua carreira, em um papel onde alia resistência e vulnerabilidade. Um dos maiores atores do Cinema atual (recebe destaque desde o também notável Depois do casamento, de 2006), ele dá um show no filme, valorizando ainda mais os ótimos roteiro e direção. Ele é um ator que alia certas características de Humphrey Bogart com outras de Marlon Brando, ou seja, um exterior duro e frio, e algumas atitudes mais grosseiras, mas onde por vezes podemos ver um homem muito emotivo por baixo de toda esta couraça. Ele está no tom certo para o filme, que não cai nem no dramalhão, e nem num thriller puro e simples. Mas Mikkelsen é muito bem assessorado também por Thomas Bo Larsen, por Susse Wold (como Grethe, a sua chefe que dá o pontapé em toda a neurose) e pela iniciante Annika Wedderkopp, que consegue demonstrar uma fragilidade e um desamparo tão tocantes que deixam o espectador sem saber se ela não seria ainda mais vítima do que Lucas de toda aquela confusão, mesmo sendo a causadora involuntária de tudo aquilo. Seu olhar doce e perdido, e sua frustração por ver a bela relação que tinha com seu professor desmoronar, marcam o espectador do filme, principalmente na última cena em que os dois contracenam, de rara beleza, e comandada por um diretor que expõe mazelas com a mesma capacidade com que enxerga os detalhes.

É difícil determinar qual foi o melhor filme de um ano, qualquer que seja o ano. Prêmios e listas variados tentam fazer isso sempre, e o resultado nunca vai deixar de ser polêmico e de atrair aplausos e vaias. Num universo de milhares de filmes, é até injusto pegar apenas um e dizer “este é o melhor”. Feita esta ressalva, é difícil não pensar que A caça tem bala na agulha para ser cogitado como o melhor filme de 2012. Também é improvável que não vire um novo clássico desta década, assim como o foi Festa de família para a década de 90. Aliás, A caça tem tanta contundência quanto o clássico anterior de Vinterberg, e ainda se beneficia de um diretor mais maduro e menos engessado do que o então jovem seguidor (e co-fundador) do Dogma 95. De fato, ainda mais importante do que superar a todos em um ano ou até mesmo se inserir entre os melhores de uma década, A caça pode ter conseguido quase o inimaginável para a carreira do diretor, que seria superar seu antes presumidamente inalcançável Festa de família. Um feito e tanto, de um diretor que mostra em cores vivas que ainda tem muita garrafa para vender, e muita gente para influenciar.

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