sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Lincoln (2012)




Abraham Lincoln hoje é muito bem visto, mas teve que se equilibrar numa corda muito bamba durante todo o seu Governo. Ele poderia inclusive ter sido o último Presidente dos EUA, ao menos do país que hoje conhecemos. Com sua eleição (com praticamente nenhum voto do Sul do país), o dissabor dos estados rebeldes do Sul aumentou muito, gerando a criação dos Estados Confederados da América, que, em suma, era a saída destes da Federação, e a criação de um novo país, com a Capital em Richmond, na Virgínia. Claro que o Norte não deixou barato, e Lincoln muito menos, e a Guerra Civil Americana foi consequência disso. Atuando algumas vezes como um ditador (ignorando habeas corpus de vários detidos, por exemplo), era odiado por pelo menos metade do país, e ainda tinha a pachorra de tentar acabar de vez com a escravidão nos EUA, um assunto por demais polêmico. Mexer com tanto ódio e ressentimento cobrou seu preço, com seu assassinato por John Wilkes Booth, um ator de teatro e sulista ressentido, apenas cinco dias após a rendição do Sul.

É conveniente que tal Presidente, antes tão contestado e odiado, e hoje tão amado, tenha tido parte de sua história contada pela batuta de Steven Spielberg, talvez o mais clássico dos diretores americanos atuais. E Spielberg dirigiu Lincoln, o filme, da forma mais tradicional possível, virando as costas para qualquer modernismo, como o uso de câmera-na-mão, edição frenética ou similares. É como se Spielberg pensasse que uma figura clássica como Lincoln merecesse um tratamento igualmente clássico. Se diretores como Tarantino brincam com a História, Spielberg segue o caminho inverso, ele a reverencia, e faz o tratamento sóbrio que julga adequado (com direito à sua equipe de sempre, Janusz Kaminski na fotografia, John Williams com a trilha sonora, Michael Kahn na edição, todos com belos trabalhos no filme). Em 1997 ele tinha dirigido Amistad, um filme que lidava com a causa abolicionista, no caso a luta de um punhado de escravos que lutavam pela liberdade, após causarem um motim em um navio negreiro. Foi um dos poucos fracassos de sua carreira, apesar de contar com um belo discurso final, proferido por Anthony Hopkins. Talvez o problema maior de Amistad é que ele não tinha um trunfo como Lincoln, o coringa que por si só torna especial um jogo de cartas. Com este super coringa nas mãos, Spielberg não fez por menos para acrescentar ainda mais respeitabilidade ao seu novo filme, escalando Daniel Day-Lewis para o papel do Presidente, um ícone das artes para interpretar um ícone da política. Um sucesso já garantido de antemão, e comprovado nas telas. Alguns puristas reclamaram de um inglês interpretar um americano tão emblemático (reclamação antiga e recorrente, egressa desde a inglesa Vivien Leigh interpretar o cobiçado papel da sulista Scarlett O’Hara em ...E o vento levou). Mas, de novo, isso foi muito adequado. Os americanos enxergam Lincoln quase como membro de um realeza, com o mesmo porte que uma Rainha Elizabeth I ou um Lord Nelson detém na Inglaterra. Logo, acaba nada destoando que um inglês atue num papel deste porte, pois esse tipo de coisa eles fazem com um pé nas costas. Ainda mais um ator do porte de Daniel Day-Lewis, estimadíssimo no mundo inteiro, filho de poeta e neto de Michael Balcon (produtor lendário na Inglaterra em sua época, e quase que um patrono para Alfred Hitchcock). Sua interpretação praticamente valida o filme, um escorregão neste quesito seria fatal. Ele de fato incorpora muito bem o jeito resoluto, quieto, contador de histórias, quase enrolador de Lincoln, um homem que ninguém punha muita fé em um primeiro momento, mas que aos poucos ia conquistando o seu público, e fazendo valer suas ideias. Daniel Day-Lewis teve o mérito de entender isso e não tentar criar “momentos grandiosos” para seu personagem, e sim mostrar como o estilo “devagar e sempre” de Lincoln, suave mas decidido, ia ganhando adesões e desarmando espíritos, sem ele precisar abrir mão de suas convicções para isso (e sem ignorar, também, o toma-lá-dá-cá eterno da política, existente e inescapável em qualquer país e em qualquer época).

Daniel Day-Lewis é boa parte da razão de ser do filme, mas ele não está sozinho. Sally Field também teve seu lado “Lincoln”, já que em tese era uma baixinha de voz fina que ninguém botava fé, que surgiu ainda por cima numa série de TV como A noviça voadora. Mas ela logo largou a batina e alçou grandes voos, ganhando dois Oscars no processo (Norma Rae e Um lugar no coração), com uma garra que surpreendia público e crítica. E ela usa toda essa fibra no papel da esposa de Lincoln, Mary Todd, que inferniza sua vida com reclamações mil, e ameaças caso o filho mais velho deles tenha que servir na Guerra. Spielberg e o roteirista Tony Kushner (de Munique, o último grande filme de Spielberg até Lincoln, e criador também da peça Angels in America, de grande sucesso nos teatros e na TV) souberam mostrar o quanto o casal era infeliz e de como, no fundo, a vida de Lincoln era sofrida, e o quanto ele conseguia sucesso justamente por saber lidar com as constantes frustrações de sua vida. Tommy Lee Jones também traz brilhantismo ao filme, como Thaddeus Stevens, um abolicionista que faz o possível para ver sua causa finalmente vencer. Estes três atores foram indicados ao Oscar, com muita justiça. Mas o resto do elenco também é valoroso, e merece distinção, como David Strathairn (William Seward, grande companheiro de Lincoln), Joseph Gordon-Levitt (como Robert, o filho mais velho de Lincoln, que se envergonha por não servir no Exército, a pedido de seu pai), e mais James Spader, Hal Holbrook, John Hawkes e Jackie Earle Haley, dentre outros. Um elenco deste peso já demonstra, por si só, a importância do filme e do personagem retratado.

O que, porém, pode causar certa decepção no público é que Lincoln, apesar deste nome, não é exatamente uma biografia do Presidente americano. O que se vê é um recorte de um período de sua vida, no caso toda a luta pela abolição da escravatura americana, através da aprovação da 13ª Emenda na Constituição, e a árdua luta em fazê-la ser aprovada no Congresso. É o período mais importante de sua vida, claro, até por também ser o mesmo de boa parte da Guerra Civil (também deixada em um certo segundo plano, apesar de evidentemente estar misturada à questão principal), mas sente-se falta de cenas que tratassem de como aquele homem se formou. Talvez fosse interessante mostrar também outros aspectos de sua vida que foram menos registrados pela letra fria da História (como o filme faz, com brilhantismo, em relação a seu malsucedido casamento). Há um certo romanceamento, e uma simplificação, quase inevitáveis de todo o processo abolicionista (seria mesmo impossível tratar de tudo em apenas a duração de um filme), e o papel dos negros em acabar com ela parece por demais passivo (salvo as reclamações de dois soldados negros na cena inicial), o que talvez seja o maior pecado do filme (assim como no Brasil após a Guerra do Paraguai, os ianques logo viram que não dava para tornar soldados, que foram fundamentais em uma guerra decisiva, em escravos novamente. O status deles tinha se alterado, e ainda por cima muitos continuaram armados, e não aceitariam de bom grado voltarem a ser meramente escravos). Em compensação, é curioso ver como a História muda, pois o filme demonstra (acertadamente) que em 1861-65 os abolicionistas eram os do Partido Republicano, e os políticos Democratas eram reacionários e eminentemente escravocratas. Com o tempo, os partidos mudaram totalmente de perspectiva, quase que “trocando de lado”, com os Republicanos se tornando mais conservadores, e os Democratas, mais liberais.  

De qualquer forma, com erros e acertos, dentro a que se propõe o filme tem um inegável sucesso, demonstrando a dificuldade que foi dar a injeção definitiva para acabar com o câncer da escravidão americana (câncer este que ainda apresenta sequelas, mesmo 150 anos depois), em um ritmo envolvente, mesmo sendo um filme de muitos diálogos, que poderia cansar o público. Mas Spielberg bebe na fonte de outros diretores clássicos como Frank Capra e William Wyler há um bom tempo, e sabe conduzir a trama com competência e um ótimo embalo, evitando com que fique aborrecida. E, assim, atinge seu objetivo final, que é lembrar a História e torná-la fascinante para o público moderno, algo sempre difícil de conseguir. Sem, claro, abrir mão de certa reverência para com o personagem principal do filme. O filme Lincoln exala respeitabilidade e patriotismo, a ponto de deixar um americano praticamente em lágrimas e saudando a bandeira. Para os espectadores do resto do mundo, todavia, deve-se  ressaltar que boa parte do fascínio permanece, por um homem que mais escutava do que falava, mas que quando se expressava atraía a atenção, e os corações, de todos. Políticos são eleitos a todo o momento. Mas políticos de verdade, como Abraham Lincoln, merecem mesmo serem lembrados, e como seria bom que estes poucos e valorosos homens e mulheres recebessem o tratamento de luxo que Spielberg, juntamente sua talentosa equipe e o renomado elenco, dispensaram a este ícone americano. 

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