domingo, 30 de setembro de 2012

Mistérios de Lisboa (2010)




A maioria dos filmes de época capricha na direção de arte e nos figurinos, mas a volta no passado se resume a isso. Todo o resto é moderno, incluindo a direção e o modo de se comportar dos atores, que nos dão a impressão que voltam a seus computadores e celulares assim que o diretor grita “Corta!”. Em muitos casos, deve-se ressaltar, isso é proposital, para fazer o espectador assimilar melhor o conteúdo, sem lhe causar nenhuma estranheza ver pessoas se comportando de forma tão estranha ao que está acostumado a ver no dia-a-dia. Raúl Ruiz foge de tudo isso em Mistérios de Lisboa, seu projeto de mais de quatros horas e meia que aborda o (também enorme) romance homônimo de Camilo Castelo Branco. Fazendo uso o tempo todo de planos longos, sem o uso de closes, e de uma câmera que sempre se move devagar e elegantemente pelos cenários (quase como se bisbilhotasse os personagens), a sensação de volta no tempo é completa. Um diretor com base muito literária como Ruiz se casou perfeitamente com o projeto, tornando o resultado muito orgânico, ao contrário do que provavelmente faria um diretor egresso de videoclipes, por exemplo (que entupiria o filme de câmera nervosa e um milhão de cortes, e consequentemente o modernizaria). Com uma mão muito segura, apesar de sua frágil saúde (passou inclusive por uma cirurgia durante o projeto, pois sofria de câncer no fígado, que o vitimou em 2011), Ruiz nos deixa, com este filme, uma bela e sofrida herança cinematográfica (pensar que estava perto da morte ao filmar Mistérios de Lisboa aumentou sua dramaticidade, conforme declarou em entrevistas).

Os atores também nos ajudam muito a voltar ao Século XIX em Portugal, principalmente Adriano Luz (Padre Diniz), Maria João Bastos (Àngela de Lima), Ricardo Pereira (Alberto de Magalhães), Clotilde Hesme (Elisa de Monfort) e Rui Morrison (Marquês de Montezelos). Suas performances quietas, resolutas (com a exceção de Ricardo Pereira, que causa faíscas na trama), nos transportam a um outro tempo, onde se apressar era considerado indigno de um aristocrata, ser filho bastardo era uma inglória inescapável, não ser o primogênito definia o seu destino, e duelos resolviam questões de honra. A trama é labiríntica, e o que começa com um menino, chamado apenas de João, procurando por seus pais e sendo ajudado por Padre Diniz, acaba desembocando em diversas outras tramas que nascem umas das outras, com personagens que inclusive adotam múltiplas personalidades, e tudo isso demanda muita atenção do espectador, para não se perder. Com algumas imagens oníricas, Raúl Ruiz reforça o romantismo de uma época, sendo ajudado pelo roteiro de Carlos Saboga, a trilha de Jorge Arriagada (chileno como o diretor, e parceiro de sua carreira desde o começo) e principalmente pela sensacional fotografia de André Szankowski (brasileiro de nascimento, mas que constrói sua carreira em Portugal). A fotografia evoca quadros da época, e cada frame é de uma poesia irretocável. É das melhores fotografias dos últimos tempos, até por se casar com o estilo do filme à perfeição.

Mistérios de Lisboa é um belo filme, que conquista os cinéfilos, os apaixonados por literatura (principalmente de grandes romances antigos), e igualmente os interessados pelas tradições e costumes do Século XIX. Devido ao ritmo lento do filme e à sua metragem, porém, é inegável que o público-alvo dele é restrito (poucos têm disposição para ver um filme de mais de quatro horas, e ainda mais um filme lento). Talvez até ajude vê-lo como se fosse uma minissérie mesmo, aos poucos (inclusive existe a versão para a TV portuguesa, de quase seis horas, mas Raúl Ruiz prefere a cinematográfica), para evitar um cansaço que prejudique o prazer do espectador. Principalmente levando-se em conta que Camilo Castelo Branco o escreveu assim, sendo publicado periodicamente no Diário portuense O Nacional, em 1854. Isso numa época em que romances deste quilate eram publicados diariamente em jornais para atrair o público, que os comprava majoritariamente por causa desses romances de escritores famosos, e não para ler notícias. O mundo avançou demais desde 1854, mas obviamente não em tudo. 

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sem sol (Sans soleil – 1983)




Filme autoral por excelência, Sem sol foi dirigido, fotografado e editado por Chris Marker, que ainda compôs música e elaborou os efeitos especiais do filme (adotando pseudônimos para tal). Uma personalidade tão fascinante quanto misteriosa, Chris Marker foi um renomado recluso (raríssimas vezes deu entrevistas, e mandava um desenho de um gato quando lhe solicitavam uma foto sua), estudou filosofia juntamente com Jean-Paul Sartre, foi fotógrafo, jornalista, adorava viajar, fez vários documentários comunistas (inclusive um sobre Carlos Marighela, e outro das torturas no Brasil)... Sem sol inevitavelmente reflete este caldeirão de características pessoais, com um tom filosófico-meditativo, ancorado na narração de Florence Delay (da Academia Francesa). Chamá-lo de documentário seria reduzi-lo, pois Sem sol transcende barreiras e gêneros, sendo dos filmes mais difíceis de se categorizar. Melhor definir como “um filme de Chris Marker” mesmo, pois seus filmes são muito particulares. Terrence Malick talvez seja o diretor que mais se assemelhe a Marker, até por questão de personalidade (igualmente recluso, com fascinação pela natureza e também formado em Filosofia). Mesmo assim, cada um segue sua vertente.

Sem sol é um filme de 100 minutos e um milhão de leituras possíveis.  Usando tanto material seu como de outros filmes, Marker analisa o Japão e sua incrível ambivalência entre tradição e futurismo (o fascínio dos japoneses por jogos eletrônicos já era evidente nos anos 80), assim como sua capacidade de mastigar, regurgitar e nacionalizar características ocidentais. Se debruça também sobre a caça de animais, sobre olhares destemidos que teimam em olhar a câmera de frente, sobre a crueldade da natureza, que tudo pode destruir em um momento apenas... Marker atira para vários lados, e acerta o que vê e o que não vê. Mas foca principalmente na memória, coletiva ou individual, e de como ela é evasiva e indecifrável. Como não poderia deixar de ser, volta-se a seu filme-fetiche preferido, Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock (que já o tinha inspirado a fazer seu famoso curta La jetée), chegando a visitar locações do filme em San Francisco, como se buscasse um impossível encontro com a personagem Madeleine Elster de Kim Novak.  Quase como se dissesse que o Cinema parece ser o melhor meio de preservar a memória, mas que não consegue evitar que esta continue sendo efêmera, emotiva e inalcançável.

Ao final do filme, o espectador pode ficar perdido, desorientado ou iluminado. Extasiado ou decepcionado por não encontrar respostas fáceis. Todas reações possíveis e compreensíveis. Mas nunca ficará indiferente, pois é um filme que o faz refletir sobre mil questões, e é difícil que nenhuma lhe cause um mínimo de interesse. E pode voltar, se desejar, a ver 10 vezes o filme, que terá 10 leituras diferentes. O filme sempre será o mesmo, mas o espectador muda por dentro, e a experiência cinematográfica se altera. Um filme intuitivo como Sem sol não tem script definido. Mas a vida também não tem. Chris Marker faleceu recentemente, no dia de seu aniversário de 91 anos. É agora parte de nossa memória, como cineasta, cidadão e ser humano. Espera-se que a memória de sua vida e seu trabalho não seja efêmera, que não perca brilho com o passar dos anos, e que alguns cineastas e artistas continuem tentando trilhar caminhos parecidos. Nunca encontrariam Chris Marker realmente (assim como ele nunca encontraria Madeleine Elster em San Francisco), até porque cada artista tem seu caminho pessoal e intransferível, mas a jornada seria fascinante mesmo assim.  

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Ted (2012)




Filme com ursinho de pelúcia falante pode pegar os incautos, crentes que assistirão a mais um filme de “Sessão da tarde” inocente e engraçadinho. Mas Ted, claro, é tudo menos isso, de filme infantil ele não tem nada, e justamente subverter esse paradigma é uma de suas grandes graças. O ursinho, assim que ganha vida a partir do desejo de um garoto, se torna uma celebridade e vai crescendo ao lado de seu dono. E com o tempo o ursinho adquire vícios, fica mulherengo, e se torna o equivalente de um americano básico de caricatura, daqueles de ficar o dia inteiro vendo TV, se drogando e falando besteira. Com isso, arrasta seu dono (Mark Wahlberg) para essa vida de eterna adolescência irreverente e despreocupada, para desespero de sua namorada (Mila Kunis).
                                 
Humor é algo muito particular, e um filme hilariante para uma pessoa pode ser irritante para outra. O humor de Ted é grosseiro, chulo, politicamente incorreto (sua piada com “nomes de mulheres white-trash” é impagável), ancorado num saudosismo dos anos 80 (com direito a reverências a Flash Gordon!) e numa relação de amizade de muitos anos, mas quem gosta deste tipo de humor (que segue a linha de Uma família da pesada e American dad, duas séries de TV capitaneadas justamente por Seth MacFarlane, diretor do filme e voz de Ted) tem tudo para rir com gosto. Ted é a estrela e razão de ser do filme, evidentemente, mas Mark Wahlberg também faz uma ótima dupla com ele, não deixando nunca a peteca cair. Por uma quase inacreditável ironia do destino, tanto ele como o diretor Seth MacFarlane escaparam por sorte de estarem em dois dos aviões usados por terroristas no 11 de Setembro (o avião que Seth pegaria foi um dos jogados no World Trade Center, e Mark Wahlberg embarcaria com toda a sua família no United 93, endereçado à Casa Branca, que caiu na Pensilvânia). Talvez terem escapado da morte assim tenha acrescentado o molho niilista e inconsequente que faz Ted funcionar tão bem. Mila Kunis, voz de Meg Griffin em Uma família de pesada, e que já contracenou com Mark Wahlberg em Max Payne, parece também totalmente entrosada com ambos, gerando um clima familiar que auxilia o filme. O final do filme é a única coisa que trai seu espírito, sendo convencional em um enredo tão anárquico, mas o filme tem diversas cenas muito engraçadas, que tendem a agradar os que já vêm preparados para ele.

Quanto aos que chegam sem saber qual o real teor do filme, essas pessoas podem realmente se assustar. Um deputado, ignorando a classificação etária para o filme (16 anos), levou seu filho de 11 anos para vê-lo e, horrorizado, sugeriu que o filme fosse censurado por ser uma possível má influência para as crianças. É verdade que o ursinho Ted é imoral, viciado em drogas, vagabundo, etc. (e parece ser feliz mesmo assim, o que irritou o deputado ainda mais). Porém, Ted ao menos é engraçado, e só faz mal a si mesmo e a seu amigo. E, maior das vantagens, é fictício. Bem menos perigoso para o futuro das crianças do que certos elementos da sociedade que não têm graça nenhuma, só trabalham de Terças às Quintas-feiras, ganham muito, têm vários assessores, recebem privilégios como auxílio-moradia, auxílio-paletó, décimo-quarto salários e o diabo (tudo isso bancado pelo povo), estão pouco se lixando para as opiniões dos outros, e também dão a impressão de estarem se divertindo com tudo isso... Esses elementos existem na vida real, são péssimas influências, saem nas primeiras páginas de jornais, para qualquer criancinha ler, e ainda exigem serem chamados de Vossa Excelência. Uma piada essa situação toda, sem dúvidas, mas difícil é rir dessa piada, que nunca sai de cartaz e nem é censurada. É bem melhor ver o filme, esse sim engraçado e que se preocupa em agradar o povo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Meus dois carinhos (Pal Joey – 1957)




Pal Joey, na Broadway, teve a distinção de ser o veículo que catapultou Gene Kelly para a fama, e lhe possibilitou seguir carreira depois no Cinema. Com um tom cínico e um personagem antipático, que incomodou muita gente na época, mesmo assim a peça fez sucesso, pela atuação de Gene Kelly mas também, claro, pela música da dupla Richard Rodgers e Lorenz Hart. Quando a Columbia comprou os direitos para a adaptação cinematográfica, o objetivo inicial era justamente usar Gene Kelly com Rita Hayworth, que tinham conseguido grande sucesso popular em Modelos. O filme, porém, só foi virar realidade em 1957, mantendo Rita Hayworth (mas no papel de Vera, a mulher rica e mais velha que banca os sonhos de Joey), e escalando Kim Novak no papel de Linda English, e Frank Sinatra no de Joey. Curiosamente, essa mudança de papéis de Rita Hayworth para Kim Novak simbolizava uma passada de bastão de duas musas da Columbia, com Rita Hayworth saindo de cena e encarando papéis de mulheres mais velhas, e Kim Novak assumindo seu lugar principal (e ambas sendo dubladas nas canções, como sempre ocorreu com Rita).

Com Frank Sinatra no papel central, inevitavelmente o enredo perdeu um pouco de sua acidez, já que Sinatra sabia tornar charmoso e um pouco simpático mesmo o personagem mais troglodita. Com algumas canções saindo, e outras de Rodgers/Hart entrando (curiosamente, “The Lady is a tramp” e “My funny valentine”, duas das mais marcantes do filme, não eram de Pal Joey, e sim de Babes in arms), algo muito comum em adaptações para o cinema, houve um certo incômodo com quem conhecia a peça, e muito por isso a crítica não aceitou tão bem o filme na época. Sob os olhos do Século XXI, porém, o filme se sustenta muito bem. Frank Sinatra está em um de seus melhores papéis (ganhou até o Globo de ouro como ator de musical ou comédia pelo filme), muito à vontade como Joey Evans, cantando todas as mulheres e, claro, quase todas as canções, com a competência habitual. Domina o filme inteiramente e de fato torna Joey humano e simpático, dentro da cafajestagem básica do personagem. Kim Novak, um ano antes do mega-clássico Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock, já está andando por San Francisco (onde se passa Meus dois carinhos) e com aquela aparência de Madeleine Elster, o que por si só já agrada qualquer cinéfilo. Até impressiona como atua de forma tão semelhante nestes dois filmes tão díspares (se bem que nem tanto, pois Hitchcock, sempre muito mais preocupado com questões técnicas do que de interpretação, basicamente a deixou livre para interpretar do jeito que quisesse). Rita Hayworth parece até aliviada de não ser mais a “mocinha”, assume a sua idade e no número “Zip” até evoca o seu pseudo-strip clássico de Gilda (aliás, Kim Novak ameaça fazer o seu striptease, mas é interrompida por, logo quem, Frank Sinatra). E o diretor George Sidney tem a inteligência de não complicar, de não querer aparecer, de entender que num filme com Frank Sinatra, Rita Hayworth, Kim Novak e belas canções como “Bewitched”, “The Lady is a tramp”, “My funny valentine”e “I didn’t know what time it was”, dentre outras (todas de alto nível), era só registrar tudo aquilo com um mínimo de competência que o resultado sairia muito bom.

É quase impossível ver Meus dois carinhos sendo citado entre os grandes musicais de todos os tempos. Talvez nem mereça mesmo. Porém, um filme desse quilate ser um pouco esquecido e relegado a um segundo plano mostra a força absurda dos musicais de Hollywood, que justamente estavam entrando em declínio a partir do fim dos anos 50. Era bastante caro e árduo fazê-los, e o fim da era dos estúdios complicou demais o cenário para eles. Perda nossa. Mas sorte nossa que este filme, como muitos outros musicais, continua acessível para quem quiser voltar no tempo e ver Frank Sinatra cantando no ápice de sua forma, com Rita Hayworth e Kim Novak desfilando beleza e carisma ao seu lado. 

sábado, 22 de setembro de 2012

Fora de controle (La diagonale du fou – 1984)




Atualmente este fato pode causar estranheza, mas o xadrez, pelo menos até a década de 80, costumava ocupar um lugar de certo destaque em jornais esportivos no Brasil. Principalmente em disputas de título mundial, era comum ser estampado não só o vencedor de cada partida, mas todos os lances dela também, por vezes com comentários de experts. Na URSS, então, o xadrez era uma febre, e um motivo de orgulho para o país por dominar quase inteiramente o cenário mundial. Fora de controle evoca um pouco este saudosismo e trata justamente da fictícia (mas não muito) disputa acirrada pelo título mundial de dois soviéticos, que não poderiam ser mais diferentes entre si: Akiva Liebskind (Michel Piccoli) é o detentor do título, de idade avançada, com saúde fraca (seu coração ameaça pifar), e o queridinho do partido comunista justamente porque seu adversário é Pavius Fromm (Alexandre Arbatt), jovem irreverente, provocador, rebelde, e consequentemente exilado da União Soviética. O cenário da lavada de roupa suja soviética é a neutra Suíça, mas o tom político serve apenas de molho para o prato principal, o real tema do filme: A absoluta obsessão de dois homens que querem atingir (ou manter) o máximo patamar de suas profissões, e que não se importam nem um pouco de pagar o preço por isso.

Suas mulheres, interpretadas por Liv Ullmann e Leslie Caron, esposas de Fromm e Liebskind respectivamente, também pagam o preço por isso, e pode-se dizer que até as atrizes igualmente o fazem, pois apesar de serem ambas muito famosas, ocupam pouco destaque na trama (Leslie Caron é o apoio moral de seu marido, mal emitindo palavras mas sempre a seu lado, e Liv Ullmann continua morando na URSS, o que preocupa Fromm). O que importa mesmo é a disputa, por vezes nada leal, de Liebskind contra Fromm, onde nenhuma minúcia é deixada ao acaso, nem mesmo o peso das peças e o barulho que o solo ou a cadeira emitem quando um dos jogadores se movimenta. Cada detalhe importa, o que puder desconcentrar ou inferiorizar o adversário pode fazer diferença no final, e as equipes de cada competidor fazem o possível para ajudar seu enxadrista. A disputa deste filme, aliás, se baseia um pouco na de Anatoly Karpov e Viktor Korchnoi pelo título mundial em 1978 em alguns detalhes, onde ambos abusaram de suas paranoias. Assim como o golfe, o xadrez é daqueles esportes que parecem pacatos e tranquilos, mas que costumam cobrar seu preço na pressão absurda que seus jogadores são submetidos. Cada jogo é como uma guerra, e cada derrota dói na alma. Espíritos mais fracos são destroçados, como é o caso de um enxadrista arrasado que ajuda Liebskind só para ter o possível prazer de ver Fromm ser derrotado.

Xadrez é a vida daqueles homens, que jogam e treinam quando estão comendo, ou na piscina, no carro, onde for. Atingir este nível de excelência é para poucos obstinados, que claramente mal pertencem a um mundo real, e os limites da sanidade por vezes parecem ser ultrapassados. Richard Dembo, o diretor do filme, conduz com maestria este duelo de gerações, espíritos e egos, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1984, justamente em seu filme de estreia. A se lamentar que tenha dirigido apenas mais dois longas, O instinto dos anjos (1993) e Enquanto houver esperança (2005), tendo falecido em 2004 justamente durante a pós-produção de seu último filme. Estranhamente não conseguiu embalar na carrreira, apesar deste começo muito promissor. Alexandre Arbatt também não conseguiu mais repetir o impacto de sua atuação como Fromm, um dínamo que tenta esmagar quem está a seu redor, e que idolatra e desrespeita, ao mesmo tempo, o personagem de Michel Piccoli, que tem outra atuação sublime (das melhores de sua longa carreira). Fora de controle é um filme que encanta os amantes do xadrez, mas não só a eles, pois no fundo nem é lá tão importante que o espectador conheça muito do esporte. O filme envolve qualquer um, nesta jornada de dois obcecados que sacrificam tudo em nome de uma vitória. Quem quiser acompanhá-los que aguente os solavancos da estrada, porque eles não freiam para ninguém.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Poder paranormal (Red lights – 2012)




Depois de seu ultra-claustrofóbico Enterrado vivo (passado dentro de um caixão, em tempo real), o diretor espanhol Rodrigo Cortés ampliou seus horizontes e embargou neste projeto de escopo bem maior, com um elenco estelar. Escreveu o roteiro, produziu, editou e dirigiu Poder paranormal, e a pergunta de “Como ele conseguiu fazer tudo isso?” se relaciona tanto a ele mesmo quanto ao tema de seu filme. O enredo trata de dois cientistas (Cillian Murphy e Sigourney Weaver) e suas solitárias jornadas de tentar provar, em termos científicos, os possíveis impostores que tentariam enganar o público, angariando dinheiro em cima de falsas esperanças paranormais. Cortés pesquisou a fundo a paranormalidade, e chegou à conclusão que os dois lados, tanto os céticos como os ditos paranormais, se concentram sobretudo em defenderem suas crenças e menosprezarem as contrárias às deles, sendo mais fanáticos do que seria adequado numa pretensa busca da “verdade”. Enquanto o filme se concentra nesta eterna divisão ciência versus sobrenatural, e nos truques de como os provados impostores enganaram o público, o filme surpreende positivamente e traz bons questionamentos, inclusive quanto ao que motivaria tais cientistas buscarem tanto algo que, caso tenham sucesso, decepcionaria um público ávido por ilusões.

O problema maior é que o filme se divide em praticamente duas metades. Após um cuidadoso e envolvente estudo dos personagens, e de algumas cenas interessantes calcadas num eficiente clima de curiosidade e suspense, Cortés parece preferir focar mais no thriller do que nas nuances entre os cientistas e os paranormais. O personagem de Cillian Murphy, tal como um Ahab de Moby Dick, obcecadamente parece enxergar em Simon Silver (Robert De Niro) o seu objetivo de vida, o teste final para a sua caminhada, e o embate entre os dois, apesar de ter seu interesse, diminui um pouco o potencial do filme e o aproxima mais de um thriller comum. Simon Silver, uma espécie de Uri Geller, torna-se ameaçador, quando possivelmente poderia ter também seu lado de vítima. Ou seja, não temos aqui um embate como o do mágico de Max Von Sydow e do cientista Gunnar Björnstrand em O rosto, de Ingmar Bergman, onde os dois lados tinham seus argumentos e fraquezas. Ou até temos, mas numa versão Século XXI, com mais adrenalina e menos dúvidas, e com uma resolução mais fantástica e improvável.

O elenco, como era de se esperar, conduz o filme com competência, principalmente Sigourney Weaver (quando ela sai de cena, o filme sofre um pouco). Robert De Niro tem uma atuação grandiloquente, mas de acordo com seu personagem, que exigia mesmo grandes performances no palco. Cillian Murphy, o ator principal, carrega bem o filme nos ombros, demonstrando o quanto já se sente à vontade em qualquer tipo de projeto (seu currículo impressiona desde 2002, quando surgiu com destaque em Extermínio, de Danny Boyle). E o próprio Rodrigo Cortés demonstra competência e confirma seu potencial, seu pecado maior mesmo, talvez o único, foi não ter definido bem o filme que queria fazer, o que pode desnortear parte do público. Mas há elementos suficientes para tornar o filme interessante. Se o todo não agrada completamente, as partes têm o seu brilho próprio. 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Stella Maris (1918)




Se Chaplin foi disparado o ator mais famoso do cinema mudo, Mary Pickford conquistou essa distinção dentre as atrizes. Mesmo canadense de nascimento, foi a primeira “namoradinha da América” do Cinema, e sua fama se estendeu pelo mundo inteiro, não se restringindo aos EUA. Foi fundamental na criação da United Artists, junto com Chaplin, Griffith e seu então marido Douglas Fairbanks, e era ela quem tinha pulso firme dentre os quatro e tocava o novo estúdio adiante. Foi uma das fundadoras da Academia de de Artes e Ciências Cinematográficas, e a segunda a ganhar o Oscar de melhor atriz. Trabalhou diversas vezes com Griffith, no começo da carreira de ambos (a partir de 1909), e depois com Cecil B. deMille, Ernst Lubitsch e outros cobrões. Porém, tal currículo não sobreviveu tão bem à passagem dos anos. Outras atrizes do período são mais respeitadas e lembradas hoje em dia, como Lillian Gish, Louise Brooks e Gloria Swanson, por exemplo. De certa forma, ela ficou mesmo marcada como a eterna “menininha”, que por sua baixa estatura tinha facilidade de personificar (chegou a interpretar crianças tendo quase 30 anos, e convincentemente!). Mas filmes como Stella Maris ajudam a mostrar que aquela menininha era uma grande atriz, e que não atuou só em filmes açucarados, como é costume se pensar.

Em Stella Maris ela interpreta o papel-título, que segue mais ou menos a linha do que se espera dela: Angelical, sorridente, etc. Stella é uma menina que passa toda sua infância de cama, e seus pais criam um mundo de fantasia para ela, isolando-a de qualquer noção de um mundo real. Ou seja, o típico papel que ela fazia de olhos vendados. Mas Mary Pickford também atua como Unity Blake, uma órfã que desde sempre come o pão que o diabo amassou, e que chega a ser “adotada” por Louisa Riska (Marcia Manon) não por amor, mas para servir como uma serva para ela, e apanhar quando fizesse qualquer bobagem. Como Unity, Mary Pickford está irreconhecível. Anda torta, curvada (parece mais baixa ainda do que já era), sem maquiagem, o oposto da imagem clássica que temos da atriz. Sem aviso prévio, é bem possível que ninguém soubesse que ela interpretava os dois papéis, e se perguntasse: “Quem é essa atriz ao lado de Mary Pickford?”. Sim, ao lado, pois em algumas cenas “ambas” contracenam, num incrível trabalho de dupla exposição para a época, um efeito muito convincente.

O filme lida bem com os contrastes de uma vida de fantasia e uma de sofrimentos constantes, e também de como Stella Maris, uma vez curada, inevitavelmente descobre que não vive numa espécie de paraíso, e vai entrando num certo estado de resignação e leve depressão, enquanto que Unity aos poucos fica menos infeliz, por ser adotada “de verdade” por John Riska (Conway Tearle), justamente o marido de Louisa, que vai presa depois de dar uma surra em Unity. John, porém, é apaixonado por Stella Maris faz tempo, que no seu mundinho perfeito nem desconfia que ele é casado com Louisa...

Marshall Neilan, o diretor (que dirigiu outros sucessos de Mary Pickford, como Daddy-Long-Legs e Rebecca of the Sunnybrook farm) caprichou em trazer refinamento à simples história, já demonstrando um belo domínio da gramática cinematográfica em 1918. Frances Marion, a roteirista, de grande reputação em Hollywood, foi fundamental também não só por seu trabalho em si no roteiro, mas também por ter recomendado e emprestado o famoso livro de William J. Locke para sua parceira e amiga Mary Pickford, que se apaixonou por ele e fez o filme acontecer. Mundialmente famosa, com dinheiro, influência, talento e, principalmente, uma vontade férrea, Mary Pickford tinha jeito de menininha, mas quando tinha um projeto na cabeça, era bom sair da frente. Responsável pelo sustento de sua família desde que tinha 8 anos, Mary Pickford pegou no pesado desde cedo, e encarou uma Hollywood na época que mal passava de um imenso laranjal, quando muito barbado tinha medo de ir para lugar tão inóspito. Neste filme aqui, ela atua como Stella Maris e Unity Blake. Na vida real, era uma Unity no corpo de uma Stella Maris. Uma combinação explosiva. Ai de quem a menosprezou por causa de sua frágil aparência.





domingo, 16 de setembro de 2012

Vivamos hoje (Today we live – 1933)




Apesar de alguns misturarem os conceitos, o fato de um filme ser antigo não quer dizer que seja um clássico. Vivamos hoje, mesmo dirigido por Howard Hawks, e com os astros Joan Crawford e Gary Cooper nos papéis principais, é só um filme antigo. A excelência técnica da MGM na época, com Irving Thalberg ainda no leme, impede que o filme seja uma total perda de tempo, mas os problemas são por demais significativos para que sejam ignorados, tanto numa análise fria de hoje em dia, como no calor da época (foi um dos pouquíssimos fracassos de bilheteria de Joan Crawford nos anos 30).

Levando-se em conta que o filme é adaptado de um conto de William Faulkner, com participação dele nos diálogos (o roteiro mesmo foi escrito por Dwight Taylor e Edith Fitzgerald), o fracasso salta ainda mais aos olhos, mesmo com toda a lendária inadequação de Faulkner em Hollywood. Isso porque o próprio roteiro tem crateras lunares em sua estrutura, como o amor recorde de Diana (Joan Crawford) por Bogard (Gary Cooper, emprestado da Paramount, onde tinha contrato), o homem que compra a casa de sua família após a morte de seu pai. Em apenas uma passeada de bicicleta juntos, dois completos estranhos declaram, em tom robótico, que estão apaixonados um pelo outro. Não convencem ninguém, evidentemente, na que com certeza é das piores cenas românticas da história de Hollywood. A falta de química entre os dois também se verifica entre Diana e Claude (Robert Young), que faz com ela o triângulo amoroso básico do filme (que remete a Asas, filme bastante superior a este aqui). O mais bizarro de tudo é que no filme há sim química entre um casal, mas justamente onde não deveria haver, de Diana com seu irmão (Franchot Tone), e isso aconteceu porque foi trabalhando neste filme que Joan Crawford e Franchot Tone se apaixonaram (o que levou a um casamento pouco depois), e a tela capta isso, curiosamente. Parecia que até o destino estava atrapalhando o filme...

As cenas de aviação da Primeira Guerra Mundial são muito boas, mas isso não é mérito do filme, já que foram emprestadas de Anjos do inferno, de Howard Hughes. Howard Hawks demonstra que não estava lá muito comprometido em criar um romance entre os atores, abandonando a empreitada desde o início e só focando na guerra e no heroísmo dos personagens (o que sempre foi seu forte, o sentimento de grupo entre eles, que repetiu nos seus maiores sucessos). Joan Crawford e Gary Cooper estão bem per se, mas não ajudando um ao outro (ela já era uma estrela, ainda mais depois de Grande Hotel, onde até ofuscou Greta Garbo. Ele já estava muito perto deste status, ainda mais depois do sucesso de Adeus às armas), e nenhum ator sequer tenta adotar um sotaque britânico. Os figurinos de Adrian para Joan Crawford, apesar de muito bonitos, ignoram a época em que se passa o filme, sendo claramente dos anos 30 mesmo. Do desastre, salvam-se Franchot Tone, que tem a melhor atuação do filme, a juventude do casal principal (pena que nunca mais contracenaram juntos), a eficiente fotografia de Oliver T. Marsh e o fato da MGM, mesmo nos seus piores momentos, conseguir criar um filme de ritmo razoavelmente ágil, que não cansa o espectador (nem o faz se concentrar tanto nos defeitos do filme). Mesmo com todos esses problemas, Vivamos hoje não se interpôs no caminho de quem trabalhou nele, bem ou mal os quatro atores principais e o diretor seguiram com suas carreiras de muito sucesso. Às vezes se vê a força de um grande time nas suas piores derrotas.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Cosmópolis (Cosmopolis - 2012)





Eric Packer (interpretado por Robert Pattinson) é um bilionário que vaga pela cidade em sua limusine, em busca do capricho de cortar o seu cabelo no outro lado da cidade, mesmo com o mundo desabando ao seu redor. Em uma jornada típica de Ulisses, de James Joyce, ele vaga pela cidade, no decurso de um dia, se encontrando com sua gélida esposa (a bela Sarah Gadon), com prostitutas, com seu funcionário, com seu médico (faz exames médicos diários), ignorando ao máximo os protestos e reverberações de um sistema capitalista caindo aos pedaços. Sua limusine é vital nesse sentido pois serve como uma bolha, ou um bunker ambulante, que o protege de tudo, inclusive dos sons vindos de fora. Vive acompanhado de seu guarda-costas  (Kevin Durand, o Keamy de Lost), que se torna cada vez mais um estorvo, pois este tenta proteger Packer do que parece seu último propósito: A busca de uma emoção real, nem que seja através de uma caminhada auto-destrutiva que leve à perda de todo o seu dinheiro (Packer parece não se importar em perder bilhões em um dia), ou ao risco de levar um choque ou um tiro.  

Neste novo estranho mundo dirigido e roteirizado por David Cronenberg (adaptado do livro homônimo de Don DeLillo, muito criticado na época de lançamento, mas que ganhou mais relevância com a crise de 2008), os diálogos correm soltos, mas não são realmente diálogos. São monólogos testemunhados. Packer é o exemplo maior disso, mas ninguém realmente conversa com ninguém. Não parece mais haver o sentido de coletivo, de pertencimento ao que quer que seja. Só restam indivíduos, uma massa cada vez mais sem ocupação ou propósito de vida, e uns poucos abastados que andam de limusines luxuosas e pouco se importam com os outros (e até com eles mesmos). Dentro da limusine há proteção e conforto, mas não há vida. É um mundo moribundo, esperando apenas a eutanásia final.

O grande desafio de fazer um filme com semelhante tema é conseguir engajar o público. Se o tédio dos personagens é visível, se a inconsequência deles com seus destinos reina, como tornar isto interessante? Para complicar a já difícil tarefa, os diálogos, a base do filme, que poderiam funcionar melhor no texto escrito, perdem impacto na tela. Não alcançam o resultado prometido, e nem geram grandes questionamentos no espectador, por serem disparados a toda hora. E isso causa estranheza, pois Cronenberg sempre foi um cineasta de forte impacto visual, mas Cosmópolis talvez seja seu filme mais fraco neste sentido, pois há uma certa subordinação da imagem pelo diálogo, e como este não é realmente participativo, acaba por alienar o público. A presença de vários atores de renome (Juliette Binoche, Mathieu Amalric, Paul Giamatti, etc.) pouco ajuda, pois suas participações são pequenas e pouco marcantes, com a exceção da de Paul Giamatti (o melhor ator do filme disparado, até por ter a “permissão” de sentir, de se emocionar). Robert Pattinson, que segue sua jornada de mostrar que não é só um vampiro branquelo (já interpretou Salvador Dalí em Poucas cinzas, e esteve convincente em Água para elefantes), faz o possível, mas parece ter sido sabotado desde o princípio pelo tema anestesiado do filme, e por essa postura de Cronenberg de relegar a um segundo plano o apuro visual, em detrimento do texto.

Cosmópolis talvez seja o primeiro filme de Cronenberg sem uma cena marcante, daquelas que fiquem na memória do espectador, por muito tempo. Cineasta de inegável talento, e diretor de vários grandes filmes (dentre eles o recente Um método perigoso, o que demonstra que ainda está em plena forma), espera-se que Cronenberg volte a fazer o que sempre fez de melhor: Envolver o público, ao mexer com suas angústias e pavores. É quase impossível fazer isso com um filme em que os personagens mal sabem o que é se emocionar...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O palhaço (2011)





Selton Mello, em tese, estava com a vida feita. Poderia ficar o resto de sua vida fazendo novelas, ou comédias seguindo a linha de seu famoso Chicó de O auto da compadecida, de Guel Arraes. Teria sucesso garantido junto ao público (que sempre gostou muito dele), ganharia muito bem, e teria uma vida relativamente fácil. Muitos nem pensariam duas vezes em seguir este script favorável, e quem poderia criticá-los? Mas Selton Mello é inquieto, e o Cinema, assim como qualquer arte, precisa dos inquietos, dos insatisfeitos, dos que não aceitam ficar estagnados, dos que se arriscam em estradas mais tortuosas. Depois de sua incursão na direção do belo Feliz Natal, com tom mais depressivo e que, por isso mesmo, agradou a crítica mas afastou um pouco o público, Selton tentou em O palhaço algo sempre muito árduo: Alcançar o equilíbrio entre um filme autoral e um filme popular. Normalmente, quem tenta algo assim dá com os burros n’água, e não agrada nem intelectuais e nem o povão. Se O palhaço, ao final das contas, não atinge de todo este propósito (acaba pendendo mais para um tom reflexivo, existencialista, sendo bem menos “alegre” que o que alguns poderiam esperar), mesmo assim o resultado é muito positivo e já revela que, o que era antes um diretor muito promissor, agora já é uma realidade no cenário nacional.

Em O palhaço, Selton Mello é Benjamim, ou, se preferir, na vida real Benjamim é Selton Mello. É nítido que Selton faz quase que uma auto-análise em tela, e seus questionamentos como integrante de um circo mambembe podem ser facilmente transpostos para as dúvidas e depressões de um ator (ou diretor) no meio de um filme ou novela. Será que vale tanto aborrecimento? Por quê que não me emociono mais com isso? Será que vou ter que bajular um monte de gente até morrer, só para conseguir manter a bola rolando? Se faço os outros rir, quem me fará rir? Estas perguntas são do personagem e do ator-diretor, e seu olhar perdido demonstra que as questões ordinárias do dia-a-dia, administrativas e burocráticas, de tocar o circo de seu pai adiante estão cobrando o seu preço e tirando o brilho dos olhos do palhaço. Há ecos de Pagliacci, de Leoncavallo, mas aqui o risco do palhaço não é a perda da amada, mas sim a de um sentido de existência. No meio disso tudo, há que se continuar atuando e fazendo os outros rir, até porque muitos no circo (incluindo seu pai) dependem dele.  Mas o palhaço anseia por uma vida mais normal e com menos percalços, porém seria este o seu destino? É difícil fazer rir com tais questionamentos, e isso vale tanto para o palhaço como para o filme, que acaba ficando menos alegre e festivo do que parte do público poderia desejar. Mas, de certa forma, esse era o único filme possível para Selton Mello neste momento de sua carreira, e esse é um traço dos artistas, não fazer o que o público necessariamente pede (mesmo quando desejam fazer isso inicialmente, como era o caso!), porque seus instintos, sua alma enfim, acabam falando mais alto do que quaisquer desejos de agradar os outros.

Contando com uma belíssima fotografia de Adrian Teijido (de Capitu (TV) e Onde andará Dulce Veiga?, entre outros trabalhos), e com um grande elenco, com destaque para a figura de Paulo José como o pai de Benjamim, e ainda com várias participações especiais espocando no filme (Ferrugem, Moacyr Franco, Jackson Antunes, Tonico Pereira, Danton Mello, etc.), O palhaço é uma pequena pedra preciosa no cinema nacional. Se não é para todos os públicos, como Selton tanto queria, deveria ser. Porque trata de questões humanas, que no fundo atingem a todos, em maior ou menor grau, independentemente de suas profissões. É difícil encontrar a si mesmo nesta sofrida vida, e muitos não conseguem. Felizmente, parece que o ator/diretor/palhaço Selton Mello voltou a sorrir, e a fazer o público sorrir... e pensar... e quem sabe até chorar. O circo precisa de homens como ele. O Cinema também. A vida, sobretudo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Intocáveis (Intouchables – 2011)





Intocáveis surgiu como um fenômeno de bilheteria na França, e por onde passa vêm conquistando multidões, com sua simples história de amizade entre pessoas tão diferentes, baseado numa história real. Deixando de lado o melodrama (o filme não é nada depressivo), Intocáveis concentra-se numa eficiente comédia que lida muito bem com o contraste entre um refinado milionário de berço de ouro, intelectual e tetraplégico, que contrata um atrevido imigrante senegalês, pobre e sem ocupação, para cuidar dele. Espertamente, o filme evita um foco religioso ou racial (no fundo, importa pouco ali que um seja negro e o outro branco), e se atém mais às diferenças culturais e econômicas entre os dois, arrancando sorrisos e gargalhadas em boa parte de suas quase duas horas.

Boa parte de seu sucesso estrondoso deve-se ao entrosamento da dupla de atores principais. Ambos funcionam à perfeição, e se não fosse assim o filme desabaria, pois a amizade entre os dois é a razão de ser do filme. François Cluzet, um ator bastante tarimbado (dentre muitos outros trabalhos de destaque, foi o marido enlouquecido de Emmanuelle Béart em Ciúme – O inferno do amor possessivo, de Claude Chabrol), consegue exprimir emoção e simpatia apenas com seu rosto como o milionário Philippe, e Omar Sy está elétrico como Driss, conquistando a todos a seu redor, com um impressionante carisma. Mesmo sendo Omar Sy desconhecido do grande público, os diretores Olivier Nakache e Eric Toledano o conheciam muito bem, tendo trabalhado com ele em quase todos os seus filmes (os diretores formam uma longa parceria, e são especializados em comédias), e isso com certeza contribuiu para sua performance (premiada com o Cesar de melhor ator, ganhando inclusive do oscarizado Jean Dujardin de O artista). A chave para a boa relação dos dois é o bom-humor e a ausência de piedade de Driss com relação a seu patrão (por vezes fazendo até gozações com suas limitações físicas, o que Philippe aceita com boa esportividade), e a confiança que Philippe demonstra, desde o começo, com seu ajudante. Aliada a essa bela amizade, os diretores usam e abusam de várias gozações contra a alta cultura, os intelectuais e os ricos em geral, e isso, quando bem feito, costuma agradar o público em cheio.

O filme é bem previsível e não tem a menor vergonha de trabalhar com clichês, e é nítido que os diretores tomaram diversas liberdades com a história real entre Philippe Pozzo di Borgo (tem até nome de milionário) e Abdel Sellou (que escreveu o livro “Você mudou a minha vida”, sobre a amizade deles), inclusive mudando a nacionalidade deste último de argelino para senegalês. Mas o que importa para o público é que o ritmo é impecável e o clima jocoso conquista a todos, a joie de vivre de seus atores (principalmente Omar Sy) preenche a tela e enche os cinemas. Se muitos críticos torcem o nariz para o filme, devido à sua previsibilidade e um certo uso de fórmulas narrativas, não totalmente desprovidos de razão (alguns filmes são realmente muito semelhantes a este, como Perfume de mulher (a versão americana, de 1992) e Antes de partir (2007), e quaisquer questões mais pesadas são mesmo evitadas no enredo), o público não os acompanha, porque não se incomoda tanto assim com os clichês, e sempre aplaude quando os vê sendo bem trabalhados, como é o caso de Intocáveis. O público em geral costuma valorizar muito mais uma boa execução de algo mais conhecido do que uma inovação chata, que o entedie. Entre o costumeiro arroz-feijão-bife-e-batata-frita da vovó, feito com carinho, e um prato refinado da alta cuisine, o povo fica com o primeiro sem pestanejar. Assim como Driss, o personagem-chave do filme, também ficaria e, ainda por cima, gozaria Philippe por gastar caro para comer tão pouco...

sábado, 8 de setembro de 2012

Procura-se um amigo para o fim do mundo (Seeking a friend for the end of the world – 2012)





A diretora Lorene Scafaria, em seu filme de estreia, conseguiu algo curioso: Fazer um filme sobre o fim do mundo que não é depressivo (e logo em 2012, o ano que reúne tantas previsões de que seria o nosso último). Em relação a Melancolia, de Lars Von Trier, filme com o qual é muito comparado pela semelhança no tema central, Procura-se um amigo para o fim do mundo é um filme muito mais leve, sem dúvidas. Em compensação, é muito menos incisivo e marcante. Este é o típico pequeno filme que, presume-se, logo será esquecido, que será uma nota de rodapé muito modesta na História do Cinema. O que não quer dizer que não tenha seus méritos.

Se falta contundência e até ambição ao filme, por optar seguir um caminho minimalista e ignorar grandes questões existencialistas, há que se registrar que ele aborda algumas questões interessantes, mais mundanas, sobre o que fazer nesses tais últimos dias. No filme vemos que alguns preferem continuar trabalhando normalmente, outros abandonam tudo e partem para orgias mirabolantes, preservativos são abandonados (para quê se preocupar com gravidez e/ou doenças venéreas, com o fim do mundo se aproximando em questão de dias?), assim como quaisquer pudores, uns poucos resolvem antecipar seu fim cometendo suicídio, outros preferem resistir ao inevitável e planejam planos mirabolantes de sobrevivência pós-impacto do asteroide, etc. O leque de opções é grande e a diretora lida bem com a falta de sentido, a anarquia e o niilismo respectivo das diversas situações apresentadas, assim como demonstra competência em tornar tocante o final do filme. O problema é o longo miolo dele, onde há uma perda visível de ritmo e interesse, e uma certa falta de química entre os atores principais, Steve Carell  e Keira Knightley, não ajuda em nada, apesar deste problema se resolver um pouco perto do desfecho do filme. É nítido que ambos não estão no seu habitat preferido (ele a comédia, ela os dramas históricos).

Ao contrário do que muitos podem esperar, até pela presença de Steve Carell, o tom do filme é um pouco mais dramático, busca-se muito mais uma reflexão ponderada do que risadas constantes, sem entretanto resvalar para um excesso de lágrimas por parte dos personagens (e do público). Ficção-científica também não é exatamente o que o norteia o filme, a situação apocalíptica apresentada é mais um pretexto para se criar a situação central do filme e unir os personagens, aqui não há cientistas explicando detalhes do que irá acontecer, ou o uso de efeitos especiais mirabolantes. Aliás, talvez o problema maior do filme seja esse, não definir exatamente a que veio, essa indefinição entre o dramalhão e a comédia, entre ficção-científica e romance, costuma alienar uma parte grande do público. Tendo em vista a fraca bilheteria que o filme vem angariando mundo afora, e as muitas críticas que recebe, infelizmente parece que essa indefinição está cobrando um preço caro.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Em má companhia (Bad company -1972)




Em má companhia consegue algo muito difícil: Ele é fiel tanto à época que retrata (se passa durante a Guerra Civil americana) quanto ao próprio princípio da década de 70, quando o filme foi realizado. Um filme desses jamais seria feito numa década de 50, por exemplo, com ou sem censura, porque apenas a resistência civil à malfadada Guerra do Vietnã possibilitou que o público americano simpatizasse com a história de vários rapazes, muitos marginais, que fugiam da Guerra Civil e dos recrutadores. Por essa época, porém, o público já sabia que a antiga noção de “honra” não deveria, em sã consciência, ser evocada numa guerra, e aceitava de forma bem mais compreensiva a história de desertores. E o filme também é respeitoso com o passado porque não o romantiza, no filme não há nenhum herói, apenas pobreza, fome, ladrão roubando ladrão, e a Lei, que geralmente era muito ausente, quando se apresentava era para enforcar sumariamente os envolvidos. É uma Lei da Selva mesmo, onde cada um defende seus parcos interesses, e pode realmente ser menos sofrido encontrar com um ladrão pela frente do que um xerife ou o exército. Ao menos desta forma haveria uma chance um pouco maior de misericórdia.

Acompanhamos assim Drew (personagem de Barry Brown), filho de uma família mais abastada que o apóia totalmente para fugir do exército, se juntar por linhas tortas com outros garotos delinquentes, chefiados por Jake (Jeff Bridges), rumo a um Oeste a princípio muito promissor. Logo se desenha um exótico road movie, onde evidentemente, na ausência de carros, os personagens andam muito à cavalo, no lombo de mulas ou a pé mesmo. O clima lembra muito o de um filme policial, também, pois acompanhamos os garotos interagindo entre si, executando assaltos e fugindo de outros bandos de ladrões, e a dura jornada vai forçando o amadurecimento deles e testando sua união. Há um interessante duelo ético também na amizade de Drew e Jake, com três possíveis vertentes: Conseguirá Drew demover Jake da vida de crimes constantes? Se afastarão em pouco tempo, dadas as diferenças entre eles? Ou então irá Drew cair no crime de vez, influenciado por Jake? Mesmo sem tal questão ser apresentada diretamente por Robert Benton (diretor oscarizado de Kramer vs. Kramer), ela claramente permeia seu interessantíssimo filme de estreia. Aliás, Robert Benton, assim como David Newman, foi roteirista de Bonnie e Clyde – Uma rajada de balas, filme que guarda várias semelhanças com Em má companhia, inclusive na violência apresentada, já que o filme chega a mostrar uma criança sendo fuzilada na cabeça (é difícil imaginar um filme atual tendo essa audácia, e o público aceitar isso sem espernear).

A bela fotografia é de Gordon Willis, no mesmo ano de seu lendário trabalho em O poderoso chefão. O elenco está todo muito bem (um dos garotos do bando é inclusive John Savage, de O franco-atirador), e Jeff Bridges, mesmo no começo de carreira, já era conhecido do público por seu papel no aclamado A última sessão de cinema, de Peter Bogdanovich. Mas o ator principal é realmente Barry Brown, um talentoso ator que desgraçadamente cometeu suicídio apenas 6 anos depois, em 1978, com um tiro, depois de anos lutando contra o alcoolismo e uma profunda depressão. No meio de tanta angústia, ele dizia que apenas não se sentia infeliz quando atuava. Uma grande perda, sem dúvidas.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O ano do sol tranquilo (Rok spokojnego slonca – 1984)




Vencedor do Leão de ouro em Veneza, O ano do sol tranquilo é como uma pérola, pela sua beleza e raridade (com certeza é dos mais obscuros filmes a ganhar este prêmio). O próprio diretor Krzysztof Zanussi é pouco conhecido fora da Polônia, mal fazendo sombra para os bem mais famosos (e contemporâneos seus) Roman Polanski, Krzysztof Kieslowski e Andrzej Wajda. O mesmo vale para Maja Komorowska, a atriz principal do filme, que trabalhou diversas vezes com Zanussi e é uma grande dama do cinema e do teatro polonês (despontou inclusive no teatro de vanguarda de Jerzy Grotowski), mas que é igualmente pouco reconhecida fora do país. Se a fama internacional escapou ao filme a aos seus componentes principais, pelo menos sua qualidade permanece intacta, desvelando um belo romance entre um soldado americano e uma pobre viúva polonesa na Polônia logo depois de finda a 2ª Guerra Mundial, sendo ambos de meia-idade e que só falam suas respectivas línguas.

O amor porém é universal e, como demonstra brilhantemente Zanussi em uma cena, intraduzível. Não é através de um tradutor que os amantes conseguem conversar, pois de nada adiantam palavras se o tradutor não entende a possibilidade de amor entre duas pessoas em condições tão distintas (principalmente se ele despreza a pobre polonesa), e transforma carinho em rispidez. Os amantes se entendem é através de olhares e de uma compaixão mútua por viverem numa situação tão horrível quanto foi a 2ª Guerra Mundial, principalmente para um país como a Polônia, que já começou sofrendo desde seu pontapé inicial. Seja resistindo ao assédio de brutamontes poloneses, que constantemente roubam Emilia (personagem de Maja Kamarowska) e chegam a espancar sua inválida mãe (interpretada por Hanna Skarzanka), ou ao simples testemunho dos milhares de cadáveres decorrentes do horror nazista, o amor entre os dois floresce e resiste contra todos os prognósticos. E a única saída parece ser uma fuga para a América, mas Emília não consegue se decidir se deve seguir Norman (Scott Wilson, mais lembrado como um dos bandidos de À sangue frio, de Richard Brooks) e deixar a mãe para trás, assim como uma vizinha amiga sua que se prostitui para sobreviver e que, por isso mesmo, é cada vez mais ameaçada pela vizinhança, sedenta de vingança. Os conflitos morais são o combustível do cinema de Zanussi, as soluções nunca são fáceis, e as decisões mudam a vida de todos os envolvidos para sempre.

Sem jamais apelar para imagens e trilha sonora eróticas, Zanussi lida com sutileza para com aquele estranho e tocante romance, com realismo e sem nenhuma pieguice, e sabe mesclar bem isso com algumas cenas duras de um país dilacerado após aquela guerra. O ano do sol tranquilo mal tem sol e não é nada tranquilo, pois naquele mundo de sombras a vida não vale nada, e em um átimo tudo pode se perder. Um súbito relacionamento de duas pessoas maduras e sofridas desafia a lógica, o bom-senso e até as probabilidades de sobrevivência das pessoas envolvidas. Felizmente ao final sobrevive um grande Cinema, evidenciado numa cena-homenagem a John Ford que, se o filme fosse mais conhecido, fatalmente entraria em todas as listas de melhores desfechos da História do Cinema. 

domingo, 2 de setembro de 2012

Corações sujos (2012)




Vicente Amorim é filho de diplomata (o Ministro da Defesa Celso Amorim), nasceu em Viena e, mesmo depois sendo criado no Brasil, passou a vida inteira sem criar raízes, mudando sempre de cidade. Posteriormente trabalhou como assistente de direção em alguns projetos estrangeiros localizados no Brasil (como Orquídea selvagem e Brincando nos campos do senhor), dirigiu dois filmes sob a temática nordestina (O caminho das nuvens e o documentário 2000 Nordestes) e depois famosamente dirigiu numa produção europeia estrelada por Viggo Mortensen (Um homem bom). Talvez este seu caráter internacional tenha sido fundamental para encarar a adaptação deste livro homônimo de Fernando Morais, filmando ele no Brasil com um elenco quase todo japonês, e com o filme predominantemente falado em japonês. Sim, Corações sujos é singular por ser um filme brasileiro em língua estrangeira, tratando de uma parte da história largamente ignorada por brasileiros e japoneses.

Baseado na recusa de boa parte da colônia japonesa no Brasil em acreditar na derrota para os americanos na 2ª Guerra Mundial, e o consequente rebaixamento de seu imperador Hiroíto da condição de Deus para a de um mero mortal, Amorim resolveu focar na história de personagens fictícios, mas que resumiam o que de certo modo era explanado no livro de Fernando Morais. O curioso é ver como, mesmo compostos de temas em tese tão diferentes, seus últimos dois filmes são tão semelhantes, tratando da crise de indefesos indivíduos contra a ordem de uma cultura hegemônica a que pertenciam. Enquanto que em Um homem bom acompanhamos Viggo Mortensen ser envolvido numa espiral de decadência moral alemã nazista, que o arrasta sem misericórdia e cobra seu envolvimento, algo de muito semelhante ocorre com Takahashi (vivido pelo ator Tsuyoshi Ihara, de 13 assassinos e Cartas de Iwo Jima) em Corações sujos, um mero fotógrafo que se vê envolvido numa disputa fundamentalmente de japoneses contra japoneses, que envolve a honra e a desconfiança de um povo situado dentro de um país ditatorial em guerra com o Japão, como era o caso do Brasil de Getúlio Vargas. O envolvimento de Takahashi expõe o perigo (infelizmente ainda bastante atual) do fanatismo e do consequente pouco (ou nenhum) questionamento que ele acarreta, transformando homens pacatos em seres capazes de atitudes muito violentas contra seus conterrâneos que aceitam o “inaceitável”, ou seja, a derrota japonesa. Mas o sangue que deveria limpar a honra muitas vezes suja consciências, e desafia o conceito de identidade que alguns presumem possuir de forma tão natural. Entre a alienação (ou extermínio) e a barbárie, muitos ficam divididos entre defender até a morte a pátria e a honra japonesas, ou aceitar a derrota e seguir adiante com suas pacatas vidas (isso, claro, se os fanáticos permitirem).

Contando com atores conhecidos no Japão, entre eles Takako Tokiwa, Eiji Okuda, Shun Sugata (de Kill Bill vol. 1 e O último samurai) e Kimiko Yo (atriz coadjuvante de A partida), e com apenas Eduardo Moscovis como mais famoso no elenco brasileiro, o filme consequentemente apresenta um ritmo mais típico de um filme japonês que brasileiro, mais lento e reflexivo do que o público daqui está acostumado. Algumas escolhas técnicas também podem causar uma certa alienação do público, como o abuso do uso de uma fotografia desfocada e uma trilha sonora que, ainda que bela, costuma se intrometer demais em algumas cenas. Porém os questionamentos que o filme apresenta, e o olhar para uma época obscura da história nipônico-brasileira, talvez façam com que cresça ainda um pouquinho mais o fascínio pela cultura de um país paradoxalmente tão tradicional e, ao mesmo tempo, rapidamente adaptável como é o Japão. O tenso conflito entre tradição e modernidade pulsa no passado retratado em Corações sujos e talvez nunca pare de pulsar, em cores vivas, no Japão do presente e do futuro. 

sábado, 1 de setembro de 2012

Batman: O cavaleiro das trevas ressurge (The dark night rises – 2012)




Cada vez mais Christopher Nolan vai se firmando como uma espécie de Spielberg do começo do Século XXI, enfileirando blockbuster atrás de blockbuster, e puxando a locomotiva hollywoodiana sem dar a menor impressão de esmorecer. Não é qualquer diretor que aguenta o tranco de dirigir um filme de enorme orçamento, e Nolan faz isso parecer fácil e natural. Joga Final de Copa do Mundo como se estivesse disputando um amistoso em Volta Redonda. Com Batman: O cavaleiro das trevas ressurge, o diretor ainda por cima tinha a enorme pressão de superar, para os fãs, a extremamente positiva experiência do filme anterior da trilogia. Se não o supera, ao menos pode-se dizer que chega perto, demonstrando a sua expertise em filmes do gênero.

Misturando elementos díspares como terrorismo (a fobia principal de nossos tempos), um arremedo do terror e anarquia da Revolução Francesa (com pinceladas reverenciais de “Um conto de duas cidades”, de Charles Dickens), e mais um toque de envelhecimento do herói principal, Nolan faz uso de boa parte de seus atores prediletos, inclusive 5 egressos de seu último sucesso, A origem (Michael Caine, Marion Cotillard, Tom Hardy, Joseph Gordon-Levitt e Cillian Murphy). Trabalhando com este elenco tarimbado, e contando ainda com Christian Bale cada vez mais confortável em seu uniforme negro e com uma mulher-gato afiada como Anne Hathaway, Nolan evita o ritmo frenético desde o começo, construindo aos poucos o clima de tensão que, inevitavelmente, chega a seu ápice na parte final do filme, que, mesmo com 164 minutos, passa voando, devido à mão segura do diretor. Porém, mais do que um ritmo impecável, Nolan soube, por toda a trilogia, dar alma ao personagem do Batman e a seus companheiros e vilões, acrescentando um tom de seriedade que se assemelha a que um diretor normal faria com uma adaptação de Shakespeare. Talvez esta tenha sido sua melhor qualidade, não ter barateado o seu projeto, ter valorizado o que tinha em mãos desde o primeiro filme, sem resvalar para a paródia ou comédia pura e simples, como tanto fizeram a série de TV antiga ou os filmes da década de 90. Nolan soube entender e exibir a tragédia por trás do personagem, a culpa, a alienação, a reclusão, sem apelar para piadinhas ou personagens por demais caricatos. Soube também trabalhar antenado com o mundo que o rodeia, surfando até mesmo a onda do momento ao criar uma catarse coletiva com uma efetiva “ocupação” da Bolsa de Valores de Gotham City. Bane, o vilão, tem um pouco de justiceiro, de Robespierre, de anti-capitalista, e não é difícil imaginar que, no meio desta crise econômica toda em que vivemos,  alguns mais revoltados cheguem a simpatizar com ele...

Nolan declarou que Batman begins tinha, para ele, o tema  do “Medo”, o segundo filme representaria o “Caos” e, este último, a “Dor”. E realmente neste filme sentimos o Batman mais falível, mais sofrido, mais humano enfim, com mais dúvidas do que o normal, passando por verdadeiras provações. Mas o que ninguém poderia contar é que a dor extrapolaria os limites do filme e chegaria ao absurdo que foi um maluco matar 12 pessoas e ferir mais de 50, em um cinema exibindo o filme em Aurora, no Colorado. Infelizmente, não é apenas Gotham City que precisa de ajuda, um Batman nos seria de enorme benefício para nos salvar de nós mesmos. Pena que ele não existe... ou que exista apenas na trilogia absoluta de Christopher Nolan deste que sempre foi o mais soturno dos super-heróis.